“É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio”

Marlos Ápyus
10 min readJul 16, 2020

--

05.12.2017- Brasilia/DF — Gilmar Mendes participa do seminário Poder Judiciário e Eleições. Foto: Nelson Jr./ASCOM/TSE

No 11 de julho passado, em videoconferência com a revista IstoÉ, Gilmar Mendes afirmou que as Forças Armadas, ao ocuparem o Ministério da Saúde na maior crise sanitária em um século, estaria causando um enorme prejuízo à própria imagem. Para o terceiro membro mais antigo do Supremo Tribunal Federal, “é preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio“.

Ainda em novembro de 2019, militantes dos direitos humanos protocolaram no Tribunal Penal Internacional uma denúncia contra Jair Bolsonaro por “incitar o genocídio” e “promover ataques sistemáticos contra os povos indígenas”. Em abril passado, foi a vez de a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia denunciar o brasileiro por crime contra a humanidade ao estimular ações que aumentavam o risco de proliferação da covid-19. Em junho, a corte sediada em Haia prometeu analisar uma representação semelhante do Partido Democrático Trabalhista. Até Ysani Kalapalo, youtuber indígena que Bolsonaro levou à ONU para confrontar a agenda que o cacique Raoni Metuktire popularizara no mundo, vem confessando que se decepcionou com o presidente que ajudou a eleger.

Eles avisaram

Mendes já havia alertado Bolsonaro de que o descaso do presidente para com o novo coronavírus, somado ao estrago que a gestão provoca na Amazônia, poderia resultar em problemas no TPI. Após, ainda em 2019, ameaçar intervir via STF na política indigenista da gestão, Luís Roberto Barroso determinou cinco medidas que o governo Bolsonaro deveria adotar este ano para evitar óbitos indígenas durante a pandemia.

Dissimulação

Mesmo assim, os generais que integram o Palácio do Planalto fingiram surpresa. Fernando Azevedo e Silva assinou na PGR uma representação do Ministério da Defesa contra o membro do Supremo. Augusto Heleno, chefe do GSI que nunca conseguiu disfarçar as pretensões golpistas, aproveitou para mais uma vez afrontar o STF apoiando publicamente a nota assinada pelos comandantes das Forças Armadas. E até Hamilton Mourão, vice-presidente da República, reclamaria que Gilmar “forçou a barra“.

Indigenista ou higienista?

Para Rodrigo Amorim, que se tornou o deputado estadual mais votado no Rio de Janeiro por obra do clã Bolsonaro, “quem gosta de índio, que vá para a Bolívia“. Para Luiz Antonio Nabhan Garcia, secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, “o maior latifundiário do país é o índio“. Como ministro da Justiça e, portanto, acima da Fundação Nacional do Índio, Sergio Moro se limitou a cumprir ordens do Palácio do Planalto, não deixou qualquer legado, e ainda travou a demarcação de 17 terras indígenas.

Quais privilégios?

Mas é possível compreender melhor a política indigenista do governo Bolsonaro partindo da reunião ministerial de 22 de abril. Dela, destacou-se uma fala em que Abraham Weintraub diz odiaro termo ‘povos indígenas’“. Antes de ser demitido com o privilégio de ser indicado a um cargo que pagava salário de R$ 115 mil no Banco Mundial, o ainda ministro da Educação argumentou que todas as etnias, como forma de acabar com o que chamava de — veja bem — “privilégio“, deveriam ser tratadas simplesmente como um mesmo povo, o brasileiro.

A questão de valores

Mas a fala de Damares Alves foi mais emblemática. A ministra, que supostamente atua na defesa dos Diretos Humanos, a todo tempo afirmava que o governo precisaria trabalhar “a questão dos valores“. O conceito confuso é explicado por uma série de exemplos que mencionam 1,3 milhão de ucranianos, 1,5 milhão de ciganos, um número de seringueiros acima do imaginado, discussões da Suprema Corte sobre aborto, a presença de feministas em algum ministério, e uma tentativa jamais comprovada de incriminar o presidente contaminando indígenas com o Sars-CoV-2. Mas, ao ressaltar que os quilombos estariam crescendo, a preocupação da ministra com “a questão de valores” soou mais nítida: “os meninos estão nascendo nos quilombos, e seus valores estão lá“.

Totalitarismo

Em outras palavras, a ministra queria que o Governo Federal adotasse uma agenda que controlasse até mesmo os valores que minorias cultivam nas próprias comunidades. Trata-se de uma lógica medieval, que veio ao Brasil ainda na colonização, e até hoje reverbera em monarquistas influentes no governo, como Dom Bertrand. Para o porta-voz da família imperial brasileira, “a solução para o problema dos índios” seria “catequizar, dar civilização e cultura“, ou seja, “fazer o que a igreja fez ao longo de cinco séculos“.

Evangelizando

Damares é pastora da Igreja do Evangelho Quadrangular. Mais do que isso, dirigia uma ONG que, sob a alegação de que sofriam maus tratos, coisa que o Ministério Público contesta, gabava-se de resgatar crianças em aldeias indígenas. Em fevereiro passado, um áudio comprovou que, justamente para convertê-los ao cristianismo, o pastor Ricardo Lopes Dias assumiu a área que, na Funai, lida com grupos isolados. Na época, metade destas aldeias já era assediada por grupos religiosos. Em março, uma ONG norte-americana prometia usar um helicóptero para evangelizá-las no Brasil. Em maio, enquanto se vendiam ao governo Bolsonaro para blindá-lo de um processo de impeachment, políticos do centrão manobraram para que missões religiosas em territórios ocupados por tais etnias fossem legalizadas pelo projeto de lei com medidas de proteção aos povos indígenas durante a pandemia.

Menos médicos

O desprezo do bolsolavismo com a causa deu as caras antes mesmo de o presidente ser eleito. Promessas inconsequentes durante a campanha estimularam Cuba, ainda em 2018, a retirar do Mais Médicos os profissionais que atuavam no programa, o que reduziria em 81% o time que atuava na Secretaria Especial de Saúde Indígena. No ano seguinte, já depois da saída dos cubanos, e após 5 anos de quedas, as mortes de bebês indígenas voltaram a crescer.

“Agora Bolsonaro é presidente”

Assim que Bolsonaro assumiu a Presidência da República, uma série de ataques ocupou as manchetes. No terceiro dia de governo, madeireiros invadiram uma terra indígena no Pará. No 13º dia, aos gritos de “agora Bolsonaro é presidente“, grileiros invadiram terras indígenas em Rondônia. No 16º dia, veio a notícia de que terras indígenas tinham sido invadidas no Maranhão.

“Pessoas de bem”

Em julho de 2019, quando o Ibama tentou conter madeireiros em Rondônia, findou com um caminhão incendiado. Ao visitar a região, Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, tratou os invasores como “pessoas de bem que trabalham neste país“. Ao fim do mesmo mês, no Amapá, foi denunciado o assassinato de um cacique durante a invasão de grileiros à única terra indígena autorizada a explorar ouro. Mas um laudo preliminar da Polícia Federal descartaria qualquer confronto, e sugeriria afogamento como causa da morte.

Primeira vez em 11 anos

Em dezembro passado, dias após denunciar em Brasília a ação ilegal de mineradores e madeireiros, uma líder indígena teve a casa invadida no Pará. Agora, em 2020, pela primeira vez após 11 anos de demarcação, a Raposa Serra do Sol registrou uma invasão garimpeira em Roraima. Em vídeo, o senador Telmário Mota, que se gabava do apoio ao presidente da República, surgia incentivando crimes ambientais e invasão de terras indígenas.

Crime ambiental

Em fevereiro, um militante bolsolavista foi detido tentando impedir a fiscalização do Ibama em Ituna Itatá, no Pará. O que, de certa forma, alerta para o estrago ambiental de tanta invasão. Com intensidade maior na área ocupada pelos grupos isolados, o desmatamento tinha crescido 74% nas terras indígenas.

Declarou guerra

Para Eduardo Viveiros de Castro, “o Brasil tem um governo que declarou guerra aos povos indígenas. O governo Bolsonaro vê os índios como um obstáculo, como algo que precisa acabar. Os governos anteriores nunca atacaram os índios dessa forma“. Mas a constatação do antropólogo não é mera birra ideológica.

Ignorando a maioria

Quando o governo Bolsonaro se iniciou, uma maioria de 60% dos brasileiros se dizia contra a redução de áreas destinadas às terras indígenas. Mesmo assim, no primeiro dia de mandato, Jair Bolsonaro retirou da Funai o poder de identificá-las, delimitá-las e demarcá-las em todo o país. Pior: entregou as funções ao Ministério da Agricultura, ou à pasta que atende aos interesses do agronegócio. Quinze meses depois, o Greenpeace apontava que 94% da terra indígena Ituna-Itatá, no Pará, havia sido declarada por fazendeiros. E era nítido que o governo Bolsonaro havia sistematizado a prática, somando desde o início da gestão 42 fazendas certificadas de maneira irregular.

Ocupação da Funai

Em junho de 2019, Franklimberg Ribeiro de Freitas caiu da presidência da Funai sob pressão dos ruralistas e do próprio Bolsonaro. O presidente não escondia a insatisfação com o impasse gerado com a etnia Waimiri-Atroari a respeito da linha de transmissão de energia entre Manaus e Boa Vista. E, para a vaga, nomeou um delegado da Polícia Federal escolhido justamente pela bancada ruralista.

Prioridade aos ruralistas

No final de 2019, a Funai decidiria que não mais atenderia comunidades indígenas que vivessem fora de áreas completamente demarcadas. Dois meses depois, famílias indígenas passavam fome na fronteira do Mato Grosso do Sul com o Paraguai. Em abril de 2018, numa parceira com o Ministério da Agricultura, a Funai abriu a possibilidade de venda de áreas em terras indígenas que ainda aguardavam homologação.

Risco de desaparecimento

Em fevereiro passado, Jair Bolsonaro assinou um projeto de lei autorizando a exploração de terras indígenas para mineração, garimpo e produção de energia elétrica. Além de riscos graves ao meio ambiente, o Ministério Público viu na iniciativa até mesmo o potencial desaparecimento de diversos povos indígenas. Apesar de o texto reservar-lhes uma fração dos ganhos, as comunidades atingidas só teriam poder de veto sobre a ação de garimpeiros. Em abril, contudo, o Ministério do Meio Ambiente exonerou servidores do Ibama que agiam contra garimpos ilegais. Durante o governo Bolsonaro, após 6 anos de queda, a exploração minerária em terras indígenas praticamente dobrou.

Sabotagem sanitária

Nada se compara, contudo, ao drama vivido pelos indígenas brasileiros com a pandemia em curso. Em 22 de junho, num levantamento que já demanda acréscimos, essa coluna falou sobre como Jair Bolsonaro vem sabotando o combate ao novo coronavírus. E, como era de se esperar, a sabotagem não impactaria apenas a população urbana.

Nomes

Em 13 de abril, com o país já somando mais de 23 mil casos e 1.328 óbitos por covid-19, a Funai não tinha executado um único centavo dos R$ 11 milhões que recebera para proteger a população indígena do Sars-CoV-2. No que testaram positivo para covid-19 no início de junho, profissionais de saúde deixaram às pressas a aldeia dos Kanamari. Um dia depois, três indígenas testaram positivo no local. No dia 12, veio a notícia de que a doença chegara à reserva do Xingu. Passados dois dias, a confirmação de uma primeira morte, no caso, de um bebê kalapalo. Ao final do mês, localizaram no cemitério e no IML de Boa Vista os corpos de três bebês Yanomami que morreram entre abril e maio, sob suspeita de covid-19, em hospitais públicos de Roraima. Agora, em julho, a doença levou a vida de Domingos Mahoro, cacique da etnia xavante, num hospital público de Cuiabá.

Números

Em 16 de maio de 2020, a doença já havia causado as mortes de 92 indígenas no Brasil. Em 14 de julho, a conta chegou a 501 óbitos, com 131 povos afetados. Para efeito de comparação, a Comissão da Verdade contabilizou 434 mortos e desaparecidos durante os 21 anos de ditadura militar. Trata-se do período em que o Brasil foi sequestrado pelas mesmas Forças Armadas que, agora, tentam lavar as mãos diante das barbaridades cometidas pelo governo do qual participa com quase 3 mil militares da ativa.

Sem eficácia, com ameaça

Em 15 de maio, com o novo coronavírus avançando pelo país, Nelson Teich pediu demissão. O segundo ministro da Saúde deste governo não aceitou o ultimato presidencial, que exigia, mesmo sem eficácia comprovada, a ampliação do uso de cloroquina no tratamento da covid-19. O presidente tanto sabe dos riscos que, ao se submeter à medicação, realizava eletrocardiogramas diários para conferir se os efeitos colaterais não causavam estragos na própria saúde. Desde então, sob a gestão interina do general Eduardo Pazuello, a pasta vem sendo tomada por militares. Agora, Robson Santos da Silva, secretário especial de Saúde Indígena investigado pela suspeita de, mesmo com a doença, trabalhar presencialmente e sem proteção no órgão, ameaça processar indígenas que denunciem a distribuição de cloroquina em aldeias.

Vetos e anistia

Há uma semana, Bolsonaro sancionou o projeto que busca proteger os povos indígenas durante a pandemia, mas vetou a obrigação de o governo fornecer água potável, leitos hospitalares e acesso facilitado ao auxílio emergencial. Antes, o presidente já havia anistiado grileiros. Antes disso, um dia após o Congresso devolver a demarcação de terras à Funai, editou uma outra Medida Provisória novamente desviando a responsabilidade ao Ministério da Agricultura. E, antes disso, já havia cancelado até mesmo um projeto que criaria uma criptomoeda indígena.

Alternativa

Ainda no início do mandato, em uma manifestação carregada de racismo, o presidente argumentou que “cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós“. Na ocasião, Bolsonaro anunciava Hamilton Mourão como chefe do Conselho da Amazônia. Na campanha, em uma primeira agenda pública após ser confirmado como candidato, o vice-presidente afirmou que o povo brasileiro havia herdado uma suposta preguiça indígena. Com a polêmica nas manchetes, declarou-se indígena ao Tribunal Superior Eleitoral. À frente do Conselho da Amazônia, deixou Ibama e Funai de fora, mas garantiu espaço a 19 militares. E, mais recentemente, minimizou os vetos presidenciais alegando que “o indígena se abastece da água dos rios que estão na sua região“, cabendo ao governo socorrer apenas as etnias servidas por rios contaminados em atividades ilegais.

Genocídio, etnocídio e ecocídio

Em janeiro, lideranças de 45 etnias diferentes, em apoio ao cacique Raoni, leram um manifesto alertando que estava em curso “um projeto político do governo brasileiro de genocídio, etnocídio e ecocídio”. Por tudo o que foi aqui levantado, é possível afirmar que denunciavam uma emergência real.

O projeto deles

No início de junho, Piero Leirner respondeu à BBC que não fazia sentido responder se os militares aprovavam ou não o governo Bolsonaro. Porque, segundo o antropólogo, “eles são o governo, e Bolsonaro é o projeto deles“. A turma fardada, em benefício de quem rendeu-lhe poder, fama, ampliação orçamentária superior à praticada com educação e saúde, ajuste salarial e até uma reforma previdenciária para lá de generosos, pode até constranger o STF com ameaças, por vezes, golpistas. Mas fatos são fatos. E a história já os registrou.

Para compartilhar

Uma versão mais completa desse artigo pode ser lida e compartilhada por este link.

Para ajudar

Aos que gostaram da leitura e gostariam de ajudar, é possível neste link fazer doações de qualquer valor via Catarse, PagSeguro, PayPal e PicPay.

Para receber por e-mail

E, neste link, é possível se cadastrar para receber atualizações dessa coluna por e-mail.

--

--

Marlos Ápyus

Músico, jornalista e web designer, não necessariamente nessa ordem.