Forró e fogo

Anthony Almeida
5 min readJun 21, 2023

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“Lauê, lauê
Lauê, lauê, lauê”

Vim dos confins de Curitiba para os inícios de junho em Caruaru. Até breve, Paraná. Olarrr, Pernambuco. Isso implica dizer que a minha viagem me trouxe para a Capital do Forró e, tanto melhor, durante o mês de junho, o mês do São João. O que é muito.

Apesar de ser muito, será por pouco tempo. Só um fim semana e logo, logo devo seguir mais outra viagem. Verei mamãe, papai, o São João e prosseguirei a tomar as providências que preciso tomar. Voltarei de vez a Pernambuco só em setembro. Voltarei ao meu lar no Recife e, dele, é facinho de voltar a Caruaru. Mas aí não será mais o mês das festas juninas.

Celebro a mobilidade que tenho hoje. As providências que me orientei a tomar têm me permitido andar por esse país. E celebro. Antes, a imobilidade estava me apagando. Não mais.

Celebro o movimento:

Presidente Venceslau,
São Paulo,
Caruaru,
Recife,
mais Caruaru,
mais Recife,
Londrina,
mais Presidente Venceslau,
Goiânia,
cidade de Goiás,
mais Goiânia,
Recife de novo,
Quixadá,
mais Recife,
mais Caruaru,
Recife novamente,
Presidente Venceslau de novo,
Presidente Prudente,
São Paulo de novo,
Recife,
Caruaru,
Recife,
mais Presidente Prudente,
Curitiba,
um pulinho no Recife,
agora Caruaru,
Recife depois de amanhã,
mais para frente Teresina,
depois Recife,
depois Curitiba,
mais Recife,
Palmas no horizonte.

Bela lista.

Nesse vaivém, Pernambuco é minha casa. Sempre volto para ele. Notei, contudo, que as providências e andanças me tiraram do Recife bem na época do Carnaval. De Caruaru, foi no período de São João. Voltei a morar em Pernambuco para quê, mesmo, se fujo nas épocas boas?

Essa vinda a Caruaru, portanto, é uma pequena ruptura nessas faltas. Perderei as fogueiras de Santo Antônio, São João e São Pedro, é verdade. Na autêntica Capital do Forró, porém, o São João pega fogo em todos os dias de junho. Tenho, então, disponível para o meu aquecimento, forró e fogo, ainda que sem fogueira, mas fogo.

Chego a Caruaru numa noite de sexta-feira. A primeira fogueira, a de Santo Antônio, será somente na segunda. Mas, vou-me embora domingo. Perderei a fogueira; não a chama. Hoje, o coração de Caruaru já pega fogo. Fiz questão de chegar e, de imediato, sair perambulando pelo meio da festa. Com a mochila da viagem ainda nas costas, exploro os muitos polos de animação.

De começo, um trio de forró pé-de-serra num canto e num toque. Sanfona. Zabumba. Triângulo. Junto, um solitário casalzinho. Devem ter mais de setenta São Joões, cada. Sorridentes, dois passos para lá, dois passos para cá, mulher e homem, então, arrastam os pés e abrem o salão para as danças. Mais tarde, esse palhoção estará cheio de forrozeiros.

Num outro polo do São João caruaruense, bumbam os bois. Boi Caruá. Boi Nelore. Boi Mimoso. Bumbam coloridos e espevitados. Em sua companhia, levantam poeira os outros personagens da brincaria. Mateus baila e tapeia o boi. Os músicos arrocham nos batuques. Catirina, o fazendeiro em seu cavalo, índios e vaqueiros, o urubu e a ema, a caipora, a morte com sua foice, a alma penada e o diabo pinotam, giram, farreiam o folguedo. O fogo se espalha pela plateia.

Já inflamado, sigo a perambular pelo oco da festa. Entrecruzo as barracas de quitutes, atravesso as barracas de artesanato, admiro os mamulengos, o poeta que declama o seu cordel, o cangaceiro com sua marionete no colo. Reencontro uma festa que já foi minha e reconheço os seus personagens: o papa Popó que toca o seu triângulo, os bacamarteiros e os seus pipocos, João do Pife que toca e vende os pifes de sua própria artesania.

Mais adiante, uma banda de pife. Completinha. Primeiro pife. Segundo pife. Tarol. Surdo. Pratos. Zabumba. Bem vestidos e bem ritmados, tocam uma, duas, três, quatro. Eu fico vendo, abestalhado. Me encanto com a harmonia e a música esquenta o meu coração. Me alegro com o desenho do sexteto: no primeiro pife, é uma mulher quem conduz a bandinha. Que bela a Vitória.

Depois de umas nove músicas, sigo para uma barraca de quitutes. Macaxeira com manteiga de garrafa, carne de sol e mais manteiga de garrafa por cima, naturalmente. Encho o bucho para me encontrar no Polo Azulão. Nele, o rockbaião da banda Sangue de Barro me espera. Meu eu transfigura-se. De bucho cheio, sai o homem de trinta e três anos; entra o rapaz de dezesseis, incendiado pela mistura subversiva. Entrego o meu corpo ao transe. Grito, pulo, bato cabeça, assovio alto, esbravejo. Deixo que o jovem arda, que vire brasa.

Quando retomo o controle do meu eu, ao fim do espetáculo, sinto o corpo de trinta e três, não o dos dezesseis. Pescoço, nuca e ombros doem e anunciam que a semana precisará da companhia de remédios para dor, relaxantes musculares, repouso… Mas, a tal semana não começou. Minha noite de forró ainda não se acabou. Do polo alternativo, vou até o palco principal: o Pátio do Forró.

Lotado, lotadíssimo, o pátio deve ter, no mínimo, uns cem mil forrozeiros e forrozeiras. Chego para o último show da noite: Calcinha Preta. A banda famosa arrastou esse povo todo até aqui e, enquanto tento me enfurnar no meio da multidão, em busca de chegar o mais próximo possível do palco, começa a apresentação:

“Hu! Ha! Ha!
A Calcinha é nossa!

Calcinha Preta-a-a-aa!

É da Calcinha que eu gosto
Carrego no coração
Inverno ou verão
Estou esperando você-ê-êê!”

Conheço essa. Canto junto.
Canto e sigo me entranhando no cafuá:

“Não tenho culpa desse amor acontece-er
Foi você quem quis assi-im

(Calcinha Preta-a-a-aha)

Sem você eu vou ficar na solidã-ão
E magoar meu coraçã-ão”

Também sei essa. Grito um eita bem gritado.
Canto e vou me embrenhando:

“Amor de-mais
Lembra dos momentos que te amei demais?
Foi assiim
Só nós dois na praia e eu me perdi
Louca por ti
Foi amor demais, louca por ti”

Eita que essa eu também sei. Canto.
Sou fã de Calcinha Preta e nem sabia.

“Eu faço tudo por você-ê
Ponho um anúncio na TV
Mostro o meu coração pra todo mundo vee-eer
Porque amo você-ê”

Essa eu canto e danço. Giro a mochila que trago nas costas.
Encostada em minha barriga, ela vira minha pariceira de forró.

“Como é que você foi embo-ora
Sem dizer pelo menos ade-eus?”

Mas eu disse…
Ah, eu disse.
Eu disse, sim.

“Como é que você depois li-iga
Pra dizer que está arrependida-a?
Que foi embora, mas que vai voltar
Pedindo pro meu coração o seu luga-ar”

Ah, eu sempre vou voltar, Caruaru.

“Ah-ha-haa
Que pena, o meu coração não é mais meu
Mesmo que fosse, nunca mais seria se-eu
Você se foi, nem quis saber se estava fri-io”

Mas o meu é teu.

“Eu ache-ei
Um coberto-or
Que me deu tanto amo-or
E que nunca deixa o frio-o
Tomar conta de mim”

Eu também achei.

Caruaru, 09 de junho de 2023.

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Anthony Almeida

Geógrafo, professor e cronista. Pesquiso a Geografia Literária, escrevo e estudo a crônica brasileira. Doutorando em Geografia. Editor-adjunto da Revista RUBEM.