Depois das chamas — como preencher o vazio do Museu Nacional?

ARTIKIN
5 min readSep 4, 2018

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por Juliana Proenço, curadora de conteúdo da plataforma Artikin

Tapar vazios absurdos com fachadas débeis é a regra e não a exceção na nossa história. O problema é estrutural, e se ilude quem acha que é possível traçar uma linha clara de onde ele começou — ou que a solução está nas próximas eleições.

(Crédito: Mauro Pimentel/AFP)

O vazio incomoda. Ainda mais um vazio das dimensões (físicas, simbólicas) do incêndio do Museu Nacional. O incômodo — aqui vai uma suposição — tem mais a ver com o como do que com o se ele será preenchido. Vejamos a manifestação do Prefeito do Rio de Janeiro antes mesmo de as chamas terem sido extintas:

Que a promessa de reconstrução, ensaiada por tantos outros políticos, soa mais como uma piada de mau gosto, ninguém duvida e já se disse. Também é óbvia a impossibilidade de reconstruir o Museu na sua totalidade, a própria essência da maioria dos objetos que vão parar em museus é ser insubstituível. Mas reparem que, ignorando essas constatações básicas, a preocupação inicial de Crivella (depois ele esclareceu sua declaração) recai sobre a fachada. Cada detalhe do exterior, visível, em pinturas, em fotos, do prédio será repetido. Nem se notará a diferença. Se a fachada estiver igualzinha será como se esse vazio nunca tivesse acontecido.

A própria essência da maioria dos objetos que vão parar em museus é ser insubstituível.

Claro que se pode argumentar que a manifestação do Prefeito foi forjada por puro cinismo. Mas eu não tenho tanta certeza. Não seria, afinal, a primeira vez na história de nossa grande pátria (tanto se tem falado sobre ela) em que uma ou muitas atrocidades são tapadas sem grande esforço. A tal ponto que a preocupação em recuperar o que foi destruído em cada detalhe é de uma generosidade ímpar. O vazio incomoda. Melhor fingir que ele nunca esteve ali, melhor poupar o esforço de dizer o indizível, melhor acreditar que não aconteceu. Exemplos não faltam. A facilidade de tantos em negar a truculência da Ditadura Militar me parece um caso limítrofe, o inconcebível que se repete, com fôlego. Não faz muito, Ivo Herzog, filho de Vladimir Herzog, disse: “O Brasil insiste em virar a página da ditadura mas sem escrevê-la antes”.

Se os investimentos no Museu não tivessem caído em cerca de 90% nos últimos dois anos a situação seria diferente? Sim, mas talvez não.

Fique claro que, com isto, não pretendo desmerecer os esforços louváveis daqueles que se dedicam a preencher as lacunas atrozes da nossa história (ou cultura, ou ciência; eu mesma me encaixo nesse grupo). Acontece que é nosso dever a essa altura entender como o inconcebível se concebe. E restringir o problema não me parece ser o melhor caminho para isto. Culpar o neoliberalismo (esse monstro sem forma) ou a ignorância da “população em geral” (do outro, não minha) pela morte — dupla, em tantos casos — de quase 20 milhões de objetos inestimáveis é tão simplista quanto a sugestão de Crivella. Apontar o dedo para o governo instaurado em 2016 da mesma forma; por mais que ele tenha cometido e continue cometendo atrocidades.

Se os investimentos no Museu não tivessem caído em cerca de 90% nos últimos dois anos a situação seria diferente? Sim, mas talvez não. Não se pode culpar a faísca por todos os danos. É evidente que o prédio não aduzia mínimo preparo para uma situação previsível: um incêndio. E se sabia disto muito antes de 2016. Pululam na internet listas com incêndios recentes (depois de 2008) em instituições culturais. Mas é possível voltar até, pelo menos, 1978, quando um incêndio destruiu o Museu de Arte Moderna do mesmo Rio de Janeiro. O problema é estrutural, e se ilude quem acha que é possível traçar uma linha clara de onde ele começou — ou que a solução está nas próximas eleições.

(Crédito: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Tapar vazios absurdos com fachadas débeis é a regra e não a exceção na nossa história. É possível extrair do post no Facebook do Prefeito carioca outro bom exemplo. Ao citar as glórias passadas do palácio, ele omitiu sua origem: moradia de um grande traficante de escravos. Ora, mas daí seria demais. Por quê? Se se acredita, ainda, piamente, que o Brasil, um dos maiores importadores de escravos do mundo, cerca 10 milhões de pessoas, resolveu a situação dos negros com um pedaço de papel chamado Lei Áurea. Encarar de frente nosso passado escravocrata e seu legado permanente, o racismo, exige uma profunda e desconfortável autorreflexão; melhor fingir que ele não existe, que não é comigo. O vazio incomoda. Mas preenchê-lo não é assim tão fácil.

Deixar o vazio físico na Quinta da Boa Vista criaria o Museu da Tragédia. E isto beneficiaria a quem?

O próprio processo de identificação de culpados — o neoliberalismo, a ignorância, o governo ilegítimo — tem o propósito de preencher um vazio de culpa; por medo de que, sem esse tampão, sejamos nós a cair nele. É necessário que assumamos nossa parcela na apatia esmagadora com os museus (com a educação, com a cultura, com a ciência) que permitiu que as coisas alcançassem o indizível. É, repito, nosso dever entender como se chegou até aqui —sem recorrer à ajuda de Deus. E é também nosso dever criar maneiras de combater, de tapar, de diminuir o vazio da apatia.

Circula um texto, e não há como negar que a ideia é instigante, com a sugestão de que seria melhor deixar o vazio físico do Museu Nacional, criar o Museu do Descaso. Acontece que já se tinha o museu do descaso; com infestações de cupins, com salas fechadas, com paredes caindo aos pedaços, com vaquinha virtual. Isto não comoveu ninguém. Deixar o vazio físico na Quinta da Boa Vista criaria o Museu da Tragédia. E isto beneficiaria quem? O desafio — aqui vai uma última suposição — é lidar com os tantos vazios da história brasileira sem fingir que eles não existem; é reconhecer de fato o vazio antes de pensar numa nova construção.

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