Palavra na ponta do dedo

Anna Murça
4 min readNov 14, 2018
*Pra cego ver: a imagem apresenta uma mão lendo um exemplar do Pequeno Príncipe em braille. Na imagem, a figura da cobra que engoliu um elefante se destaca abaixo do texto.* (imagem retirada da internet)

Seja subindo pelas escadas, ou tomando um dos elevadores, o Setor Braille se esconde dos olhares públicos no segundo andar da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa. O cantinho semi-secreto abriga um acervo de 6100 volumes dos mais diversos livros, além de 2000 audiobooks, computadores equipados com ferramentas de audiodescrição e um equipamento de lupa eletrônica. As estantes de metal, cujas descrições laterais são em braile para facilitar que os leitores encontrem os títulos desejados, são preenchidas com uma infinidade de histórias, dos gêneros mais diversos. De Harry Potter à livros acadêmicos, passando por obras clássicas e filosóficas, a biblioteca guarda em si a magia da acessibilidade. Lidos, e relidos, os livros grandes, encapados de forma simples em papel amarronzado, cumprem seu papel de levar a literatura e a informação para todos que a buscam, sem fazer distinções.

Por dentro, os livros são brancos, as palavras escondidas dos olhares de quem não conhece aquela língua diferente, feita de pontinhos em alto relevo. Parece loucura que se possa ler em uma página sem tinta, e é quase filosófico perceber que aquela falta de cor se torna uma história diante dos dedos e imaginações. Ao fundo, na parede, uma pintura do alfabeto Braille se destaca; um mapa para que nós, leigos, decifremos os códigos escondidos nas páginas, placas, marcadores e calendários do setor.

Sentado em uma mesa com um computador que às vezes nos interrompe com a audiodescrição do que acontece na tela, trabalha Glicélio. Tão interessante quanto seu nome, o coordenador do Setor Braille gerencia a seção desde 2006, garantindo que, administrativamente, tudo vá bem. Admirador de uma boa literatura, Glicélio não tem um gênero favorito, mas assume que gosta muito de literatura de terror, suspense e policial, citando Stephen King e James Petterson como alguns de seus autores preferidos. Embora não lembre de qual foi sua primeira aventura literária, a primeira leitura que o marcou foi “O Pequeno Príncipe”, do escritor francês Antoine de Saint-Exupéry.

Hoje, ele já não usufrui tanto dos livros da biblioteca. Já leu quase todos os exemplares com os quais divide o espaço, e os que restaram sofreram as ações do tempo e estão empoeirados, o que atrapalha a leitura, já que é necessário passar as mãos pelas páginas para sentir as palavras. Com a impossibilidade de comprar os exemplares em braille (uma vez que são poucas as empresas em Belo Horizonte que realizam a transcrição, e por valores que variam entre mil e sete mil reais por um exemplar de 200 páginas), Glicélio conta que a alternativa está em comprar e-books e livros digitais, mesmo que a experiência não seja a mesma: “Eu particularmente prefiro ler em braille, porque eu gosto de ter contato com a palavra, com como aquela palavra é escrita, como a frase é formada através do braille, e quando uma pessoa está lendo para você isso fica meio em segundo plano, você presta atenção só na história.”

Formado em administração, ele contava com o apoio dos colegas de sala para conseguir estudar, uma vez que a instituição em que se formou não possuía recursos para as pessoas com deficiência. Essa dificuldade não se expressa apenas nas universidades; segundo ele, a alfabetização das crianças cegas é defasada pela falta de materiais em braille e de professores que conheçam o alfabeto. Mesmo que o governo disponibilize os livros didáticos em cópias digitais para audiodescrição, falta incentivo para que as crianças tenham acesso à obras literárias escritas para elas, o que as afasta da leitura e da utilização do braille.

Na biblioteca, a falta de incentivo também pode ser identificada. O setor conta com três impressoras para a transcrição dos títulos, um trabalho longo e demorado, que conta com o apoio de voluntários. No momento, duas máquinas estão estragadas, e a outra está parada por falta de manutenção. Em uma realidade onde a maior dificuldade é a disponibilidade, o trabalho de transcrição do livro em tinta para o livro em braille feito pela biblioteca faz falta, já que o maior patrimônio da cidade está em suas estantes. O cego belo horizontino pode contar, também, com os acervos da Associação de Cegos Louis Braille (ACLB, bairro Floresta) e do Instituto São Rafael (avenida Augusto de Lima). Embora possuam menos exemplares, são uma alternativa à quem, assim como Glicélio, já esgotou as possibilidades literárias oferecidas na Biblioteca Pública.

Sendo um espaço de informação, convivência e inclusão social, o Setor Braille funciona de segunda a sexta, de 8h às 18h, e em sábados alternados de 8h às 12h. Além de estar aberto à voluntários que desejem realizar leituras para os frequentadores.

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