O que é “Heat Culture”?

Aprofundando Basquete
7 min readMay 18, 2023

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Imagem via: @andrew_siekai_design no Instagram

O ano é 2015. Novato escolhido pelo 40ª escolha no draft, Josh Richardson, está no ginásio trabalhando no seu arremesso de 3. Ele mal jogava, então era um bom jeito de gastar seus dias de folga. Um dia, Erik Spoelstra, já 2x campeão da NBA, conduz uma ordem:

“Arremessa 100 de 3, 10 a cada lugar, você tem que acertar 70”

De primeira, Richardson acertou 57. Spoesltra mandou ele correr a quadra 5 vezes.

Josh tenta de novo. Dessa vez acerta 63 ou 64.

“De novo, vai e volta” Spoelstra ordenou.

Depois da corrida, com uma recém-criada raiva, Richardson joga uma bola com força no chão e grita:

“P*rra!”

E mais surpreendente de tudo, Spo pareceu gostar da reclamação:

“Isso! Compita com você mesmo.”

Richardson, agora com mais confusão que raiva, tenta de novo.

69.

69 de 100 foi quanto Richardson acertou. Mas o objetivo era 70, então Spoesltra, só com o dedo indicador, manda ele ir e voltar.

Quando Richardson tenta pela 4ª vez, ele é bem-sucedido, acertou ainda mais que 70. Arremessou com propósito e foco. Foi diferente de antes.

Spoesltra comemora e diz:

“Você não pode só vir aqui e arremessar. Você não pode só vir aqui e fazer. Você tem que competir. Você tem que se levar ao limite. E você tem que fazer todo dia.”

Em setembro de 2017, Josh assinou uma extensão de seu contrato por 4 anos, pelo valor de 42 milhões de dólares. Hoje em 2023, é estimado que Richardson já ganhou 56 milhões de dólares pela carreira de 8 anos na NBA.

“Todo dia que eu arremesso, eu faço assim. É uma daquelas coisas. É a competição, é a pressão.” — afirma Richardson.

Josh Richardson continua na NBA, apesar de ser uma escolha de 2ª rodada, e estar envolvido em diversas trocas; incluindo a famosa troca por Jimmy Butler entre Miami e Filadélfia. Para uma perspectiva, somente 7 jogadores escolhidos na 2ª rodada daquele draft continuam na NBA, sendo esses:

Cedi Osman, Montrezl Harrell, Willy Hernangomez, Richaun Homes, Pat Connaughton, Norman Powell e Josh Richardson.

Richardson não sabia, mas quando ele descreveu a sua rotina, ele estava descrevendo “Heat Culture”.

“É a competição, é a pressão”

Eu acrescentaria: disciplina, direção e estrutura.

Outra interpretação, é a cultura do babaca, ou “as**ole” como Bam Adebayo definiria.

“Nós sabíamos que o Jimmy [Butler] era um babaca[…], todo mundo sabia disso, mas essa cultura abraça isso. Nós queremos que você traga essa babaquice pra fora, para que na quadra, nós temos 5 pessoas que são, tipo, cachorros” — Bam disse em uma entrevista com JJ Redick.

“Nós queremos que todos os 5 sejam babacas,” — ele continua “porque nesse ponto, vocês não vão aceitar m**da nenhuma e nós não vamos recuar de ninguém”.

Essa cultura tão bem definida, facilita para Miami não só ser vitorioso, como também ajuda na identificação dos prospectos que se encaixam no sistema presente. Ömer Yurtseven, por exemplo, apesar de ser um bom jogador entrando no draft de 2020, pela sua alta idade para um novato(21, quase 22 anos), o pivô foi undrafted. Mas assim como Caleb Martin, que teve que assistir seu irmão gêmeo, Cody, ser escolhido no início da 2ª rodada. E Max Strus em 2019, que foi considerado “egoísta” e “preguiçoso” defensivamente. E Gabe Vincent em 2018, considerado limitado atleticamente, Pat Riley e a franquia viram um potencial não visível para a maioria do mundo, e confiaram nos seus prospectos favoritos, antes de qualquer um. Hoje, Caleb, Max e Gabe, são grandes protagonistas no elenco do Heat, ajudando o time a chegar nas finais em 2023. Yurtseven foi grande parte da campanha da temporada regular do Heat de 2021–22, e quase foi titular do Heat esse ano, antes de uma contusão que o tirou das quadras pela temporada. Mas ele voltará mais forte, porque é isso que “Heat Culture” é, a disciplina, a direção, a estrutura e a pressão o levarão longe.

Interessantemente, a cultura não é definida por vitórias, e mais pelo trabalho e atitude daqueles que se integram nela. Curioso já que Miami é uma das franquias mais vitoriosas da NBA, no seu curto tempo de existência. Em apenas 35 anos, Miami já tem 3 títulos da NBA e 6 títulos de conferência, mas não é isso que a defini.

Armador lendário, e campeão com o Heat em 2006, Gary Payton parece ter a resposta:

“Aqui está o grande segredo. Heat Culture não é sobre ganhar, é sobre COMO você ganha”.

“É se arrastar até a linha de chegada, se for preciso. Não deixando NADA no tanque. É estar na melhor forma da sua VIDA. É sempre querer mais: de si, dos companheiros, até do jogo. É ser aquele tipo de cara que podem falar mal de você na mídia — sobre sua atitude ou seu ego, ou o que quer que seja — mas Pat [Riley] sabe que você vai dar a ele aquele valentão na quadra.”

Essa fala de Payton provavelmente te lembrou de um jogador do Heat hoje, o “babaca”, “câncer de vestiário” e “um companheiro de time ruim”, hoje na sua 3ª final de conferência em 4 anos pelo Heat; Jimmy Butler.

“Sim, é real.” -afirmou Butler. “Eu acho que mais do que qualquer coisa, é a confiança que temos nos outros e a confiança que você tem que ter com você mesmo para reconhecer como você pode ser especial nessa liga, nesse momento ou nessa organização”.

É claro que Butler mencionaria a sua confiança em si. Expulso de casa aos 13 anos, sem prestígio no basquete colegial, escolhido pela última escolha da primeira rodada do draft de 2011, Butler tinha que confiar nele mesmo, porque ninguém mais confiou.

Jimmy Butler tem jogado com “Heat Culture” tatuado na testa o tempo todo, a gente só não sabia.

Jimmy Butler, na sua entrevista com um único repórter do Draft.

É difícil personificar essa cultura, cada pessoa responderá diferentemente. Alguns diriam Pat Riley ou Dwyane Wade. Mas um fortíssimo argumento pode ser feito que Erik Spoelstra, o atual treinador do time, é Heat Culture personificado.

Imagine o banco de um time durante o jogo. Tem o treinador principal, geralmente mais perto do meio da quadra, os treinadores assistentes sentados ao lado dos jogadores, e logo atrás deles, quase na torcida, tem membros da comissão técnica de menos protagonismo. Eles ficam mais perto da torcida, por serem tão coadjuvantes, que a torcida nem conhece o nome para atrapalhar de alguma forma. Lembra deles? Erik Spoelstra começou como um deles.

Spoelstra era um coordenador de vídeo em 1995, pouco antes da chegada de Pat Riley. Curiosidade sobre o coordenador de vídeo na NBA: É a posição mais baixa da comissão técnica. Erik trabalhava, em geral, com Dwyane Wade individualmente, um cargo bem diferente do que o esperava no futuro. Com a saída de Pat Riley em 2008, Spo foi nomeado o treinador principal da equipe. Sobre a decisão de promover Spoelstra, Riley disse:

“Este jogo agora é sobre treinadores mais jovens que são tecnologicamente qualificados, inovadores e trazem novas ideias. É o que sentimos que estamos conseguindo com Erik Spoelstra. Ele é um homem que nasceu para treinar.”

Spoelstra foi da posição de menor prestígio, para o melhor treinador da liga. Além disso, foi o primeiro, e atualmente único, treinador de descendência asiática-americana da história da liga, e na história das quatro principais ligas americanas.

Se a história dos indivíduos de Miami tivesse um escritor, ele seria muito criticado pela repetitividade nos seus roteiros. Um jovem cordenador de vídeo, de descendência filipina, assumir o cargo de um dos maiores treinadores na história do esporte? Está muito parecida com a história do jovem expulso de casa aos 13 anos, que busca lentamente seu espaço em uma liga que não o entregou o respeito que merece. Ou com a história do jovem escolhido na 40ª posição do draft, e que se enlouquecia com a falta de minutagem e treinos estranhos de um treinador que parecia gostar de sua frustração. Ou com a do turco considerado velho demais para ter potencial real. Ou do irmão na sombra de seu gêmeo. Ou do nigeriano armador baixo demais para a liga tão física. Ou do branquelo que só sabia arremessar de 3.

Porque isso é a “Heat Culture”, quando só você acredita no seu potencial, quando tudo que você tem é o seu corpo e uma imensurável vontade de ganhar, o Miami Heat está pronto para te entregar disciplina, estrutura, e acima de tudo, uma casa.

Esse texto foi inspirado no caráter místico atribuído à cultura do Heat, como se fosse algo inexplicável e impossível de replicar. Mas se você perguntar para qualquer membro da organização, você saberia que não existem acidentes, e que essa cultura está presente dentro deles desde o início; só demorou para alguém notar.

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