O vulto sem a menina no colo

Anthony Almeida
4 min readMay 31, 2023

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Caminho pela Curitiba real. Caminho e, sob o generoso sol da manhã, venho ganhando, pegada por pegada, as entranhas da cidade, ainda resfriada pela noite de outono. Do bairro, me aprofundo pelas ruas do centro e, pedestre, escrevo o meu destino com os pés. Só que não venho sozinho.

Atento a tudo, meus muitos olhos vislumbram mais, muito mais, do que a realidade das ruas. Espectros, aparições, visagens. Vultos da Curitiba que li e imaginei se concretizam pelo percurso que testo. Não, não é somente um teste. São caminhos que esquadrinho e transfiguro.

O labirinto de ruas literárias, antes apenas lidas e concebidas por meio das crônicas de Luís Henrique Pellanda, transforma-se. Passo a passo, reconheço as vias, alguns edifícios e até os pombos que zanzam pelos ares e pelas praças me parecem familiares. Sinto ainda os urubus que, do alto de seus prédios, me espreitam. Sei dos seus métodos e não só me sinto, estou, de fato, bem vivo. Não tenho medo deles.

Leio as placas nas esquinas e, quase que íntimo, identifico os seus nomes. São os meus primeiros passos por estas ruas, mas não é a primeira vez que me movimento por elas, ainda que seja mesmo a primeira vez. Sigo e pisco um olho para a Saldanha Marinho, percorro a Cruz Machado, cruzo a Ermelino Leão, alcanço a Ébano Pereira. São ruas encantadas, têm almas, corpos, bocas — malditas ou não, ainda não sei — e me cumprimentam, me saúdam, confirmam, sim, rapaz, somos nós mesmas.

No retângulo formado entre elas, uma praça. Em estátuas de bronze, Santos Dumont, que a nomeia, e Romário Martins dividem o território com bancos e pessoas. Há gente sentada e gente andante. Nenhum deles, presumo, tão encantado quanto eu. A praça real é, apesar de ensolarada, bastante sem graça. Abriga e me presenteia, contudo, com a mais poderosa das visagens que desejei encontrar no chão de Curitiba. Ela é a Pracinha do Amor.

Satisfeitos com o seu banho de sol, homens e mulheres que se aquecem, sentados nos bancos, sequer suspeitam dos significados da Pracinha do Amor. Na verdade, talvez nem saibam que ela é a Santos Dumont…

Antes de chegar à cidade, comentei com um amigo curitibano:

— Uma das coisas que mais quero conhecer em Curitiba é a Praça Santos Dumont…

— Santos Andrade — me interrompeu e tentou me corrigir.

Mas eu não estava enganado. Sei que a Santos Andrade é a praça-cartão-postal da capital paranaense. Queria mesmo era a real Santos Dumont, a literária Pracinha do Amor. Até pensei corrigí-lo, explicar-lhe que é na Dumont que a cidade se enfeitiça e se faz literatura…

Deixei pra lá. Guardei comigo este encanto.

Também não pretendo dizer aos transeuntes e assentados que, nesta pracinha, há centenas de vultos, espectros de personagens que levitam, se insinuam e evaporam. Interpretam suas cenas e viram nada. Condensam-se e depois somem, como o vapor que saí do bafo de suas vozes, vira fumaça e desaparece.

Sento num dos bancos com duas intenções. Primeiro, um desejo humano, mundano e prático: também quero o afago solar. Depois, enquanto me aqueço, passo a contemplar o balé dos consideráveis vultos de personagens.

Passa, em diagonal, um homem com uma menina no colo, novinha, vestida em uniforme escolar, mas logo viram vapor. Voeja um sabiá-laranjeira com uma fita vermelha na perna e, quando pousa num dos encostos dos bancos e parece que vai cantar, apaga-se. Uma mulher maquiada, de vestido preto e saltos abusivos, vem da esquina entre a Saldanha Marinho e a Ébano Pereira e, diante de um dos gramados da pracinha, abre uma sacola da qual despeja pétalas multicoloridas, uma chuva de flores se espalha pelo ar, antes que caia, porém, desaparece, junto com a mulher. Uma adolescente pega velocidade em cima de um skate, tem os cabelos loiros num rabo de cavalo, as pontas cor-de-rosa, e quando se abaixa e joga o corpo para a direita, tentando uma manobra agressiva, dissipa-se no ar.

Não sei como a minha cara se mostra às pessoas de carne e osso que se esquentam na praça. Suponho, entretanto, que o deslumbramento com os fantasmas esteja estampado e bem nítido nas minhas expressões. Tanto que, num dos bancos mais adiante, um velho me encara e sorri. É o primeiro dos personagens que me olha nos olhos. Sei quem é, também o conheço. Tal como o outro homem, que leva a filha para a escola em seu colo, este aqui também costuma levar a sua neta para o mesmo colégio. Hoje, porém, não está na companhia dela.

Encaro o velho, sei que, da mesma maneira que as outras aparições, ele vai se evaporar em alguns segundos. Ele é apenas mais um dos fantasmas de vapor. Só que o velho se ergue do banco. Levanta-se e anda em minha direção. Titubeio, mas sustento o olhar. Miro os seus olhos e ele segue a mirar os meus. Vem se aproximando e empaca em minha frente. Sorri para mim. Seus lábios desenham uma mistura de deboche e desdém. Como é natural das visagens, ele sente que conseguiu me amedrontar.

Sinto um calafrio no cangote e tento fugir o olhar. Tento mas não consigo. O velho, mais uma vez, sorri com cinismo. Ao perceber minha vacilação, volta a caminhar. Atravessa o restante da pracinha e desce devagar pela Ébano Pereira.

Engulo seco e tento recuperar a compostura. Olho para a Ébano com a esperança do seu sumiço. Mas o velho continua a andar. Caminha devagar, cruza a faixa de pedestres e segue pela calçada. Não desparece, apenas é encoberto pelo prédio da esquina. Penso até em me levantar do banco, ir até o cruzamento para confirmar que ele vai desaparecer. Mas não, deixa pra lá. Chega de vultos por hoje.

Curitiba, 18 de maio de 2023.

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Anthony Almeida

Geógrafo, professor e cronista. Pesquiso a Geografia Literária, escrevo e estudo a crônica brasileira. Doutorando em Geografia. Editor-adjunto da Revista RUBEM.