Não-casa

Anthony Almeida
3 min readSep 18, 2023

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Nesta minha estadia curitibana, desejei tanto ter uma casa aconchegante, que o desejo acumulado e reprimido azedou. Depois, apodreceu. Literalmente. Hoje, eu gostaria de ter apenas um canto, no mínimo, limpo para dormir… Nem precisa ser casa…

Cheguei todo pimpão em Curitiba. Até escrevi, faz uns quinze dias, uma crônica esperançosa e que deu conta de registrar toda a pimponice. Daqui do presente, releio aquele devaneio com certo pessimismo. Na verdade, releio é com abuso. E raiva.

“Curitiba, seja o meu abrigo, me permita te explorar e me emaranhar pelo teu chão, teu céu e teu concreto enquanto me detenho em ti. Será um gosto te conhecer melhor. Sim, será!” — Isso eu fiz… Explorei e foi com bastaaante gosto!

Passei três dias andando, feito besta, em busca do tal “abrigo” decente, da tal “casa aconchegante”, para, depois de contatar mais de quarenta possíveis hospedagens — quarenta e uma, para ser exato — acabar ficando no mesmo lugar, um hostel que escolhi de improviso e que devia ter sido cama somente para a primeira noite. É dele que, hoje, reclamo.

Sou um sujeito até que paciente. Mas, de raiva em raiva, o paciente enche o saco. E passei algumas. Primeiro, o fato de ter direito a um banho que é cronometrado. São apenas oito minutos e nem um segundo a mais, que o peste do chuveiro se desliga e a água é cortada. Ficou ensaboado? Azar o seu. Ou pior, o meu.

Como se sabe, num hostel, os quartos são coletivos. A comunhão com o outro é incentivada e a oportunidade de aprender com o diferente é uma dádiva ofertada pela coletividade. Pois, sim. Sei que é. Me dispus a viver a experiência. Aqui, temos quatro beliches e tenho, como parte de tal dádiva, um belo combo de convivas:

Um manauara roncador, daqueles que capricham no volume e que fazem com que os nossos sonhos noturnos sejam povoados por tratores vorazes — e ininterruptos em suas labutas;

Um paulista chulezento — eis aí o azedume — e que faz questão de, toda noite, deixar o seu catingoso par de tênis levemente acomodado na única janela do quarto, o que contamina o ambiente a ponto de fazer os olhos arderem;

Uma catarinense resfriada, que pernoitou apenas uma vez, mas que é uma excelente hospedeira e eficiente disseminadora de perdigotos, visto que todos no quarto ficamos igualmente resfriados — o que só ampliou a voracidade do ronco do trator e piorou a nossa capacidade de respiração no ar rarefeito;

E, por fim, há um capixaba namorador, o que não seria um problema, se ele não trouxesse uma namoradeira carioca para que usufruam dos prazeres do amor, diariamente, sob a nossa presença — com direito a gemidos, aromas e plec-plecs que só a paixão é capaz de exalar;

Apesar de nos constranger e atiçar com sua performance sexual, não é este o grande mérito do capixaba. Já falei do azedume apresentado no primeiro parágrafo, sim? Falta, portanto, a podridão. Faltava. Pois é o seboso do capixaba o responsável por ela.

Há um banheiro em nosso quarto e o miserável já foi capaz de entupir o vaso sanitário, com um belo troço envolto por voltas e voltas de papel higiênico, por três desgraçadas e persistentes vezes. A harmonização de chulé, bosta, gripe, ronco e cheiro de safadeza é realmente enternecedora.

E, agora cedo, ao abrir a geladeira, tive uma bela surpresa. Havia comprado pacotes de pão, presunto e queijo, queria ter um café da manhã decente, amenizar a irritação… Pois num é que roubaram o presunto — o pacote inteirinho! E era um rechonchudo pacote, com bem umas vinte fatias de presunto…

Na crônica esperançosa da quinzena passada, terminei o texto desse jeito: “De um canto assim tão íntimo, espero não menos que ele seja, de fato, uma casa”. Agora, quero é que esse canto vá para o inferno!

Curitiba, 05 de junho de 2023.

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Anthony Almeida

Geógrafo, professor e cronista. Pesquiso a Geografia Literária, escrevo e estudo a crônica brasileira. Doutorando em Geografia. Editor-adjunto da Revista RUBEM.