Uma proposta atualizada de novo mundo — Entenda a importância da exposição de Grada Kilomba na Pinacoteca

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3 min readJul 31, 2019

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por Andréia Rocha

Em cartaz na Pinacoteca de São Paulo até 30 de setembro de 2019, “Desobediências Poéticas” da artista e intelectual portuguesa Grada Kilomba propõe a subversão das narrativas oficiais da branquitude colonial em uma mostra futurista que dialoga com o acervo de arte brasileira da instituição.

“Illusions Vol. I, Narcissus and Echo” (2017)

Mulher negra com ascendência de origem em São Tomé e Príncipe e Angola, a autora de um dos livros mais vendidos da última edição da FLIP apresenta um trabalho que visa descolonizar o conhecimento e apresentá-lo de forma híbrida. Com escrita, leitura, teatro e dança circulando para além dos limites impostos pelo pensamento acadêmico cartesiano tradicional, Grada Kilomba vale-se da sua formação em psicologia para trazer, por meio da arte, conceitos fundamentais para o questionamento da sociedade estruturalmente racista na qual ainda vivemos.

Analisando os mitos gregos fundantes da sociedade ocidental em duas vídeo-instalações, a artista conta como Griot as histórias de Narciso e Eco e de Édipo e questiona o pretenso universalismo destes discursos.

As obras trazem metáforas das políticas de violência e apagamento levados a cabo pela branquitude e seu projeto colonial, denunciando as desigualdades das relações com destaque não só ao polo dos oprimidos, mas principalmente dos opressores.

Na instalação “The Dictionary”, a artista aposta no poder da palavra para fazer refletir sobre a importância da conscientização para acabar com o racismo, trazendo o significado dos conceitos de negação, culpa, vergonha, reconhecimento e reparação como um processo ativo em direção ao letramento racial. Assim, a artista incita pessoas brancas a assumirem sua responsabilidade política nas relações raciais.

Trecho da instalação “The Dictionary” (2019), emversão inédita para a Pinacoteca

Em “Table of Gods”, Grada Kilomba faz uma homenagem aos corpos negros trabalhadores das colônias. A obra é composta por velas apagadas ao redor de uma porção de terra rodeada de açúcar, café, chocolate e cacau, denunciando as origens da riqueza da branquitude, construída às custas de milhões de africanos que foram arrancados de suas terras, famílias e comunidades para serem escravizados e mortos a fim de produzir alimentos que não precisamos.

“Table of Gods” (2017)

Com as quatro obras situadas em cantos opostos e não contínuos do andar superior da Pinacoteca, a exposição provoca não apenas um deslocamento físico por entre as galerias, mas também um deslocamento epistêmico, colocando em perspectiva a história brasileira por meio das vozes silenciadas da população afrodiaspórica em sua condição de sujeito ao invés de objeto.

Tecendo seu trabalho com o fio da cronologia por entre obras que remetem a um Brasil do passado, suas instalações trazem uma proposta de futuro de humanidade e igualdade que são negados às populações negras e indígenas por um projeto colonial de mais de 500 anos, ainda tão presente em suas ações e legados que não permitiu que esta se concretizasse.

“Desobediências Poéticas” traz o pensamento pós-colonial através da arte para falar não só da importância da insubordinação à história hegemônica e da autodeterminação dos povos historicamente dominados, mas também da já tardia recusa de que o conflito racial permaneça reduzido a um problema daqueles que foram chamados de “outros” pela branquitude que se impõe como norma. Provoca-nos a sair do lugar confortável da invisibilidade e surdez simbólica para que então, quem sabe aí, faça sentido falarmos de um novo mundo. Desta vez não geográfico, mas sim social.

Andréia Rocha é formada em Ciências Sociais pela USP e pós-graduada em Pesquisa de Tendências pelo IED-Barcelona. Foi pesquisadora e assistente de curadoria do Museu de Arte Contemporânea da USP e trabalha com pesquisa criativa, tendências e inovação para projetos de audiovisual e comunicação. Apaixonada por artes do corpo, tem formação em ballet clássico e também estudou dança contemporânea, flamenco, butô e performance.

Artikin é um coletivo de curadoria, conteúdo e experiência em arte.
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