Crônica: “Portas e janelas ficam sempre abertas pra sorte entrar”*

Revista DOC
4 min readApr 9, 2021

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Por Vanessa Lage**

O impacto foi grande para mim e — acredito — para muitos da minha geração. Eu costumava repetir em eco uma frase que ouvi certa vez em um vídeo do sociólogo espanhol Manuel Castells, através da qual ele alertava para um drama do educador “moderno”: somos professores do século XX, dando aula para alunos do século XXI, com metodologia do século XIX. É isso, “professor”, antes da pandemia da Covid-19 virar de cabeça para baixo nossas vidas e crenças, eu resistia aos avanços tecnológicos, escolhendo a exclusão digital até onde ainda conseguia.

Com certo constrangimento, diante da motivação de tudo isso, devo dizer que concordo com o historiador brasileiro Leandro Karnal: nunca tivemos a oportunidade de aprender tanto. Melhorei meus slides, conheci plataformas, comprei equipamentos, descobri cantos domésticos antes desapercebidos em suas potencialidades, apesar de tudo isso ser imposto pela dura realidade da reclusão involuntária. Uma guerra para que a educação continuasse foi o que se deu em nossos lares e em nossos comportamentos tão acostumados com a rotina da escola que funcionava lá no endereço do colégio, pronta, com suas carteiras enfileiradas e seu quadro esperando nossas letras e nossos conhecimentos.

Mas, não, não era só isso. Era a necessidade de criar três espaços de homeschooling em uma só casa de pais professores e filho estudante. Foi luta. As paredes de vidro que nos traziam a experiência bucólica da vida entre árvores de frutas tornaram-se um pesadelo: a luz estourava em nosso rosto e chegamos — juro — a pensar em papel pardo para cobri-las, garantindo a integridade estética (ou acabando de escangalhá-la). O “cenário” de livros precisava ser invertido para que os alunos pudessem ver um pouco do caminho que nos levou até eles, até aquela aula, até a formação exata para merecer a audiência remota, mas as prateleiras eram fixas. Pesadelo atrás de pesadelo. O corta[1]dor de grama ligado todas as manhãs no condomínio competia com nosso discurso. A ausência de portas nos cômodos — uma escolha consciente na construção da casa — permitia, agora, ao desavisado, que chegava às nossas costas já falando, ter que se desculpar diante do zoom de 100 pessoas.

Conheceram nossas casas. Nossas famílias. Nossa vida antes privada.

Entre plantas — muitas plantas — descobrimos os risos. A samambaia que clamava pela luz do sol e precisava de recuperação fora da “sala-de-aula-de-casa” tinha a ausência percebida pelo aluno e pela família dele: “-Professora, minha mãe passou aqui e perguntou sobre sua samambaia… tá tudo bem com ela?”. E eu, desnudada por todos, longe do tablado tradicional, pensava: “- Sua mãe? Ela tá aí?”. A planta mal posicionada recebia críticas: “- Professora, meu pai tá rindo aqui: parece uma carnavalesca peruca essa samambaia aí atrás da sua cabeça!”. E eu não mais tão surpresa: “- Seu pai também tá aí? Por que não me falaram antes? Vocês gravaram? Eu já virei figurinha de Whats App?”.

Então, não foram quinze dias (pensamos um dia ser só quinze?). Não foram trinta dias (teriam bastado para o tamanho do aprendizado?). Não foram seis meses (em que momento sentei na cadeira atrás da mesa e com minhas plantas, celular, computador e livros — as armas da minha rotina em 2020 — e dei “aquela aula”?). A música “Paciência” do Lenine tocou no streaming da abertura de alguns dos colóquios escolares; as lágrimas fecharam alguns dias de câmeras emocionadas de saudade e de comoção com os noticiários. Vimos o descortinar de uma força absurda para vencer qualquer obstáculo que nos impedisse de olhar com a ternura e a bravura necessárias para a evolução do conhecimento em tempos de isolamento. Fizemos isso em nossos lares. Eles estão prontos, mas quero voltar para o colégio. Quero tocar meus pares. Eu levo a samambaia para lá. Sei lá. A convivência na escola é ar que precisamos respirar.

Com blecaute, sem luz estourada, com câmera potente, com máquinas paramentadas, sem portas fechadas, com janelas abertas, com ruídos incomuns, com livros espalhados, sem medo e com muita vontade, fomos heróis em 2020. Descobrimos que a escola é onde estamos com vontade de aprender. Mas, sim, contamos os dias para o retorno ao abraço rápido no corredor enquanto o sino toca.

Nem sei dizer quem aprendeu mais: fui eu ou foram meus alunos?

* Verso de “Vilarejo”, canção de Marisa Monte

  • * Vanessa Lage tem formação nas áreas de Educação e de Linguística e é professora de Língua Portuguesa e de Redação do Colégio e Curso CAVE

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