Uma resposta aos (ressentidos) críticos dos calvinistas e Ronilso Pacheco

Gustavo Arnoni
10 min readFeb 5, 2020

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por Gustavo Arnoni

Não é de hoje que existe um grupo progressista, defensor do “formas livres de amor”, “socialismo cristão” e “teologia negra” que faz uma crítica de cunho pessoal e ressentido, distante do que é objetivo, aos calvinistas “conservadores”. Esse texto não é uma exposição dos mesmos, mas uma resposta aos erros do texto de Ronilso Pacheco, publicado ontem (04/02/2020) no The Intercept (https://theintercept.com/2020/02/04/evangelicos-calvinistas-bolsonaro/).

Vamos ao texto e crítica.

Ronilso inicia o texto destacando a nomeação de Benedito Guimarães Aguiar Neto para presidência do Capes, evidenciando a repercussão do que ele chama “posicionamentos anticiência” do mesmo. É interessante notar que as qualificações e experiência de Benedito como reitor de uma das maiores universidade do Brasil (Mackenzie) não são destacadas, mas sua crença em “Design Inteligente”, como se fosse relevante às qualificações do presidente do Capes a forma com a qual ele crê na criação do mundo. Ronilso chega a afirmar que a turma do “Design Inteligente” tenta “impor” essa teoria nas escolas e universidades, e que isso é um “risco real”.

Em minha experiência como professor de escola pública, com uma colega de trabalho professora de biologia, inicialmente presbiteriana, e mesmo com outros colegas, nunca se viu nem indícios de qualquer tentativa de imposição dessa fé. Os professores evangélicos até comentam sobre a criação especial por Deus, mas nunca deixam de usar as teorias evolutivas conforme nos livros didáticos, principal guia dos temas.

Ronilso prossegue dizendo que a nomeação de Aguiar “marca presença cada vez maior e influente no núcleo do governo de um grupo evangélico tão reacionário quanto discreto: os calvinistas”. Não há nenhuma definição, descrição ou conceituação do que Ronilso entende por “reacionário”, é tipicamente um título atribuído para desmoralizar o adversário. Existem calvinistas reacionários, e existem outros. Ele cita em seguida, por exemplo, Guilherme de Carvalho, cujos princípios de pensamento econômico e social repousam em Abraham Kuyper e Bob Gooudzwaard, em muitos meios classificados até como progressistas, dependendo de quem olha (Kuyper defendeu o sufrágio universal/feminino na Holanda; Gooudzwaard critica a ideologia de progresso no capitalismo).
Em seguida, sem fazer a distinção necessária, cita o (lamentável) episódio da Igreja Presbiteriana Central de Londrina, na qual o pastor pediu aos membros que assinassem o apoio à criação do novo partido de Bolsonaro (Aliança pelo Brasil). O que Ronilso não cita é que a (1) postura é contrária às diretrizes presbiterianas de não fazer propaganda política de púlpito (a IPB lançou uma nota de esclarecimento sobre o evento) e (2) que a igreja supracitada tem sido polêmica em diversas posturas e práticas consideradas neopentecostais.

Há uma declaração importante de Ronilso, que vale citar o paráfrago integralmente:

A diferença principal dos evangélicos calvinistas dos demais é sua compreensão de que o cristianismo deve reivindicar sua hegemonia sobre a cultura. Na prática, isso significa uma concepção que tolera — e até promove — a ideia de superioridade cultural e moral do cristianismo e prega como missão influenciar a cultura. Em outras palavras, a “cosmovisão cristã”, um outro conceito utilizado, deve estar em tudo, orientando e dominando o mundo.”

Precisamos pontuar:

  1. O cristianismo deve reinvindicar sua hegemonia sobre a cultura — na verdade, o calvinismo advoga a sua influência sobre a cultura, não hegemonia. A fala de Ronilso sugere que o calvinismo propõe uma imposição da fé e valores sobre a cultura, o que é falso. Apenas um minúsculo grupo calvinista radical defende, e não se trata das pessoas citadas no texto.
  2. Que o calvinismo tem a concepção de superioridade moral e cultural. O argumento pode ser devolvido em forma de pergunta: qual grupo, cultura ou religião não crê que seus valores são superiores aos outros? Até o progressista sensato crê que a tolerância é melhor que a tirania. Valores não são “iguais” em todos os tempos e lugares.
  3. A “cosmovisão cristã deve estar orientando e dominando o mundo”. O fantasma da cosmovisão há tempos assombra os progressistas. A base da cosmovisão são amores, amores orientam construções teóricas, narrativas e práticas. A cosmovisão cristã defende que, se não tivermos princípios para pensar a realidade solidificados na fé cristã, obteremos esses princípios de outros lugares, amores de outra “cidade”. Isso em nada sugere um domínio do mundo, mas que o cristão em sua ação no mundo tem por guia a palavra de Deus e seus nortes criacionais, lapsários e redentivos.

Adiante, Ronilso afirma que essa é apenas uma das posturas possíveis dos seguidores de João Calvino, uma vez que este defendia a liberdade religiosa, e que esta não parece ser a interpretação presente no grupo junto ao governo do governo Bolsonaro. Aqui a falácia não poderia ser maior. O projeto do Guilherme de Carvalho junto a sua pasta no governo é justamente do pluralismo e liberdade religiosa. Guilherme chamou representantes até de grupos LGBT’S para discussão do seu projeto. Ou Ronilso desconhece, ou mente.

Surge uma luz de honestidade: Ronilso destaca que o modo de ação dos calvinistas são diferentes dos reconhecidos líderes pentecostais e neopentecostais. Enquanto estes são explícitos e excêntricos, os calvinistas foram cautelosos em apoiar (ou não) Bolsonaro, sem fazer palanque.

Contudo, a honestidade retrocede. Afirmando que o grupo não buscou grandes ministérios, Ronilso diz que os calvinistas optaram por pautas morais, e que isso feriria a laicidade do Estado. Há uma confusão gigantesca aqui. Como gosto de fazer, irei pontuar:

  1. A pauta moral pertence à sociedade civil, não apenas ao governo. Os calvinistas envolvidos representam uma parcela significativa da população evangélica e católica. Não é a moralidade que diz respeito à laicidade, mas a imposição de uma religião em particular.
  2. A laicidade no Brasil não pressupõe ausência de princípios religiosos. Não é como na França, em que a laicidade tem conotação anti-religiosa. Aqui, a laicidade é permitir a expressão de diversas crenças e valores. Não vi nenhuma iniciativa desses calvinistas para eliminar judeus, umbandistas ou ateus da esfera política.
  3. Não existe neutralidade religiosa. Qualquer pessoa, valor, lei construída, pressupõe crenças sobre o que é bom e mau, justo e injusto.

Ronilso parte, então, para uma crítica ao teólogo Franklin Ferreira. Tenho também minhas críticas às posturas do Franklin em redes sociais que, se um dia puder conhecê-lo, gostaria de apresentá-las. No entanto, sei da boa fama que o precede enquanto amigo e pastor. É falado da aproximação de Franklin com Bolsonaro, quando aquele presenteia o presidente com um livro (que inclusive eu li, bem como outros livros do Franklin). Tenta fazer uma aproximação da postura direitista do Franklin com a formação em teologia do Mackenzie. É um erro. Franklin estudou em seminário batista, fazendo apenas a validação do diploma no Mackenzie (era bem comum tempos atrás). Uma afirmação de Ronilso:

Franklin, que passou quase toda a última década repudiando a proximidade de evangélicos progressistas com o governo petista, passou da admiração a Bolsonaro à defesa política e teológica de sua campanha e, posteriormente, de sua gestão. Implacável na sua denúncia do ‘esquerdismo’, do ‘liberalismo teológico’ e do ‘comunismo’(…).”

Como já disse, apesar de eu discordar do Franklin em algumas falas (em rede social), desafio qualquer um a postar onde se deu essa defesa política e teológica da campanha do Bolsonaro. Isso simplesmente não ocorreu. Tenho certeza que Franklin votou no Bolsonaro. De fato, tem atacado bastante o progressismo, mas não usou suas prerrogativas teológicas e pastorais para campanha política.

De fato, conforme apontado no texto, Franklin tem defendido a Lava Jato. Porém associar isso diretamente a uma defesa do bolsonarismo é um salto.

Aleatoriamente, Ronilso lança uma informação de que Franklin “esteve com Bolsonaro para reivindicar, entre outras pautas, a imunidade tributária nas doações que as igrejas fazem para suas obras missionárias no exterior.”. Talvez Ronilso, progressista, grupo que diz se preocupar com ação social e missões, queira sugerir que é correto o governo taxar obras de caridade…

Terminando esse trecho, Ronilso começa a falar de Sérgio Queiroz. Ele cita que Queiroz é um dos articuladores da “Carta Aberta à Igreja Brasileira”, sugerindo que essa carta pedia apoio à candidaturas conservadoras. Quem ler a carta, perceberá que não pede apoio a nenhum candidato, mas a propostas que (1) proteja a vida desde o ventre, (2) se oponha a ideologias anti-cristãs, (3) escolha um candidato de caráter, e por aí vai. Interessante que no ponto “c” da carta “Rejeite candidatos com ênfases intervencionistas na esfera familiar, educacional, eclesiástica e artística”, Ronilso afirma que esse trecho alude às acusações dos bolsonaristas contra Haddad. O problema é: mesmo se aludisse, o princípio por si está errado? Entre a sugestão e o que está claro, fique com o que está claro. É uma frase certa, clara.

Quantos aos comentários iniciais de Ronilso sobre Sérgio Queiroz, não vou comentar, uma vez que não conheço o Sérgio, nem sua tradição eclesiástica e teológica. Mesmo que os erros apontados por Ronilso sejam verdadeiros, difícil é culpar o calvinismo pelos mesmos. Se errou, deve ser criticado. Porém uma coisa é alarmante: Ronilso critica a agenda de Damares e Sérgio que considera os cristãos o grupo religioso mais perseguido no mundo dizendo que as religiões de matriz africana e tradições indígenas são atacadas e perseguidas no Brasil. O número de cristãos perseguidos chega a 300 milhões, maior que o próprio Brasil. Qual tipo de perseguição institucional, sanguinária e impiedosa ocorre contra religiões afro no Brasil? Quais templos são depredados, fiéis degolados e queimados? É uma comparação absurda e desconexa com a realidade.

O próximo alvo da desmoralização de Ronilso é Guilherme de Carvalho. A crítica de Ronilso é de que este mostrou incoerência ao se alinhar a um projeto político sendo que, anteriormente, criticava tal postura. Outra crítica é de que Guilherme era mais ativo nas redes sociais na crítica aos governos, e agora está brando.

Conheço o Guilherme pessoalmente, e sobre isso quero, novamente, pontuar algumas questões:

  1. O Guilherme assumir uma pasta não significa se alinhar completamente com um projeto político, mas com essa pasta que assumiu.
  2. De fato, dependendo de quem olha, assumir uma pasta vai trazer uma “marca” no legado do Guilherme. Em se tratando de um governo tão polêmico como o do Bolsonaro, se envolver vai trazer críticas. Quanto a isso, o Guilherme deve estar ciente. Resguardando as proporções, esses mesmos grupos que agora criticam o Guilherme, também criticaram Billy Graham dizendo que este escolheu “o lado errado da história”. Não importa o legado, tudo o que alguém fez e faz pela igreja, se tiver contato com qualquer governante anti-progressista, automaticamente o grupo de Ronilso irá escrachá-lo.
  3. A única possibilidade de se envolver para um influência positiva no governo é mantendo um tom brando ou aguardando passar o momento de atuação para criticar o governo. O Guilherme precisava fazer uma escolha: ou fazer teologia pública, sendo mais direto nas críticas, porém sem uma ação mais eficaz; ou se envolver e propor ações eficazes, porém tendo que se ausentar por um tempo de críticas em redes sociais. A primeira ação combativa, ele fazia há muito tempo; a segunda, tomou após anos de discussão, e não sem tomar conselho com amigos e igreja. É curioso que os críticos do Guilherme o acusem de incoerência, mas a vida é complexa. Existe momento para tudo. Normalmente a galera de textão em redes sociais (talvez seja o meu caso agora), não faz tanta diferença real na vida, política e igreja.

A última crítica de Ronilso é ao Mackenzie, que ele denomina “a universidade calvinista de Bolsonaro”

Ronilso começa fazendo uma crítica chula a ANAJURE, traçando uma relação infundada dessa com o STF e a ideia de um ministro “terrivelmente evangélico”. Não é de hoje que a ANAJURE tem propostas interessantíssimas, críticas pontuais certeiras, mas, Ronilso não cita. Passa por cima com o objetivo ressentido de desmoralizar.

Outra frase que merece citação e comentário:

No início de novembro, a Mackenzie realizou a terceira edição do Fórum Mackenzie de Liberdade Econômica. Curioso que, enquanto o Foro de São Paulo segue como uma espécie de espantalho para a direita no Brasil, o Fórum de Liberdade Econômica da Mackenzie age silenciosamente e quase sem chamar atenção. O Fórum segue ajudando a construir as bases econômicas e — o que o torna mais interessante — teológicas para o pensamento neoliberal, o encolhimento do estado e o enfraquecimento de políticas sociais afirmativas.”

Qual exatamente o problema de uma instituição privada promover um Fórum desse tipo, sendo que há décadas as universidades públicas os fazem em defesa de teorias econômicas diversas? Segundo Ronilso, o Fórum funciona para construir as bases teológicas do pensamento neoliberal, enfraquecendo políticas sociais afirmativas. Não gosto do termo “neoliberal”, é tipo o fantasma “marxismo cultural”: classifica sem definir precisamente nada. Ao que conheço de um dos principais participantes (Lucas G. Freire), e de vários liberais honestos (não sou liberal!), nenhum deles, pelo menos desse grupo, propõe “enfraquecer” nenhum grupo. A compreensão dos mesmos é que existem outros meios de fortalecer a sociedade civil e desenvolver a qualidade de vida sem ser recorrendo ao Estado. Essa ideia de que querem simplesmente “tirar direitos”, “enfraquecer” pressupõe sempre que há má vontade e maldade no meu opositor político/econômico.

Sucessivamente, ele cita o livro do Yago Martins, “A máfia dos mendigos: como a caridade aumenta a miséria”. É inegável que o título do livro é infeliz. É uma jogada de Marketing. Porém o Ronilso cita o título, mas não cita nada do conteúdo! Diz apenas que o livro mira em “experiências individuais” e não em “estrutura que gera miseráveis”. Longe estou de defender as concepções e teologia do Yago, mas pelo que sei, o livro do Yago é uma defesa do envolvimento com a vida do miserável, para além do mero assistencialismo. Para criticar um livro publicamente, em um artigo, é importante lê-lo!

Por fim, ele lança uma crítica ao Augustus Nicodemus. Além de não explicar a razão de Nicodemus ser contra o projeto de lei de combate a homofobia, aleatoriamente, mais uma vez, ele afirma que o Reverendo “defendeu publicamente, citando a bíblia, o porte de armas” fazendo a citação direta que “se for para defender minha própria integridade eu atiro para matar mesmo, e não é na perna não”. O público progressista de Ronilso, comprometido com a pauta secularizada, com certeza se choca com esse tipo de declaração. Ronilso só omite que majoritariamente, católicos e protestantes, em toda história da igreja, foram a favor de porte de armas e auto-defesa. Mas não convém citar o importante quando o ressentimento e desmoralização guiam a crítica.

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Gustavo Arnoni é formado em teologia e filosofia, especialista em ensino de filosofia (UFSCAR), professor de filosofia na Rede Estadual de São Paulo e Municipal de Barueri, membro da Igreja Presbiteriana Nova Cidade.

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