Um dos efeitos da violência vivida por nós, pretos, no processo de diáspora compulsória foi a interdição de qualquer forma de expressão daquilo que sentimos perante o branco. Uma vez que, na dinâmica colonial — na condição de escravizados — fomos inseridos em um longo sistema de violência em diversas dimensões: sobre nosso corpo, nossa história, nossa espiritualidade e todos os demais elementos que nos permitiam ter uma percepção do Novo Mundo como um lugar de não pertencimento, assim como a certeza de que nossas formas de viver e nos relacionar com o que há em nossa volta nada tinham a ver com a concepção de civilização euro cristã construída pelo homem ocidental.
Agora, imagine só viver em condições de incessante subjugação, sendo humilhado, agredido e violentado de diversas formas possíveis sem poder dizer uma palavra? É um fardo difícil de carregar. Mas, na casa grande, quem retrucava apanhava ainda mais. Escravo teimoso e resmungão não durava muito tempo. Como sobreviveríamos à violência ininterrupta causada pela escravidão? Assim, o silêncio estabeleceu-se entre nós.
Silêncio diante da impossibilidade de revidar; silêncio — muitas vezes, abrandado por um cuidado, um abraço — diante da impossibilidade de consolarmos uns aos outros a respeito de nossas próprias feridas; silêncio diante de tudo aquilo que é ruim e que nos atravessa; silêncio saboreado com o gosto salgado de nossas lágrimas.
Por esse mesmo silêncio, em muitas vezes, somos afetados até hoje pelos espaços que ocupamos: seja o trampo, a faculdade, em uma roda de amigos ou em nossa própria casa: o silêncio construído pela interdição de nossos sentimentos diante da violência causada pelo racismo ainda paira em nós, e isso pode ser fatal.
Quantas vezes estamos em um lugar onde há pouquíssimas pessoas negras — ou até mesmo só você de negra(o) — e, ao ouvir aquela piadinha racista ou aquele comentário sobre o seu cabelo ou sobre qualquer outra coisa relacionada àquilo que você é, nos retraímos quase que automaticamente? Quantas vezes aquele(a) amigo(a) branco(a) te fala uma asneira racista — sem sequer ter o trabalho de pensar naquilo que fala — e você acaba relevando “pra não perder a amizade”? Quantas vezes, diante de uma situação difícil entre nossa família, optamos por não falar nada? Ou até mesmo, ao ver uma irmã(o) passando por uma dificuldade, escolhemos nos calar?
Em um momento anterior, escrevi sobre a energia que perpassa a tudo aquilo que falamos, e pensando o nosso corpo como um canal energético, que tem não só a capacidade, mas, a função de receber e distribuir toda a energia que perpassa por nós, dando continuidade a um ciclo, o silêncio pode ser danoso, pois ele interrompe a circularidade dessa energia em nós mesmos. Nos tornamos verdadeiros recipientes do que não deveria ser acumulado.
Na capoeira, aprendemos que ao receber um golpe, o angoleiro nunca deve travar seu movimento. Pelo contrário: uma vez recebido o golpe-pergunta, nosso corpo deve dar continuidade ao movimento feito pelo outro, pois só assim podemos atingir fluidez suficiente para golpear-responder com classe aquela situação, na mesma intensidade. Travar um movimento por tê-lo recebido é matar o jogo; é romper o jogo com o corpo do outro, o que limita nossa capacidade de encaixar uma resposta e nos deixa vulneráveis para receber outro golpe, muitas vezes ainda mais forte, como consequência da tentativa de tentar matar o jogo do outro.
A capoeira é uma verdadeira escola para nossa vida, e os impactos por “travar o jogo” podem nos ensinar muita coisa. O silêncio diante daquilo que sentimos, de certa forma, é travar nosso jogo com nossas experiências ruins, com nossas dificuldades; à medida que não encontramos formas de responder a esses problemas, só limitamos nossa capacidade de reação e nos colocamos mais vulneráveis para receber mais problemas.
Pensando em uma saída para nossa sobrevivência, acredito que cultivamos o silenciar, e temos uma extrema dificuldade em romper com isso. O problema maior é que o silêncio, apesar de nos safar de situações possivelmente embaraçosas em princípio, nos mata aos poucos. Se não dou continuidade para a energia que há em mim, a ruptura pode me levar à morte. Como também é possível que, a partir desse acúmulo energético, haja uma verdadeira “sobrecarga” e essa energia se dissipe de forma violenta: contra nós mesmos, o que pode nos levar a uma rotina de auto-sabotagem / rompimento com o auto-cuidado, seja com os nossos semelhantes, com a intolerância aos nossos irmãos e irmãs, ou até mesmo a agressão física / verbal.
Logo, precisamos romper o silêncio entre nós, e para isso, podemos fazer pequenas mudanças nas nossas atitudes como aprendemos em nossas raízes, ou seja, coletivamente: ao perguntar a um irmão ou uma irmã se “está tudo bem”, não pergunte por mera formalidade. Queira de fato saber como ele/ela está se sentindo naquele momento. Faça questão de mostrar-se disponível a pelo menos uma pessoa ao seu redor para ouvir o que ela sente. Às vezes, só queremos alguém disposto a sentar do nosso lado e ouvir, mas não nos disponibilizamos para ouvir nossa(o) irmã(o). Colocando-se disponível para isso, é possível criar uma relação de acolhimento e troca. Caso seja necessário, é válido procurar ajuda profissional. Procurar um Mais Velho também pode ser fundamental nesse processo.
Esteja entre irmãs e irmãos, mas, esteja MESMO presente. Não só pelas selfies com aqueles sorrisões bonitos, mas, para construção também. E não tenha vergonha de ser sincero quando algum irmão ou irmã te perguntar se vai tudo bem, principalmente se não estiver: só podemos receber o acolhimento do outro, se também estivermos abertos para isso. Caso contrário, permaneceremos na superficialidade relacional que o ocidente já nos proporciona.
Precisamos o mais rápido possível voltar para nossos trilhos e reaprender a exercitar o cuidado, seja com nós mesmos, seja com nossa comunidade, afinal, a comunidade é nossa via de existência e reconhecimento enquanto africanos(as); pensar em práticas de cuidado com o corpo preto, dentro de uma perspectiva voltada para o nosso povo de maneira individual é tornar impossível a sua aplicação à realidade. É a reflexão para pura abstração, o que o mundo branco sempre nos incentivou a valorizar.
Acredito que haja diversas formas de romper com o silêncio: seja pela via do enfrentamento direto, do cuidado, do “desague” em outras formas de expressão. O mais importante é rompê-lo, para darmos continuidade à nossa vida e nossa comunidade. Um bom lugar para se começar esse processo, muitas vezes, é dentro de nossa própria casa: converse com seus pais, filhos(as), irmãs(os), primas(os), namorada(o), esposo(o) ou qualquer outra pessoa que conviva contigo; destinar alguns minutos de seu dia a deixar o celular em segundo plano e observar a realidade de sua casa, ouvindo como o outro se sente e se permitir falar sobre como você se sente pode fazer com que grandes conexões sejam (re)estabelecidas.
Para nós e entre nós, antes de tudo, o cuidado. E cuidar não é uma tarefa fácil, como também não é sinônimo de “passar a mão na cabeça”. Ainda que hajam pequenos desentendimentos entre a gente, precisamos nos preparar e treinar a ruptura do silêncio entre nós e entender que isso é cuidar também. Não se trata apenas de um exercício com consequências terapêuticas. Trata-se de movimento. E para nós, africanos, movimento é vida.