O milagre do pinhão

Anthony Almeida
3 min readSep 20, 2023

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Sim, de vez em quando me acontecem prodígios. Não preciso ser tomado por ansiosas expectativas para que eles me ocorram. Também não preciso dizer palavras mágicas. Simplesmente acontecem. Concluo, então, que sou parte daquelas pessoas para as quais os seixos vêm prontos. Não preciso, portanto, passar séculos rolando rochas para que as pedrinhas polidas me apareçam.

Prodígio, sim. Milagre, não. O que é parecido, mas é diferente. Se milagre é sempre encarado como algo bom, do prodígio não se pode dizer o mesmo. Assim também ocorre com as pedras — pisar num seixo, por exemplo, por mais polido que ele seja, não é das coisas mais agradáveis da vida. Os prodígios são, digamos, espécies especiais de coincidências, que podem descambar para o bem ou para o mal. Há prodígios que são agradáveis e há outros que são irônicos.

Os prodígios, escreveu Clarice Lispector, só que numa crônica bonita sobre folhas, milagres e coincidências, podem ser compreendidos como o resultado de “linhas que incidem uma na outra e se cruzam e no cruzamento formam um leve e instantâneo ponto”. Tenho centenas de vivências que resultam do encontro dessas linhas. Os meus últimos prodígios, inclusive, me vieram numa irônica sequência de pontos. São raivinhas que venho passando no hostel em que estou hospedado. Uma a uma, elas vêm se acumulando.

Já quase empanturrado de raivinhas, mais uma me ocorreu e veio me encher ainda mais. Hoje, me programei para ficar no tal hostel, para não sair de “casa” e para usar o meu computador e trabalhar em home office. Pois a administração do hostel teve a graciosa ideia de fazer manutenção na rede elétrica justamente hoje. Assim, o destino teve o descaramento de me presentear com mais um belo prodígio: a falta de eletricidade e, consequentemente, de internet.

O que me restou, então, foi colocar o equipamento na mochila e, entre puto e esperançoso, sair em busca de alguma cafeteria com eletricidade e internet disponíveis. Foi aí que me veio a ocorrência de algo especial. Tive o meu milagre. O milagre do pinhão.

Andando pelo bairro, uma paisagem me chamou. Do outro lado da calçada, uma bela igreja ortodoxa, de arquitetura ucraniana, me convidou a atravessar a rua, a apreciar sua elegância mais de perto. Fui. E, diante da Ucrânia, me lembrei de Clarice. Sorri com a lembrança; seria ela mais um prodígio e, desta vez, dos agradáveis?

Não, ou não apenas. Ao atravessar a rua, me coloquei precisamente no ponto de convergência do milagre. Enquanto eu sorria com Clarice, me caiu um pinhão exatamente nos cabelos. A incidência da linha de milhares de pinhões transformados num único e, entre bilhões de pessoas, a incidência de reduzi-las a mim. Achei, desta vez, o destino de uma grande delicadeza.

Mas, não foi bem do jeito que acabei de contar que o milagre me aconteceu. Eu é que não quero reduzi-lo, e reduzir o encontro com Clarice, a mais um prodígio. O pinhão caiu, sim. Só que não foi nos meus cabelos. Maciço, rígido e pontudo, o fruto não é tão sutil quanto uma folha que cai. O pinhão desceu veloz e passou raspando e arranhando a minha bochecha. Me assustou, confesso. Mas não me feriu.

Pensei, então, que, ao invés do fruto, poderia ter caído em minha cabeça um galho da própria araucária. Aí, sim, tive motivos para sorrir do milagre. Aliviado, me abaixei para colher o pinhão e vi que o fruto estava bicado e até meio comido por um passarinho. Achei, então, que o milagre do pinhão foi mesmo uma grande delicadeza, um presente dado por uma gralha-azul.

Curitiba, 06 de junho de 2023.

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Anthony Almeida

Geógrafo, professor e cronista. Pesquiso a Geografia Literária, escrevo e estudo a crônica brasileira. Doutorando em Geografia. Editor-adjunto da Revista RUBEM.