Spotify, YouTube e a força de trabalho
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Hoje, ao rolar pela minha timeline do Twitter (apesar da promessa que fiz a mim mesmo que diminuiria o uso do aplicativo), acabei me deparando com o seguinte tuíte do Bruno Natal.
Para quem não entendeu ao que ele se refere, se trata do fato de cada vez mais produtores de podcasts, que costumavam entregar seus conteúdos livremente através de feeds RSS e agregadores gratuitos, estão distribuindo seu conteúdo com exclusividade no Spotify, onde conseguem monetizar o conteúdo mais facilmente.
(Não entrarei nos meandros da discussão do que é ou não é podcast e se conteúdo de áudio que não é distribuído por meio de feed pode ser tecnicamente considerado podcast)
Dentre os exemplos que seguiram este caminho, estão o Café da Manhã da Folha, o Hoje Tem da Leila Germano, o Bicuda do Não Salvo e, mais recentemente anunciado, o Respondendo em Voz Alta da Laurinha Lero.
Antes de eu chegar nos problemas que isso pode criar e como já existe histórico de como isso tem grandes chances de ser um tiro pela culatra, preciso dizer que não tenho nada contra alguém querer monetizar o conteúdo que produz e querer aumentar a renda ou viver dele. Muito pelo contrário, quero muito podcaster rico e sendo valorizado pelo trabalho árduo e incrível que fazem.
O problema é que, muito provavelmente (quase certamente, ouso dizer), apostar na distribuição exclusiva do podcast em uma única plataforma, dependendo dela para se manter, seja a forma errada de fazer isso.
Além do exemplo já citado pelo Bruno, o caso mais parecido e emblemático é o do YouTube.
Fundado por ex-funcionários do PayPal em 2005 e rapidamente adquirido pelo Google em 2006, a plataforma de vídeos mais famosa do planeta ainda contou com alguns concorrentes em seus primórdios, como o Vimeo (que inclusive foi fundado como um spin-off do CollegeHumor, antes mesmo do próprio YouTube).
Entretanto, se há uma coisa que o Google sabe fazer é monetizar seus produtos. E, sabendo que se não trouxesse aos criadores de conteúdo uma forma vantajosa de os estimular a publicar seu conteúdo no YouTube, na maior frequência possível, não conseguiria fazer o investimento de USD$ 1,65 bilhão vingar.
Portanto, lançou em 2007 o Programa de Parcerias do YouTube, no qual permitia que criadores que fossem recompensados financeiramente pelos conteúdos criados através de anúncios inseridos através do AdSense, com uma divisão, supostamente, na casa de 45% da receita dos anúncios à plataforma e 55% aos criadores.
E, no meio do caminho, por ter atraído tantos talentos à plataforma, se tornou a maior plataforma de vídeos do planeta, sendo o segundo site mais acessado no mundo, com uma receita anual de USD$ 15 bilhões de dólares.
O resto é história: anunciantes pressionando o YouTube, mudança nos algoritmos de distribuição de conteúdo, uma pressão velada da plataforma para que os criadores postem seus vídeos em conformidade com o que é procurado pelos anunciantes, uma pressão nem tão velada assim para que canais tenham maior frequência na postagem… Tudo isso sem poder tirar um dia de folga, já que isso poderia despencar o seu alcance.
Isto não é nenhum segredo. Não são raros os relatos de YouTubers de terem desenvolvido ansiedade, depressão e síndrome de burnout, uma vez que precisam produzir conteúdo diariamente, com a preocupação de atender as exigências invisíveis e misteriosas do algoritmo de distribuição e monetização de conteúdo, além da obrigação moral de entregar um bom conteúdo para o público que os acompanha.
Talvez fosse recompensador caso os bilhões de receita da plataforma fossem repartidos com os criadores. Porém, não é bem essa a situação. Segundo reportagem do The Verge, a receita do YouTube em “aquisição de conteúdo” seria de USD$ 8,5 bilhões. Se essa receita corresponde aos 45% que a plataforma obtém dos anúncios provenientes dos mais de 31 milhões de canais na plataforma, os criadores parceiros deveriam ter ganho ano passado, em conjunto, USD$ 10,3 bilhões de dólares.
Entretanto, cada vez mais se vê casos de criadores que tem o alcance de seu conteúdo aleatoriamente derrubado e receitas que mal mantém a luz de suas casas acesas.
E essa relação de produção de conteúdo para uma plataforma, cedendo (ou vendendo) a ela um percentual considerável do produto do conteúdo publicado, é claramente uma relação de trabalho.
Não confundamos com relação de emprego (que é o cara ser registrado em carteira, ganhar salário fixo, ter chefe e horário de trabalho todos os dias), apesar desta ser um tipo de relação de trabalho. A relação de trabalho consiste em uma parte vender uma parcela do produto do trabalho a uma outra pessoa, tendo como pressuposto que receberão algo em troca (que no caso é a plataforma que faria este intermédio entre criador e anunciante).
Essa relação de trabalho, como já dito antes, vem sendo extremamente penosa e tóxica com os criadores de conteúdo, principalmente os pequenos, que muitas das vezes dependem de financiamentos coletivos (que, aliás, também tomam uma parte do produto do trabalho) para viver, e ainda tem que sofrer com estafas e doenças mentais.
Você deve estar pensando “ora, se o criador não tá satisfeito, ele que vá para outra plataforma”.
De novo, o YouTube é o segundo maior site do planeta, nenhum outro site de vídeos alcança tanto o público. Não existe uma alternativa ao YouTube.
E, com o Spotify, não parece que será diferente. Já existem produtores que estão denunciando a redução de alcance e pressões para migrar para a exclusividade na plataforma. Daniel Ek, CEO da plataforma, disse em uma entrevista, de forma direcionada aos artistas que distribuem suas músicas por lá, “vocês não podem gravar músicas uma vez a cada três ou quatro anos e achar que é suficiente”.
Nesta mesma entrevista, já consta que 21% dos usuários do Spotify consomem podcasts. O plano de exclusividade tem a finalidade de que, justamente, o Spotify seja sinônimo de podcasts. Depois do Spotify se tornar a única plataforma viável para consumo de podcasts, a plataforma vai continar se adoçando para os podcasters ou vai aplicar a mesma tática do YouTube?
“Ok, eu tô ligado. Mas qual é a sua solução para o problema?”. Lembra quando eu disse que a relação entre produtores de conteúdo e plataforma é uma relação de trabalho? A história deixa claro que só existe uma forma dos trabalhadores garantirem que recebam o que é justo pelo produto de seu trabalho: se unir para demandar condições melhores ou até mesmo criarem as suas próprias condições para garantir a melhor receita para o que produzem.
No caso dos podcasters, que estão por aí por cerca de duas décadas, já até existe a Associação Brasileira de Podcasters, sendo que a atual diretoria, em seu manifesto de campanha, constou expressamente que a descentralização é uma prioridade da gestão.
E essa descentralização precisa ser algo a estar no consciente coletivo da podosfera, para garantir que a sua força de trabalho seja devidamente valorizada. Por que, senão estiver, será o mesmo filme que já vimos e já sabemos qual será o final, mais uma vez.
PS: o Manual do Usuário publicou um excelente texto sobre o mesmo assunto que vale ser lido também. Dá um pulinho lá.