Origens da gordofobia

Essa é a segunda parte de “Contos midiáticos da magreza”, meu Trabalho de Conclusão de Curso em Jornalismo pela ECA-USP, uma análise de como a imprensa feminina representou os corpos femininos ao longo das décadas, por meio de capas da revista Capricho e manchetes em torno de Marília Mendonça. Aqui, eu exploro as origens da gordofobia.

Anny Martins
12 min readJul 26, 2022

Entre o século XIX e as primeiras décadas do século XX, a silhueta ideal no imaginário brasileiro era o meio termo. Ambos os extremos eram reconhecidos como sinal de feiura e deselegância, uma anomalia social. Inclusive, até meados do século XX, a palavra “feiura” era recorrente na imprensa. Segundo Sant’Anna (2014), “escrevia-se sobre corpos medonhos, corpos horríveis, mirrados, raquíticos, famélicos ou então balofos e excessivamente ‘pançudos’”. As feias tinham apelido: “narigudas, ‘pesudas’, ‘bixiguentas’, branquelas, encardidas, ‘zaroias’”.

Nessa época, o mito da beleza encontrou seu ponto de apoio e autoridade: a área da saúde e, por consequência, a indústria farmacêutica. As propagandas, que ganhavam espaço nas revistas e nos jornais, prometiam remédios para “consertar” ou “reduzir” a feiura. Justamente essas foram as propagandas que impulsionaram a publicidade brasileira. A farmacêutica Bayer, por exemplo, é considerada “a pioneira em planejar uma campanha e dar unidade à comunicação”. Assim, com uma fórmula que combinava publicidade, medicina e farmácia, o processo de medicalização do corpo feminino, destrinchado por Elizabeth Vieira (2002), ganhou força.

Para a mulher, o tônico prometia beleza em 1934

A ideia de uma inferioridade da mulher, de sua associação à doença, à loucura e à morte, encontrou um campo fértil no discurso médico, e se tornou um conjunto de práticas intervencionistas que regulam os corpos femininos, que estariam reduzidos a uma limitação conceitual, sendo feios ou belos, nada além; trata-se de uma medicalização da própria beleza promovida por essa “ciência da diferença”, que distingue os gêneros em uma conturbada relação de poder, destacada por Fabíola Rohden (2001) nos estudos de Jimenez.​

Em Microfísica do Poder (1979), Foucault fala de uma “economia política da verdade” para se referir a esses discursos que fabricam regimes de verdade a partir da área científica e de outras instituições que dominam a sociedade moderna, em nome do controle social e da manutenção de poder. Na virada do século, a doença adquiria caráter de desorganização e mau funcionamento social, e a feiura era vista como doença. Feiura essa que poderia ser curada ou reduzida por remédios, coletes e cintas. Mas em momento algum falava-se explicitamente de uma busca pela beleza; a saúde foi a justificativa perfeita deste projeto, pois embora a beleza fosse regra, admitir desejá-la era um tabu.

Nesse anúncio publicado no jornal A Província de São Paulo, em 1878, resgatado pelas pesquisas de Sant’Anna, a empresa se autodenomina “fábrica de coletes e cintas hipogástricas”. Hipogástricas, um nome que remete ao científico, e não modeladoras, que remeteria à beleza. “A única fábrica acreditada pelos seus afamados coletes e pelas cintas hipogástricas (para gravidez, saída do parto e para todas as doenças do abdômen). As únicas reconhecidas pela academia de medicina de Paris e pelos facultativos e parteiras do Rio de Janeiro”, descreve o texto. Podemos observar que a gravidez e o parto, fenômenos naturais do corpo feminino, foram colocados na mesma categoria que as “doenças do abdômen”. Ao lado, a parte mais reveladora sobre as reais intenções da propaganda: a imagem de estátuas da Grécia Clássica, uma referência à perfeição da beleza feminina. Uma associação comum aos anúncios da época, já que a estética feminina simétrica da era da Renascença ainda era presente na retórica da beleza.

É curioso constatar que o aspecto simétrico dessa estética foi mantido, mas sua outra característica fundamental foi sendo apagada com o tempo e é justamente aquilo que se condena nos dias de hoje: a gordura. No século XVI, artistas e filósofos renascentistas apreciavam mulheres gordas (dentro de certos padrões). Então o que teria feito o Ocidente mudar de ideia? Segundo as pesquisas de Strings (2019), as teorias eugenistas e supremacistas durante o período do tráfico de escravos. Quando o processo de miscigenação demonstrou que a cor da pele não seria mais suficiente como demarcador social, os colonizadores europeus passaram a codificar outras características para diferenciá-los dos povos africanos.

À medida que associaram a gula como parte do comportamento das pessoas negras, assim como um biotipo mais “robusto”, a beleza da mulher gorda passou a ser reconsiderada, porque não gostariam de colocar a mulher branca no mesmo patamar. Clamavam que “o sol quente [sob o qual ficavam os escravos por muito tempo] causava ao corpo o acúmulo de gordura nos peitos e na barriga”. Ainda de acordo com a pesquisadora, essa seria a origem mais profunda da gordofobia como conhecemos no mundo ocidental, a partir de documentos norte-americanos.

No Brasil, a influência estadunidense na construção do mito da beleza e, por conseguinte, do culto à magreza, tomou forma nos anos 1920. O “charme” francês foi substituído por imagens de beldades hollywoodianas e pelo American Way, tornando-se um modelo a ser seguido. Escolas de dança e de cultura física se expandiam, para incentivar a prática de exercícios e eliminar o sedentarismo, embora ainda não fosse um costume tão incentivado para moças. Naquela década, revistas femininas e seções dedicadas às mulheres já eram adeptas de uma tendência discursiva do gênero que permanece: dicas e truques de beleza caracterizados como confidências entre mulheres. Uma espécie de conversa entre amigas, acima de qualquer técnica. Veremos a demonstração dessa estratégia mais adiante.

A esse ponto, a magreza já era bela. A silhueta feminina ideal era associada às formas aerodinâmicas, conceito cunhado pelo estilista francês Paul Poiret. O corpo era visto como uma “máquina energética”. “Os muito gordos o eram sobretudo porque seus ‘motores’ não trabalhavam suficientemente bem, daí o excesso de gordura em seus corpos”, pontua Sant’Anna. Além disso, médicos e higienistas de inspiração eugênica aproveitavam para disseminar seus ideais de supremacia branca, defendendo que a beleza feminina dependia das raças.

Eram criticadas as mulheres de “seios caídos, ventres flácidos e volumosos, pernas curtas e aparência mestiça”. As mais belas eram magras e brancas, sem manchas ou cicatrizes. Queriam embelezar esses corpos e eliminar traços de doença e fragilidade. Cuidados com exercícios físicos, respiração e alimentação ganharam espaço. Saúde e beleza estavam conectadas fundamentalmente. Aqui, não se falava ainda em um bem-estar individual. O objetivo era a “construção de um povo belo e saudável”, excluindo da sociedade todas as mulheres que não se encaixavam nesse padrão.

A partir de 1930, a beleza e a saúde ganharam mais uma extensão: a felicidade. Os anúncios e as revistas ganharam um otimismo quando se tratava em divulgar produtos de beleza. Procedimentos de cirurgia plástica também se tornaram mais positivos, com a popularização de imagens de “antes e depois” fora de publicações científicas.

Justamente aquela estratégia citada no início do texto, utilizada como forma de hostilizar Britney Spears em 2008. Com mais de 70 anos separando seus contextos, pode-se inferir que foi uma estratégia bem-sucedida. Nas imagens que circulavam no período, realçava-se a beleza proporcionada pelos cirurgiões. Feiura significava sofrimento e isso já era contornável de diversas formas. Entre 1930 e 1940, começaram as pesquisas de mercado na publicidade, que já trabalhava diretamente com “os desejos humanos e a psicologia do consumidor”. Beleza virou sinônimo de leveza, felicidade, saúde, autocuidado. O corpo gordo já significava o oposto; e os padrões de magreza foram se expandindo.

Já avançando para os anos 1950, havia uma alta no vocabulário de escárnio em referência a certos tipos de mulheres em publicações. A “mulher bucho”, por exemplo, era ridicularizada por ter uma barriga grande. Seus maiores problemas eram sua cintura reta e seus quadris largos. Na imprensa feminina, regimes restritivos de alimentação e exercícios físicos eram indicados para afinar a cintura. A década de 1950 foi um período determinante para a consolidação do corpo magro, com as vedetes, inspiradas nas pin-up norte-americanas, e o estabelecimento da cultura de misses. Foi também quando as revistas femininas passaram a adotar um tom mais amigável e descontraído, para se aproximarem de seu público e alavancarem a autoridade desses veículos ao falar de beleza e comportamento.

É o que Wolf chama de “autoridade invisível”, uma relação de admiração e confiança entre as leitoras e suas revistas, “de estar a seu lado com conhecimento e recursos superiores, como um serviço social gerido por mulheres”. A revista se torna mais do que uma simples revista: é um misto de “família ampliada, órgão da previdência social, partido político e associação profissional”. “Senhora” se tornou “você”. Seções de desabafo passaram a fazer parte das revistas, para conselhos emocionais. Aos poucos, pautas de beleza e comportamento foram se inserindo no editorial da revista. Testes de comportamento e personalidade se multiplicaram.

A repaginação dessas publicações contou com uma alteração de sentido para a beleza, com a substituição do termo “remédio” para “cosmético”. Beleza não era mais um tabu, mas uma necessidade, uma solução empoderadora. E se conectava com a vida privada feminina, cada vez mais revelada. O corpo da mulher entrou de vez em domínio público e afetou sua percepção de si na vida privada, sem que se questionasse a influência do conteúdo exibido nas revistas. Afinal, criou-se uma sensação de comunidade, de pertencimento, direcionando um olhar afetivo e atraente que impedia que esses veículos fossem observados sob uma perspectiva mais crítica.

“Mais do que as identidades sociais, mais caras ou personagens adotadas, mais até do que as idéias e convicções, frágeis e manipuladas, o corpo é a própria realidade da pessoa, portanto, já não existe mais vida privada que não suponha o corpo”

— Antoine Prost em História da Vida Privada (1995)

Até que chegamos aos anos 1960, os anos da segunda onda do feminismo, que trouxeram ares mais individualistas e estimulantes para a imprensa feminina, com discursos contraditórios que ainda circulam atualmente. Havia um tom de liberação sexual, que dizia à leitora que ela deveria “estar em sua melhor forma” sem medo do que poderia impedi-la, com um cunho de incentivo pró-feminista; ao mesmo tempo, artigos sobre regimes, cuidados com a pele, cirurgias e maneiras de agradar os homens padronizavam o significado da “melhor forma” e vendiam “a versão mais letal do mito da beleza que o dinheiro pode comprar”, nas palavras de Wolf. Trata-se das “ambiguidades da imprensa feminina” descritas por Buitoni: “[…] foi instrumento de democratização da moda, trouxe informações sobre sexo, contribuiu para a revolução sexual e, todavia sugere a colocação de próteses como uma grande conquista de beleza e identidade”.

Era preciso que as revistas se assegurassem de que as leitoras “não se liberariam ao ponto de perderem o interesse pelas revistas femininas”, de acordo com a autora de O Mito da Beleza. Segundo sua teoria, há uma forte relação entre a liberação da mulher e a imposição das pressões estéticas: “À medida que as mulheres se liberaram da Mística Feminina da domesticidade, o mito da beleza invadiu esse terreno perdido, expandindo-se enquanto a mística definhava, para assumir sua tarefa de controle social”. Ou seja, quanto mais liberdades são conquistadas, mais rígidos se tornam os padrões de beleza, que conseguem se infiltrar gradativamente e às ocultas, sem que seja percebido o grau de violência de seus atos.

De acordo com os estudos de Luciana Soares da Silva (2012), trata-se de atos de violência simbólica, uma relação de poder em que o dominado não percebe o que está concedendo ao dominante, “quando os esquemas que ele põe em ação para se ver e se avaliar, ou para ver e avaliar os dominantes (elevado/baixo, masculino/feminino, branco/negro etc), resultam da incorporação de classificações, assim, naturalizadas, de que seu ser social é produto”, conforme a definição do sociólogo Pierre Bourdieu (1999). É, portanto, uma violência sorrateira, que estrategicamente naturaliza crenças opressoras por meio do discurso e faz com que tais pensamentos pareçam “inevitáveis” e “imutáveis”.

Vale salientar ainda como a mídia pode se apropriar e reproduzir essas violências, sob a ótica de Yves Michaud (1989), que diferencia “atos de violência”, quando os prejuízos são físicos, e “estados de violência”, que atuam em um nível mais psicológico e moral. O jornalismo costuma promover o segundo tipo, “causando danos a uma ou várias pessoas em graus variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua integridade moral, em suas posses, ou em suas participações simbólicas e culturais”.

O discurso presente na imprensa é, assim, uma ferramenta poderosa de violência simbólica ao normalizar a beleza como uma necessidade vital para as mulheres, associando mulheres magras à beleza e mulheres gordas à doença, à feiura e ao repulsivo; seja por exposição do biotipo magro em todas as páginas das revistas e de artigos sobre emagrecimento ou pelo silenciamento de mulheres consideradas gordas por essa mesma régua. Como ressalta Gregolin, silenciamento e exposição são duas faces da mesma moeda que controla os sentidos e as produções e reproduções de verdades, como parte das estratégias de estigmatização e estereotipização na construção social dos indivíduos.

Em O peso e a mídia: estereótipos da gordofobia (2020), Agnes Arruda explica, a partir dos conceitos de Goffman (1988), que o estigma é uma marca de identidade carregada por uma pessoa e que possui um valor negativo perante o contexto social em que se insere, reduzindo a pessoa àquela característica em um processo de desumanização e estereotipização (ou generalização) de seus hábitos e comportamentos. Assim, “compreende-se que ser uma pessoa gorda, seja porque sempre foi gorda ou porque engordou, independente do motivo, é um marcador que, no contexto contemporâneo, é estigmatizado”. Da mesma forma, estereótipos acerca da real beleza são atribuídos exclusivamente às pessoas magras, sobretudo às mulheres.

Esses ideais se disseminam por meio de construções e repetições no discurso circulante e suas representações. Charaudeau (1999) define três funções essenciais a esse discurso: o de instituir poderes e contra-poderes, ao impor autoridade política; o de dramatização, ao contar histórias reais ou fictícias; e, por fim, o de regulação do cotidiano social, produzindo o que Goffman chama de “enquadres de experiência”, que determinam o certo e o errado no comportamento social. A imprensa feminina, que assim se define por se voltar às mulheres, é capaz de se apossar de todos os papéis, inclusive para servir a projetos de estigmatização como a gordofobia, considerando sua autoridade.

“A revista feminina informa pouco, mas forma demais. Antes de tudo, é uma imprensa de convencimento”

— Dulcília Buitoni em Mulher de papel: a representação da mulher na imprensa feminina brasileira (1981)

Foi dessa maneira traiçoeira que o culto à magreza e a gordofobia se consagraram com sucesso, com a crescente onda das top models, caracterizadas por sua extrema magreza, como Veruschka e Twiggy, e a moda estadunidense dos “três S”: sun, sex and sea (sol, sexo e mar). O corpo feminino deveria ser belo, saudável e sensual, e para isso tinha de se encaixar nas seguintes categorias: jovem, branco, magro e bronzeado. Ter um charme “diferenciado” era um adicional valioso, mas desde que fosse magra, como todas as outras belas. Perder peso era necessário. “Todas deveriam ser singulares, especiais, diferentes, porém, magras”, elucida Sant’Anna.

Além disso, produtos para emagrecer tornaram-se uma constante na imprensa e as balanças iniciaram sua presença obrigatória em farmácias. Tabelas de calorias, chás e o famoso conselho de “beber muita água” como fórmula de emagrecimento adquiriram maior potência. O adoçante surgiu para que os corpos magros pudessem consumir doces sem culpa e, na década seguinte, em 1972, o IMC seria adotado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um método de medição da obesidade; método que hoje é reconhecidamente limitado e falho para esse fim.

Para Wolf, concomitantemente ao endurecimento do mito da beleza e do culto à magreza, as revistas femininas receberam o título de representantes oficiais da cultura de massa da mulher, acompanhando e participando ativamente das transformações em sua vida pública e privada. Nesse aspecto, a revista Capricho foi uma das grandes pioneiras e não só manteve como também ampliou seu espaço no imaginário feminino ao longo dos anos. Por isso, é em seu conteúdo que vou focar a partir de agora para analisar os enunciados presentes nas capas, que são como a vitrine de compras das revistas, e como eles refletem as renovações de regimes de verdade em torno do corpo ideal.

Fundada em 1962 pela Editora Abril, a publicação originalmente tinha as fotonovelas como formato principal e se voltava para o público feminino de classe média, em um período em que as mulheres já estavam inseridas na sociedade de consumo, trazendo mais anúncios para as revistas para comprovar sua capacidade de compra. As páginas da época ganhavam cores, matérias que ensinavam as mulheres a comprar bens materiais e editoriais de moda. Ganhavam, principalmente, a onipresença dos produtos, que determinavam a seleção de conteúdo de toda a revista, servindo a “objetivos empresariais bem delimitados”, como aponta Buitoni.

Suas capas foram exploradas e analisadas por mim em Julgando pela capa.

“A verdade… o que é, senão uma construção discursivamente moldada, que muda de tempos em tempos?”

— Maria Gregolin em Análise do discurso e mídia: a (re)produção de identidades (2008)

O conteúdo completo está disponível também no site do trabalho.

Você pode encontrar as referências teóricas e as fontes das imagens usadas nesse trabalho aqui.

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