De uma não-dedicatória

Anthony Almeida
3 min readJun 7, 2023

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Ao te visitar, também visitei os teus caminhos pela Mata Atlântica. Tua casa, Yvonne, já tinha quase toda ido embora na mudança. Mas você ainda estava lá e, no penúltimo dia, meio na correria da pré-viagem, consegui te encontrar. Foi a primeira e única vez — até agora. E que bom que deu certo. Que bom que exploramos, junto dos latidos e do olhar carinhoso do Chico, os teus percursos mata adentro. Obrigado por fazer questão de me mostrar cada pedacinho do paraíso. Foi bom demais brindar, com uísque, à crônica contigo.

Levei uns livros que, fazia tempo, queria te dar de presente. Pena que, diante do mói de coisa que nós queríamos fazer e papear — e fizemos e papeamos — faltou um tempinho para que, faceiro, eu te escrevesse umas dedicatórias nos livros-agrados. Esta crônica-carta, uma não-dedicatória, é uma tentativa de reparar essa ausência.

Teus trajetos me lembraram da crônica “A viajante”, de Rubem Braga. Num dos livros que te dei, ela foi junto. Você se foi, continuará indo. Alemanha, Dinamarca, Áustria, Panamá, Espanha, Portugal, México, Brasil. De Berlim ao istmo, depois às florestas. Da mata à praia, depois à ilha, depois ao depois. E foi. E vai. Die Reisende.

Naquele dia, no trajeto da minha casa à mata, reli a tal crônica. Boquiaberto, desacreditei das semelhanças entre o texto e o contexto. A crônica-carta do velho Braga à viajante incorpora, acredite, o mesmo sentimento que eu tive ao te visitar bem às vésperas da mudança.

“Com franqueza, não me animo a dizer que você não vá. Eu, que sempre andei no rumo de minhas venetas, e tantas vezes troquei o sossego de uma casa pelo assanhamento triste dos ventos da vagabundagem, eu não direi que fique”. E não disse. Apesar de ter em mim o desejo — sutil, é verdade; mas autêntico — de continuar a saber que você estaria por perto. Bastava que eu tomasse um metrô, um ônibus e, sem grandes dificuldades, teria a tua companhia.

“Em minhas andanças, eu quase nunca soube se estava fugindo de alguma coisa ou caçando outra” — ah, o velho Braga… “Você talvez esteja fugindo de si mesma, e a si mesma caçando; nesta brincadeira boba passamos todos, os inquietos, a maior parte da vida — e às vezes reparamos que é ela que se vai, está sempre indo, e nós (às vezes), estamos apenas quietos, vazios, parados, ficando. Assim estou eu. E não é sem melancolia que me preparo para ver você sumir na curva do rio — você que não chegou a entrar na minha vida, que não pisou na minha barranca, mas, por um instante, deu um movimento mais alegre à corrente, mais brilho às espumas e mais doçura ao murmúrio das águas” — chega! Não quero transcrever toda a crônica.

Yvonne, leia o texto do velho Braga à viajante como se fosse do velho Almeida para você. Isto me fará feliz. E, preciso confessar, também dei um jeito de não permanecer parado. Fugindo ou caçando, ainda não sei. Mas, agora em Curitiba, também me vejo distante do paraíso. Você e ele, contudo, estão em minha companhia. Permanecem na lembrança e nas crônicas da mata que você escreveu, transformou em livro e agora me esquentam o coração e a alma.

É de Curitiba que me recordo de mais um livro, outro sem dedicatória, que deixei nas tuas mãos. “Nós passaremos em branco”, do curitibano Luís Henrique Pellanda. A página do livro, o papel no qual eu queria te deixar uma mensagem, um sorriso — um cheiro no olho, talvez? — passou em branco, infelizmente. Mas nós, nós não passamos em branco. Obrigado por isso!

Curitiba, 07 de junho de 2023.

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Anthony Almeida

Geógrafo, professor e cronista. Pesquiso a Geografia Literária, escrevo e estudo a crônica brasileira. Doutorando em Geografia. Editor-adjunto da Revista RUBEM.