Onde estão as Clarices?
Participação e representatividade feminina na Literatura brasileira
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Por Anna Capelli, Isabela Barreiros, Laura Okida e Marina Baldocchi
Rachel de Queiroz. Cecília Meireles. Adélia Prado. Cora Coralina. E, claro, Clarice Lispector. Estes são os nomes que vêm à mente ao se pensar em escritoras brasileiras. Elas são, no entanto, exceções: a maioria das mulheres que almejam uma carreira no meio literário não ganha visibilidade, além de enfrentar dificuldades e preconceitos durante o processo de escrita, publicação e venda de seus livros.
De acordo com a quarta edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada em 2016, as mulheres são as que mais leem dentre a população: 59% são leitoras. Além disso, para as pessoas que tiveram uma influência no hábito de leitura (33% dos entrevistados), as representantes do sexo feminino foram as principais responsáveis (11%). Ao saírem do lugar de leitoras, no entanto, os trabalhos das mulheres são ofuscados, e os nomes que ganham destaque são os masculinos.
Em toda a história, a exclusão das mulheres sempre foi amplamente semeada, tanto nos direitos básicos que lhes eram negados, como ao voto e escolha de matrimônio, quanto na questão da alfabetização e do estudo, restringindo-as apenas à vida familiar. Em relação à escrita, a atividade possuía apenas fins de etiqueta, sendo incentivada somente entre mulheres da elite. Revela-se, então, o desnivelamento entre a literatura escrita por mulheres e a escrita por homens — enquanto estes majoritariamente conseguiam escrever e publicar suas obras, a elas isso era negado e, muitas vezes, até proibido. Com isso, o isolamento sistemático das suas obras do cânone literário é regra, apenas com raras exceções.
Pelo fato de ser uma ocorrência histórica, essa exclusão causa, ainda hoje, uma certa insegurança nas mulheres, principalmente em consequência de discursos e estruturas sociais. Algumas autoras tendem a achar que o que escreveram não é bom o suficiente para ser lido ou publicado. Nas palavras da mediadora do clube de leitura Leia Mulheres, Michelle Henriques, de 31 anos: “Na sociedade, tem essa coisa da mulher precisar se provar muito mais do que o homem, e na literatura isso não é diferente”.
História: luta e preconceito
Embora o cenário para o desenvolvimento da escrita das mulheres tenha sido custoso desde seus primórdios, é possível abordar a criação de alguns espaços decisivos para o aumento da expressividade feminina na área, tanto na produção da escrita jornalística quanto da literatura em sua forma mais ampla.
A partir da vinda da família real portuguesa para o Brasil, no século XIX, rompendo com os padrões coloniais da época, a imprensa é oficialmente criada no país. Esse passo, essencial para o início de uma lenta mudança de pensamento, constitui um avanço na questão feminina em relação ao incentivo à escolaridade da elite nacional, principalmente pela recente associação com a Corte e seus interesses culturais e intelectuais.
Nesse período, no entanto, nota-se que o papel dado à mulher na imprensa, em sua maioria, limitava-se ao universo da moda, literatura (romances), beleza, algum tipo de entretenimento e/ou recreação e, também, ao reforço das características de esposa e mãe bondosas — assuntos que ainda hoje carregam muito do que diz respeito ao ato de “ser mulher” na sociedade. Pela ligação estabelecida ao longo de toda a história entre imprensa e literatura, esses temas persistiriam, conjuntamente, na relação de produções literárias de mulheres, tal como sua contínua desvalorização.
Atualmente, a expectativa nos assuntos que são tratados por mulheres em suas obras ainda persiste. “Existe, sim, esse preconceito, de achar que porque você é mulher você obrigatoriamente vai escrever um romance, mesmo se seu gênero é fantasia”, comenta a escritora Graciele Ruiz, de 26 anos. Na literatura, há uma multiplicidade de vozes, fora os diversos estilos e gêneros textuais a serem explorados. Assim, a escrita das mulheres não deve ser estereotipada, visto que suas características são heterogêneas e distintas. “Compreendo a categoria como uma gama de interconexões, porque o feminino é multifacetado e complexo e envolve uma multiplicidade de sujeitos que reivindicam a expressão de sua subjetividade”, diz a autora Elisabete Nascimento, de 54 anos.
“Quando você escreve fantasia, aventura, ou até mesmo ficção científica, que são geralmente gêneros mais masculinos, na grande maioria dos autores, existe um preconceito porque o leitor pega esse livro achando que vai ser um romance, que por ser mulher você só sabe falar de romance” — Graciele Ruiz.
A partir disso, pode-se perceber que o estabelecimento de assuntos e escritores considerados importantes passava ao largo do feminino, raramente indo ao seu encontro. Para realizar uma análise acerca da literatura escrita por mulheres, portanto, deve-se ter em mente que há uma discrepância notável entre essas obras, frequentemente invisibilizadas e esquecidas na história, em relação às escritas por homens.
Incentivo à leitura
“Apenas para fazer uma mudança, tenha certeza que o próximo livro que você irá ler seja de uma mulher” — Joanna Walsh.
E m 2014, a ilustradora e escritora britânica Joanna Walsh criou a campanha #ReadWomen2014 (#LeiaMulheres2014) no Twitter para incentivar a leitura de livros escritos por mulheres — e, assim, a discussão cresceu, tornando esta uma das hashtags mais comentadas daquele ano. Walsh postou em sua conta na rede social uma ilustração, em um cartão- postal feito por ela mesma, de escritoras que admirava. Além disso, iniciou uma lista contendo os nomes de grandes mulheres na literatura mundial.
A iniciativa da britânica gerou ações e questionamentos em várias partes do mundo. No Brasil, incentivou a criação de dois movimentos que se engajam em dar mais visibilidade à literatura escrita por mulheres: o Leia Mulheres e o #KDMulheres.
O Leia Mulheres, dirigido por Juliana Gomes, Juliana Leuenroth e Michelle Henriques, é um clube de leitura inspirado no projeto de Joanna com o intuito de divulgar obras escritas por mulheres. Inicialmente apenas em São Paulo, mas hoje espalhado entre muitas cidades brasileiras, o clube possui parcerias com livrarias, editoras e instituições, e também oferece um contato direto com as autoras. Ao colocarem a ideia do #ReadWomen2014 em prática, elas fazem o trabalho de inserção desta literatura em livrarias e centros culturais.
Michelle Henriques e Juliana Gomes comentam sobre o projeto:
O #KDMulheres foi criado por Martha Lopes e Laura Folgueira e, assim como os outros dois projetos, é voltado a aumentar a visibilidade e empoderamento de escritoras. Em seu perfil no Tumblr, fomenta debates acerca do tema e, fora das redes, promove oficinas de escrita em São Paulo destinadas ao público feminino. Por meio desse ato, a militância literária feminista se expande, faz mudanças reais na vida de mulheres escritoras, e também traz esperança àquelas que desejam seguir essa carreira.
Martha Lopes fala sobre o que é o #KDMulheres:
Mesmo com a criação de espaços para a leitura de mulheres, nota-se que, além do machismo sofrido pelas autoras, muitas vezes há racismo atrelado às suas dificuldades de reconhecimento. Assim, Adriele Regine, Evelyn Sacramento e Paula Gabriela fundaram, em 2016, o clube do livro Lendo Mulheres Negras, que conta com a leitura de escritoras exclusivamente negras. Segundo Evelyn, o acesso a essa literatura ainda é escasso, e esse é um dos maiores problemas enfrentados pelas mulheres negras no cenário da escrita.
Acompanhe os movimentos em suas páginas nas redes sociais:
Livraria Africanidades
A o se tratar de militância, põem-se em atenção as pautas trazidas por outras minorias sociais, pois a invisibilização, muitas vezes, é dupla, indo além da questão de gênero, mas também pelo recorte racial. Pensando nisso, a bibliotecária e empreendedora Ketty Valencio, de 35 anos, criou a Livraria Africanidades, para difundir, principalmente, a literatura escrita por mulheres negras, dando a estas o protagonismo merecido que, muitas vezes, lhes foi negado.
Localizada em Perdizes, na região oeste de São Paulo, a livraria contém um acervo de obras tanto nacionais, de autoras como Jarid Arraes, Antonieta de Barros e Noémia de Sousa, quanto internacionais, como Angela Davis, Alice Walker e Léonora Miano. A principal finalidade do empreendimento, segundo a bibliotecária, é dar maior visibilidade às escritoras negras — especialmente àquelas pouco conhecidas no mercado nacional. No site, ao clicar em “Autoras”, há um espaço reservado à biografia das escritoras, importante para histórias que foram invisibilizadas por tanto tempo.
Ketty diz que, nos livros, “a figura do negro (mais especificamente da mulher negra) sempre ficou na questão da objetificação, sendo ‘bruxa’ e ‘feia’; às vezes não sendo nem citada, sem um protagonismo”. Ao manter um acervo especializado em autoras afro-brasileiras, ela cumpre seu papel: fazer com que mulheres negras consigam se enxergar no que leem. Segundo Adriele, criadora do Lendo Mulheres Negras, ao contar a história das autoras o contexto dos seus livros e curiosidades, tanto sobre elas quanto sobre as obras, abre-se o espaço para que mulheres negras se percebam como parte dessa literatura e possam se descobrir como escritoras, mesmo que esse espaço seja, em sua maior parte, cedido apenas a homens brancos.
Ketty fala sobre a mulher negra na literatura:
A escritora Elisabete Nascimento diz que, ao se enunciarem no mundo literário, as mulheres negras estão “metendo o pé na porta da casa grande” e expressando as nossas “escrevivências”, parafraseando Conceição Evaristo. A negação das suas produções culturais e a falta de representatividade no meio são abaladas. A autoreferenciação das autoras negras, segundo ela, gera um local de fala negro-feminino cada vez mais amplo, que burla a invisibilização e cresce de forma heterogênea. “Mulheres negras estão conquistando novos espaços e, principalmente, fabricando espaços para que atendam suas demandas”, comenta Adriele.
Combatendo a falta de representatividade na literatura por meio, também, da militância, a Livraria Africanidades é um exemplo inédito e especial, que demonstra a resistência e a diversidade de temas explorados por escritoras e escritores negros em suas obras, dando-lhes um espaço importante para aumentar sua dispersão no mundo literário.
Para conhecer: a Livraria Africanidades fica na Rua Aimberê, 1158, em Perdizes, São Paulo. No entanto, desde junho, as vendas dos livros são feitas somente online e no salão de beleza Paola Afro Hair, na República.
Mercado e dificuldades
A jornalista Aida Veiga, de 54 anos, que atualmente trabalha com a edição de livros não-ficcionais na editora Planeta do Brasil, afirma: “Como você tem uma grande massa de mulheres lendo, é natural que a gente queira ouvir as nossas vozes”. A maioria do público leitor brasileiro é feminino, como demonstra a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro — os dados revelam que 55% dos leitores brasileiros são mulheres. Ainda assim, a maior parte dos títulos publicados no país é de autoria masculina: segundo a pesquisa de Regina Dalcastagné para o livro Literatura Brasileira contemporânea — Um território contestado, 72% dos autores publicados no Brasil são homens.
Aida defende que, no mercado editorial, o preconceito com a literatura escrita por mulheres tem diminuído, porém ainda pode ser grandemente observado entre o público leitor masculino e na chamada Alta Literatura. “Como a mulher lê muito mais que o homem, a voz feminina é muito valorizada nas editoras”, explica. Tal situação é também refletida pelas resenhas de grandes veículos, que garantem visibilidade para as obras que mencionam. De acordo com o site americano VIDA, que mantém porcentagens de gênero sobre resenhas em grandes publicações literárias, em 2012, apenas 22% dos livros resenhados no New York Review of Books, 25% no The Times Literary Supplement e 23% no The Nation eram escritos por autoras.
Martha comenta sobre a importância de ter mulheres como curadoras e editoras:
Sobretudo desde 2014, no entanto, estamos presenciando uma constante evolução no que diz respeito à visibilidade de mulheres escritoras e suas obras. O mercado editorial tem visto as vendas de livros com viés feminista crescerem significativamente, ao exemplo do sucesso da poetisa indiano-canadense Rupi Kaur (seu primeiro livro, traduzido como “Outros Jeitos de Usar a Boca”, já vendeu mais de dois milhões de cópias ao redor do mundo).
Bárbara Bressanin, de 22 anos, analista de marketing da Editora Planeta, acredita que, embora qualquer mercado atuante no Brasil reflita o machismo do país, o mercado editorial de certa forma foge a tal regra. “Gosto de pensar que o mercado livreiro como um todo abraça a diversidade”, afirma. E cita como exemplo “Mulheres e Poder: Um Manifesto”, lançado no Brasil em março deste ano. Descrito como “um verdadeiro manifesto feminista”, o livro da britânica Mary Beard traz reflexões sobre o papel feminino nas estruturas de poder da sociedade ao longo do tempo.
Deve-se destacar, entretanto, que no mercado editorial os preconceitos muitas vezes estão velados: os “nãos” são frequentemente implicados, e não ditos. A autora Elisabete Nascimento conta: “Eu nunca ouvi um ‘não’, apenas a palavra ‘mas’, conjunção adversativa que deixa no ar uma possibilidade que nunca se concretiza”. Como consequência, muitas escritoras, sobretudo aquelas inciando sua carreira literária, têm de recorrer a alternativas como publicações independentes.
Graciele Ruiz é autora d’A Saga de Dathariun, cujo primeiro livro, “O Senhor da Luz”, foi publicado pela editora Novo Século como parte da coleção Novos Talentos. Ela explica que este é um selo pago, e que a publicação do livro deve ser financiada pelo autor. Destaca que a inserção no mercado editorial é sempre difícil para novos escritores e pontua que muitos “partem para publicação independente ou até mesmo publicações digitais, na Amazon, por exemplo”. Ela mesma já usou tal ferramenta, e possui dois contos disponíveisem plataformas online como Amazon e Wattpad. “Também é uma boa porta de entrada”, Graciele conclui.
Martha também comenta sobre a importância de não depender de editoras:
Elisabete é outra autora que escolheu a independência em relação às editoras: seus cinco livros foram autopublicados. Nascida, por descrição própria, “sob o signo da violência dos anos de chumbo”, Elisabete foi ensinada a falar e escrever apenas o que lhe era permitido. Enquanto mulher negra moradora da Baixada Fluminense, define sua produção literária como expressão das dores provocadas pela invisibilidade, contra as quais resiste justamente através da publicação de suas obras.
Para as mulheres negras, no entanto, o mercado editorial mostra-se ainda mais excludente, a começar pelo pouco interesse que as editoras demonstram em publicá-las, como aponta Elisabete. Devido à jornada de trabalho frequentemente mais longa e à diferença salarial em relação aos homens e também às mulheres brancas, as mulheres negras acabam tendo baixo poder aquisitivo para a autopublicação, além de menos tempo para dedicar à escrita.
Ketty fala sobre representatividade na literatura:
Assim, é formado um ciclo de exclusão, que alimenta e naturaliza a falácia de que mulheres negras não escrevem e não produzem literatura de qualidade, e por isso suas obras não são publicadas, divulgadas e vendidas em quantidades expressivas. Quando conseguem ser as exceções, as autoras negras enfrentam ainda outro problema: o da distribuição de seus livros, visto que, além da dificuldade para conquistar um espaço, as livrarias costumam cobrar altas porcentagens sobre suas vendas, reduzindo o lucro das escritoras.
Fica então clara a importância do incentivo desse mercado a uma constante — e confiante — produção de conteúdo literário por mulheres, assim como a relevância de que obras como a de Rupi Kaur e Mary Beard ganhem notoriedade. O Brasil precisa de um mercado livreiro que, cada vez mais, abrace, e valorize, de fato e diversidade.
Uso de pseudônimos
Jane Austen publicava como mulher: fazia questão de deixar claro que seus romances eram escritos “por uma dama”, como declarou em sua primeira obra, “Orgulho e Preconceito”, e nas posteriores, que eram creditadas à “mesma autora” da inicial. Contudo, nunca chegou a assinar nenhum de seus livros, publicando-os todos anonimamente.
Junto com outras poucas mulheres, ia contra os parâmetros da época de que apenas os homens poderiam escrever, e focava mais em críticas sociais do que somente no romance. Já criticava o fato de que, naquele período, a felicidade de uma mulher dependia de um bom casamento e como a vida delas girava em torno disso. Foi feminista sem saber, e influenciou milhares de escritoras ao redor do mundo inteiro.
Já uma autora atual que sofreu com o machismo no meio literário foi J.K. Rowling, famosa pela série de livros Harry Potter. Seu nome verdadeiro é Joanne Rowling — o K na abreviação é uma homenagem a sua avó, Kathleen — , mas seu agente literário e a editora acharam que seria melhor adotar a abreviação por acreditarem que o público não leria o livro se soubesse que havia sido escrito por uma mulher.
Para a escritora brasileira Rosiska Darcy de Oliveira, de 74 anos, o uso de pseudônimos masculinos por parte das mulheres no século atual é um absurdo, mas, no século XIX, era um método compreensível. Membra da Academia Brasileira de Letras, Darcy justifica sua posição contra o uso de tal “estratégia” com um discurso feminista que pode inspirar jovens escritoras: segundo ela, tudo aquilo que nega o feminino é contra as mulheres.
“A minha visão foi sempre de afirmar o feminino, e não de considerar que ele é um defeito, o que não é, ao contrário, é uma qualidade. Eu jamais esconderia a minha identidade feminina, e tenho até um julgamento muito negativo sobre isso. Eu sempre afirmei a minha identidade feminina, e com orgulho — e continuo afirmando. Então eu jamais me esconderia atrás de um pseudônimo” — Rosiska Darcy de Oliveira.
Por um lado, é possível pensar que, como o machismo era, e ainda é, muito presente no meio literário, a opção de usar pseudônimos masculinos — como fez Mary Ann Evans ao assinar seus livros como George Eliot — foi o modo que muitas mulheres encontraram para construírem suas carreiras e seguirem suas vocações para a escrita.
Contudo, tal alternativa pode ter reprimido muitas escritoras a publicarem suas obras, já que os grandes nomes que recebiam reconhecimento eram, em sua avassaladora maioria, masculinos — mesmo que os autores não fossem de fato homens. Além disso, esse fator pode ter impedido que os livros já publicados por mulheres ganhassem reconhecimento.
Abaixo, veja uma tabela que mostra a relação entre o nome das escritoras e os pseudônimos utilizados por elas ao publicarem suas obras.
Exclusão na Academia Brasileira de Letras
A Academia Brasileira de Letras, mais importante instituição literária do país, ilustra a situação das escritoras no Brasil. Desde sua criação, em 1897, apenas oito mulheres ocuparam alguma de suas notórias quarenta cadeiras — e, a contar do princípio, a história da ABL não foi das mais inclusivas.
Diz-se que a primeira mulher foi excluída da Academia antes mesmo de sua inauguração. Júlia Lopes de Almeida recebeu um “não” à ocupação de uma cadeira, a qual acabou sendo ocupada por seu marido, Filinto de Almeida. O pretexto usado foi que, sendo a ABL moldada pela Academia Francesa, que não aceitava mulheres, esta também não deveria aceitá-las. Mais tarde, Filinto de Almeida revelou em entrevista à pesquisadora Rosane Salomoni: “Nunca disse isso a ninguém, mas há muito que o penso. Não era eu que deveria estar na Academia, era ela”.
Posteriormente, o termo “brasileiros”, contido no Artigo 30 do Regimento Interno da ABL, foi usado como justificativa para recusar a primeira candidatura feminina — a de Amélia Beviláqua — , defendendo-se que o vocábulo fazia referência apenas a homens brasileiros, não incluindo, portanto, as mulheres. Após 80 anos sem uma representante do gênero feminino, a Academia finalmente elegeu uma mulher: Rachel de Queiroz. Apesar de ela não ter mencionado a importância de ser a primeira a ocupar tal posição ou incentivado o ingresso de mais mulheres na ABL, a conquista da escritora representou o início de uma lenta mudança.
A seguir. um infográfico que ilustra a falta de representatividade das mulheres em algumas das Academias de Letras no estados brasileiros:
Esse caso contado em entrevista por Rosiska Darcy de Oliveira, membra da Academia Brasileira de Letras e ocupante da décima cadeira desde 2013, ilustra a luta que as escritoras travam contra o machismo no meio literário: “Quando Rachel de Queiroz escreveu seu primeiro livro, ‘O Quinze’, muitas pessoas acharam que era um pseudônimo feminino: que teria sido um homem que o escreveu. Porque o livro era considerado bom demais para ter sido escrito por uma mulher”. O romance citado, escrito por Rachel aos dezenove anos, foi recebido com desconfiança pelo autor alagoano Graciliano Ramos:“Seria realmente de uma mulher? Não acreditei. Lido o volume e visto o retrato no jornal, balancei a cabeça. Não há ninguém com esse nome. É pilhéria. Uma garota assim fazer romance! Deve ser pseudônimo de sujeito barbado”.
No centenário da instituição, Nélida Piñon foi eleita sua presidente, a primeira mulher a ocupar o cargo. A segunda viria somente depois de 15 anos, quando a carioca Ana Maria Machado sucedeu Marcos Vilaça. Hoje, são cinco as mulheres que integram a Academia Brasileira de Letras: além de Nélida Piñon e Ana Maria Machado, Cleonice Berardinelli, Rosiska Darcy de Oliveira e Lygia Fagundes Telles.
“É como mulher, escritora, cidadã brasileira que hoje, com a ajuda de Deus, dos brasileiros amantes das causas nobres, dos membros desta Casa, que libertos de preconceitos confiaram na minha condição feminina e, assumo, comovida, a presidência da Academia Brasileira de Letras”
Nélida Piñon, 1996.
Em 2018, com a morte do diretor de cinema Nelson Pereira dos Santos, em abril, a cadeira de número 7 da ABL está vaga, e foi criada uma campanha para que a autora Conceição Evaristo a ocupe. O intuito é incentivar, através de um abaixo-assinado online, que os membros da Academia votem na escritora mineira. Ela seria a primeira mulher negra na Academia, uma conquista ainda maior para as minorias e para o cenário literário nacional.
Michelle e Juliana comentam sobre a importância da literatura escrita por mulheres:
Literatura feminina versus literatura de mulher
E m relação à linguística e denominação, livros escritos por mulheres passam por uma série de análises para um “encaixe” na literatura masculina já existente. O termo “literatura feminina” e as muitas visões, tanto positivas quanto negativas sobre ele, e seus amplos significados são um exemplo disso. É possível perceber uma discussão que gira em torno da confusão que ocorre entre os termos “literatura feminina”, “literatura para mulheres” e “literatura escrita por mulheres”, entre outras expressões que tentam codificar essa produção literária.
Martha Lopes defende que as escritoras se apropriem desse termo e o reinventem, de forma que “a gente possa escrever com protagonistas masculinos ou sobre qualquer assunto, dentro desse selo da literatura feminina”. Dessa maneira, mudando o sentido pejorativo da expressão e questionando-o, surge a tentativa de afastá-lo da ideia do “chick-lit”, ou seja, da literatura “para mulherzinhas”, que categoriza comportamentos femininos como submissos e frágeis e homogeniza as experiências das mulheres. Essa reflexão exemplifica a luta por mudanças de paradigmas da questão feminista, que procura sempre o estranhamento, nesse caso, de códigos e o que eles representam na sociedade atual, partindo de uma troca de significados específicos.
“Literatura escrita por mulheres para ser lida por todos.”
Juliana Gomes
Ao fazer uso da expressão “literatura escrita por mulheres”, Rosiska Darcy de Oliveira se refere à literatura que as escritoras fazem hoje, que não precisa, necessariamente, se adaptar a um padrão. Ela lembra que, antigamente, “literatura feminina” era uma classificação depreciativa, como livros escritos por e para “menininhas” — a já mencionada “chick-lit”. Hoje, principalmente pelos ecos machistas dessa época, algumas escritoras ainda negam o uso desse termo, mas, com as transformações sociais trazidas pelo feminismo e pela modernidade, isso talvez seja um fato a ser ultrapassado.
“(…)para trazer visibilidade, porque a partir do momento em que você fala ‘Literatura Brasileira’, você vai ser engolida pelos homens brancos, heterossexuais e da elite.”
Ketty Valencio
Ketty comenta sobre o termo literatura feminina:
Desenvolver espaços para aumentar a visibilidade de grupos que normalmente lutam muito para sua produção cultural é uma estratégia que pode ser alcançada através dos nichos literários. No entanto, nota-se que esse modelo pode ajudar a manter o status quo da escrita, além de estereótipos que também são trazidos por esse meio.
Por se criar uma diferenciação entre os “tipos” de literatura (a masculina e a feminina), a relação entre universal (o que seria escrito apenas por homens) e particular (por mulheres) se daria por meio de um grande hiato e uma forçada separação. Com a dissociação de classificações literárias, como “literatura gay”, “literatura afro”, entre outros, ao enfatizar suas especificidades, cria-se um padrão de experiências humanas, a fim de selecionar o que seriam “textos maiores”, que retratariam os interesses de uma maioria, e “textos menores”, com interesses particulares de uma pequena parcela da sociedade.
Martha fala sobre o conceito de “mulheres como o outro”:
Em verdade, a expressão gera debates inumeráveis, e, provavelmente, sem um fim definitivo. Mas a realidade das escritoras continua a mesma: dificuldades incessantes, valendo para todos os processos culturais a que elas se dedicam. A falta de prestígio em sua escrita, o preconceito do público leitor, a tentativa de invisibilização constante e a desvalorização dos assuntos a serem tratados por elas persistem.
Indicações: leia mais mulheres
Como as estantes das livrarias e bibliotecas ainda são majoritariamente ocupadas por homens, pedimos recomendações literárias às nossas entrevistadas para tentar mudar essa realidade, começando por um ato individual, mas proposital e político: o de ler mulheres. Abaixo, uma lista de obras escritas por mulheres, recomendadas por mulheres, mas direcionadas a todos.
Adriele Regine:
- Alice Walker (“A Cor Púrpura”)
- Octavia E. Butler (“Kindred: Laços de Sangue”)
- Yaa Gyasi (“O Caminho de Casa”)
Aida Vieira:
- Isabel Allende (“Paula”)
- Mary Beard (“Mulheres e Poder”)
- Oriana Fallaci (“Carta a um Menino Que Não Chegou a Nascer”)
Bárbara Bressanin:
- Carol Bensimon (“Sinuca Embaixo D’Água”)
- Milly Lacombe (“O Ano Que Morri em Nova York”)
- Victoria Aveyard (Saga “A Rainha Vermelha”)
Evelyn Sacramento:
- Conceição Evaristo (“Olhos D’Água” e “Insubmissas Lágrimas de Mulheres”)
- Rita Santana (“Alforrias”)
- Tatiana Nascimento (“Lundu”)
Elisabete Nascimento:
- Maria Firmina dos Reis
- Noémia de Sousa
- Paulina Chiziane
Graciele Ruiz:
- Ilana Casoy
- Samantha Holtz (“O Pássaro”)
- Ursula K. Le Guin (“A Mão Esquerda da Escuridão”)
Juliana Gomes:
- Alejandra Pizarnik
- Maria Valéria Rezende
- Marília Arnaud (“Liturgia do Fim”)
Ketty Valencio:
- Carolina Maria de Jesus
- Jarid Arraes
- Jennyfer Nascimento
Martha Lopes:
- Chimamanda Ngozi Adichie
- Elvira Vigna
- Hilda Hilst
Michelle Henriques:
- Ana Cássia Rebelo (“Ana de Amsterdam”)
- Caitlin Doughty (“Confissões do Crematório”)
- Elena Ferrante
Rosiska Darcy de Oliveira:
- Lygia Fagundes Telles (“As Horas Nuas”)
- Marguerite Duras (“O Amante”)
- Marguerite Yourcenar (“Memórias de Adriano” e “A Obra ao Negro”).
Conselhos de quem sabe
“Que sejam rigorosamente elas mesmas. Que não façam nenhuma concessão. Que não pensem no que vão pensar delas. Que sejam absolutamente autênticas, quem quer que elas sejam, como quer que elas sejam. E que estejam por trás daquilo que elas escrevem”
Rosiska Darcy de Oliveira
Além de pessoas que leiam mulheres, precisamos de mulheres que escrevam e reivindiquem seu espaço no mercado editorial e no cenário literário do país. Para finalizar, aqui estão alguns dos conselhos das nossas entrevistadas para autoras que estejam produzindo hoje em dia no Brasil.
Continuem escrevendo!
“O que percebo é que a nossa escrita é a nossa força, que — aliada a coletivos de escritas femininas plurais, a espaços de edição, de autopublicação ou de publicação em editoras solidárias às nossas demandas — é um dos muitos caminhos para a construção e visibilidade do nosso local de fala” — Elisabete Nascimento.
Reportagem desenvolvida para a disciplina Laboratório de Jornalismo, ministrada pelo professor Celso Unzelte