Capiba: Breve História de um Compositor de Frevos

Arthur Cavalcanti
4 min readAug 30, 2024

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Do nascimento a morte, em menos de mil palavras

Brasil | Dezembro, 2021

Capiba, dezembro de 1971 — Acervo Fundaj

Sem sinais de pressa, a parteira sai do quarto úmido e vai à sala de estar trazer a aguardada notícia. Ao pai apreensivo, sentado no sofá com sua numerosa prole, anuncia: “É macho!”. E a sala comemora — abraços e sorrisos tão largos quanto a serra da Borborema se multiplicam na residência de Seu Severino e Maria Digna, em Surubim, Pernambuco.

Espontânea como uma chuva de verão, a família do recém-nascido celebra o nascimento com música. Enquanto Maria Digna descansa na cama após seu décimo parto, pai e filhos tocam violino, pandeiro e flauta. Era uma família de músicos, e Seu Severino — maestro da banda-municipal — havia de ensinar a cada filho seu ao menos os rudimentos da arte musical.

O ano era 1904, e vinha ao mundo aquele cujos pais chamaram de Lourenço da Fonseca Barbosa, mas que o mundo, na sua inigualável simplicidade, eternizou como Capiba.

Tal qual a vara de um trombone, o pequeno Capiba se desloca de Surubim para alçar voo. Aos três anos, muda-se com a família de lá para cá, de cá para acolá, de acolá para além e de além para algures, absorvendo, se não conhecimento, pelo menos experiência.

Com Seu Severino, Capiba aprende a ler e tocar música. Dedica-se aos instrumentos de sopro e, antes de dominar o abecedário, lê com fluidez o pentagrama da partitura. Aos nove anos, quase morre de varíola — flerte com a morte que só se repetiria anos mais tarde ao escapar do afogamento num banho de mar na praia de Boa Viagem, no Recife.

Quarentenado com o vírus da varíola, Capiba passa o tempo brincando de música. Toca com os irmãos numa orquestra chefiada pelo pai e, aos dez anos, começa a compor. Mas só aos 16, em Campina Grande, na Paraíba, é que Capiba se familiariza com o seu maior parceiro de composição: o piano.

Para substituir a irmã Josefa, que tocava o instrumento em sessões de cinema, o compositor estuda as teclas a contragosto. Em menos de duas semanas, aprende sete valsas — o suficiente para o novo trabalho. Evoluindo no instrumento a passos largos, o quão largos não se saberia dizer, Capiba se afeiçoa ao piano e nele encontra ferramenta fecunda para a labuta de escrever canções.

DE VOLTA AO CAPIBARIBE

Após passar num concurso do Banco do Brasil, o compositor retorna ao Recife para trabalhar como escriturário na instituição. Tinha então 26 anos e só deixaria o cargo ao se aposentar. Em paralelo ao trabalho no banco, Capiba continua tocando, compondo e arranjando música. Não vivia de música, vivia para a música, já foi flagrado dizendo.

Pouco depois de chegar ao Recife, Capiba se especializou num gênero musical ainda imberbe. O frevo, muito embora não fosse então o que é hoje, já começava a se consolidar. Vivaz, rápido, enérgico e, ao mesmo tempo, melódico, destro, doce. O frevo virou lar, e nele Capiba entrou pela porta da frente, como um velho amigo que já não precisa de cerimônias.

Não demorou para o músico dominar o estilo. Carnaval vai, carnaval vem, e os frevos de Capiba começaram a ressoar pelas ruas. Como ditados populares, as canções deixaram de ser de ninguém e passaram a ser de todos — de estivadores do Porto do Recife a doutores da Faculdade de Direito. Ano a ano, seus frevos acompanharam os boêmios, os bêbados e os apaixonados de Carnavais que nem a prosa de Jorge Amado conseguiria descrever.

Prolífico compositor, o escriturário do Banco do Brasil escreveu para além de cem frevos, mais que o suficiente para musicar cada ano de solidão que afligiu Gabriel García Márquez. Mas Capiba passeou por onde quer que seus ouvidos o levassem: samba, tango, valsa, maracatu, choro, bolero, música erudita. Escreveu melodias para peças de teatro e poemas, fundou orquestras e tocou piano em patuscadas noite afora.

Fizesse chuva ou sol, tenha dormido bem ou passado a noite em claro, Capiba se apresentava à agência do Banco do Brasil na ilha do Recife com disciplina (quase) militar. Mas o compositor não se negava às pequenas alegrias que a vida dava; e seja virtude ou vício, ao raiar do dia, não hesitava sair das festas diretamente para o trabalho. Se era excesso ou falta de disciplina, não coube a História isso registrar.

Já aposentado, Capiba casou pela primeira e única vez aos 57 anos. Com a esposa Zezita Barbosa, passou o resto da sua vida. Não teve e não quis filhos — deixou aos numerosos irmãos a responsabilidade de perpetuar o sobrenome da família.

Apesar disso, era um homem vaidoso. Gostava de aparecer nos jornais, ser reconhecido na rua e ouvir suas músicas serem tocadas em clubes durante o Carnaval. Encheria-se de orgulho, então, se soubesse que mais de duas décadas depois de sua morte ainda é escutado por foliões (pernambucanos sobretudo, grandes apreciadores que são de si mesmos).

Era, no entanto, nada mais que um homem. Morreu no Recife em 1997, louvado por uns, esquecido por outros, assim como acontece com quase todos que vivem o suficiente para alcançar os noventa anos. No seu enterro, não houve fantasia nem serpentina, mas uma orquestra de frevo tocou, do lado de fora do cemitério, alguns compassos animados antes de o caixão descer à terra.

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Escritor interessado em dados, jornalismo, música brasileira e, vez ou outra, política internacional.