Desconexão ou desatenção?

Mais uma armadilha de colonização

Kilûmbu Òkòtó / Rafaela Nascimento

Desconexão. A gente tem ouvido falar e tem falado muito essa palavra. A gente tem usado bastante esse termo nas reflexões acerca das questões que afetam homens e mulheres pretas na diáspora e no continente. Mas aconteceu algo comigo que me fez repensar sobre isso. Ou melhor, o que aconteceu me fez repensar sobre a aplicação que temos feito da palavra “desconexão”.

Senta que lá vem história!

No início de agosto, uma tia minha fez a passagem daqui pro Òrun. Dizer que é uma tia muito querida não faz nem sentido. Eu tenho um carinho muito grande por todos as minhas tias e tios. E é um carinho que vem da proximidade mesmo. Acho que todos ou quase todos os meus primos carregam esse sentimento desde a infância. Na família, apesar de ser grande e diversa em vários aspectos, sempre houve convívio constante. E mesmo na fase adulta, mesmo com a expansão da família e uma certa dispersão devido às ramificações de novas formações familiares, as reuniões não deixaram de acontecer.

Voltando à ocasião do falecimento… O fato ocorreu na noite de uma quinta-feira e nas primeiras horas da manhã da sexta, lá pelas 5h, uma de minhas irmãs me ligou pra dar a notícia. Mas a chamada dela me despertou de um sonho. Nesse sonho, um de meus primos tinha sido internado às pressas e eu me despenquei na mesma hora de onde eu tava pra ir vê-lo. Da mesma forma como aconteceu de verdade. Naquele dia já fazia quase dois anos da minha mudança pra São Paulo. Sou nascido e criado em São Gonçalo (RJ) e minha família é praticamente toda de lá também. Depois que acordei, depois do susto da notícia, comecei a lembrar do sonho e percebi que o contexto de distância entre onde eu estava e o hospital era o mesmo do real.

Ainda no sonho, no intervalo do trajeto para o hospital, liguei pra ter notícias e o filho desse primo atendeu. Na conversa ele dizia pra eu não me preocupar, pois meu primo estava bem. Estava no hospital apenas pra garantir que não teria nenhuma alteração de quadro ou algo do tipo. Quando cheguei no hospital as minhas tias que estavam lá disseram a mesma coisa: não se preocupe. Ele está bem.

Vocês entenderam de quem na verdade o sonho se tratava e o que essa fala de tranquilização significava, né? Pois eu não tenho a mínima dúvida. Era um aviso muito claro de que estava tudo bem com ela. De que todo o processo se deu de forma tranquila e tudo estava em seu lugar. Ciclo fechado e encerrado em plena conformidade tal como havia sido determinado. Tal como Ori (destino) queria. Pois minha tia tinha 79 anos e em sua passagem não deixou ponto sem nó.

Diante dessa história toda, deu pra perceber também a conexão entre mim e essa tia, não deu? Mas agora vai uma informação que pode colocar uma pulga atrás da orelha de muita gente… Essa minha tia era cristã há mais de 50 anos.

Todo mundo que me conhece, mesmo que superficialmente pelas redes, sabe o quão avesso ao cristianismo eu sou. Por tudo o que essa prática representa historicamente contra nosso povo. Mas o Dêge, num texto publicado na página Orixás e Pretagogias, nos trouxe um olhar que me fez mudar o prisma com o qual encaro essas manifestações não-negras em essência. Ele observou o quanto há de herança cultural africana nas manifestações não-africanas protagonizadas por pretos. E quando se fala de cultura aqui, a gente trata de tudo o que faz parte da visão de mundo de determinado grupo social. E no contexto em questão, trata-se de cultura enquanto manifestação cotidiana do ser, estar e fazer africanos. É realmente inegável a influência que essa herança tem em cada aspecto do que nós pretos vivemos e fazemos, por mais contaminados que possamos estar com expressões de culturas não africanas.

Tudo isso explica a conexão de que falei mais acima. E, a partir de tudo isso, é que passei a entender que não há desconexão. Em momento algum. O que ocorre é que, com a forte influência de uma cultura que tem por missão primeira dominar mentes e corpos alheios, essa conexão é escondida da atenção dos nossos “olhos”. Com a deformação da nossa subjetividade, nos trazem modelos de trabalho espiritual avesso ao de nossa origem e a gente acaba perdendo a atenção aos aspectos que nos fariam perceber todas essas conexões de forma natural. A conexão sempre esteve aí. Os nós que amarram as linhas que nos ligam a nossa ancestralidade cultural são tão firmes que nada capaz de rompê-los.

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