Fios do tempo. Quando a transparência nos assujeita — por Marco Aurélio de Carvalho Silva

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O Fios do tempo: análises do presente publica hoje um artigo de Marco Aurélio de Carvalho Silva que analisa as mudanças nas práticas ascéticas em nossa “sociedade da transparência”. Dialogando a psicanálise de Freud e Lacan com autores como Walter Benjamin, Richard Sennett, Byung-Chul Han e Marcel Gauchet, Marco Aurélio reflete sobre as consequências negativas para a constituição da singularidade dos sujeitos decorrentes de um imperativo da transparência e da exibição de si mesmo. Quais são as formas de subjetivação decorrentes do “desencantamento do mundo” e da nova cultura do capitalismo? Como psicanalista de ofício, ele se esquiva de uma adesão imediata ao que os sujeitos pensam ser seu desejo e defende a tarefa mais difícil de levar o falante a discernir de onde vem essa vontade.

Onde se poderia pensar numa tentativa de pontuar uma diferença, uma singularidade, a sociedade da transparência, que clama por uma comunicação positiva, aberta, reveladora e clara das intenções pessoais, acaba por fazer o sujeito desaparecer nessa estrondosa claridade. Ficam todos uniformes, iguais. […] Han lembra Walter Benjamin quando este último afirma que “é mais importante que existam (coisas) do que sejam vistas”.

Quando a transparência nos assujeita

Rio de Janeiro, 28 de setembro de 2019

A psicanálise busca se debruçar sobre aquilo que é trazido pelo analisante e, por isso, ela se faz no encontro. Neles, são trazidos questionamentos não somente sobre o sujeito, mas também sobre seu entorno familiar e social. Atualmente, uma pergunta suscitada por nós na clínica, quando observamos as idiossincrasias atuais, é relativa à alta incidência de manipulações no corpo. Por que elas são feitas? Apesar de ser uma livre escolha individual, elas podem demonstrar também uma tendência coletiva. Ao refletir sobre isso, me vieram dois fatos contemporâneos: o destino da ascese e o imperativo da transparência.

Os destinos contemporâneos da ascese

Em um artigo de 1905, intitulado “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, Freud escreveu, em uma nota de rodapé, que a modernidade havia dado mais ênfase ao objeto em detrimento da plasticidade pulsional — era essa última que regia a economia psíquica da Antiguidade. Com o passar dos anos do século XX, observou-se que essa ênfase se tornou mais acirrada em relação a um objeto específico, ou seja, ao próprio eu. Não podemos deixar de mencionar que, para ele, o eu é acima de tudo corporal (1914). Nesta dinâmica, a era moderna trouxe consigo uma nova economia psíquica, que visava fazer do eu seu principal objeto de estudo e transformação. Com isso, houve uma mudança significativa no tocante à ideia da ascese.

A ascese possui uma estreita relação com a transcendência, já que ela sugere uma busca para além de si e do mundo no qual se vive. Refere-se a uma busca moral que transcende a vida individual e, às vezes também, a própria vida terrena. O que houve com a ascese na sociedade contemporânea? Em que ela se traduz hoje?

Indubitavelmente, houve um declínio do homem público no decorrer do século XX, como diz o sociólogo Richard Sennett. Os indivíduos se retiraram desse espaço coletivo e se interiorizaram. Sem uma referência coletiva forte, eles vêm se transformando no que diz o ditado: “cada um por si”, e nem sequer um “Deus por todos”. Em outro texto, Agonias do público em tempos de Narciso, eu e André Magnelli exploramos esta faceta do processo contemporâneo, que conduz a um esvaziamento do público. Proponho agora que recorramos ao filósofo Marcel Gauchet para tratar do fato de que, nesta sociedade, as práticas ascéticas tradicionais, que tinham em vista uma transcendência coletivamente compartilhada, tornam-se algo quase impossível de realizar. De acordo com sua teoria, a humanidade está sofrendo uma mutação antropológica devido ao “esgotamento do reino do invisível”, chamado por ele de “desencantamento do mundo”, o que conduz a um declínio da busca por algo transcendente ao mundo em que vivemos.

Hoje em dia, as práticas ascéticas se voltaram para o próprio eu, em uma tentativa de buscar a verdade não mais fora de si, na religião ou na sociedade, mas sim dentro de si mesmo, do próprio eu. A psicanálise e as demais psicologias nascem desta busca interna da verdade não só de si, mas do mundo. Reforça-se, assim, um distanciamento entre o indivíduo e o espaço público.

Ser sujeito à transparência

Um exemplo de como a psicanálise poderia responder à questão das manipulações no corpo seria referi-las a novas formas de subjetivação. Ou ainda, poderia atrelar as manifestações no corpo a uma escrita. Tentaria investigar a partir do sujeito o que estaria envolvido nessa escrita? Que significantes foram pinçados do tesouro da linguagem para este sujeito? Em última instância, essa escrita pode dar notícias de como se deu a inscrição do significante nome-do-pai neste sujeito, significante esse que nos dá notícia de como o sujeito lidou com os complexos de édipo e de castração.

A psicanálise, portanto, se refere ao coletivo a partir da subjetividade, até porque só é possível analisarmos algo a posteriori. A ascese, ou seja, a busca pela verdade, se voltou para dentro. Na literatura psicanalítica, há uma diferença entre subjetivação e uma ênfase no Eu. Todavia, necessita-se da formação dessa instância para que uma subjetividade possa ascender. Ou seja, a ascensão da subjetividade é o que se espera no tratamento psicanalítico, onde o desejo do analisante possa advir do reservatório das pulsões. A ascese que antes era promulgada pela transcendência, agora, na contemporaneidade, só pode ser feita através de uma interiorização. O corpo, depositário dessas pulsões, passa a ser também uma obra de arte que deve ser talhada pela busca da verdade subjetiva. Podemos, contudo, ficar presos na imagem do corpo, já que este último aparece como uma possível materialidade, que um dia poderá expressar um traço subjetivo.

Além disso, se olharmos para além dessas perspectivas, verificaremos que a prática de manipulação corporal pode também estar atrelada àquilo que Byung-Chul Han aponta como a necessidade da sociedade da transparência de revelar-se, mostrar-se, tornar visível aquilo que concerne a si (ver Sociedade da transparência. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017). Em outras palavras, pode não necessariamente ser regido pelo motor do desejo, mas sim por um imperativo da transparência.

A necessidade de ser transparente vai desde o campo político até o campo psíquico. Neste viés, é crucial que se possa comunicar o que se é e o que se pensa e, em último caso, o que se pensa que é. Vemos isso, por exemplo, nas redes sociais, infestadas de opiniões de comentários sobre os acontecimentos políticos, econômicos, triviais do dia-a-dia e assim sucessivamente. Aquele que não se expõe, parece não existir. A exposição é a nova regra. É a febre que contaminou a sociedade. Byung-Chul Han chega a dizer que a transparência é a nova palavra para uniformização (ibid., p. 11).

A contemporaneidade abraçou esse imperativo da transparência e concomitantemente busca anular o negativo em si mesmo e nas relações humanas em geral. Por isso mesmo é que, afirma Byung-Chul Han, “é significativo que o facebook se negue coerentemente a introduzir um emoticon de dislike button” (ibid., p. 24). O filósofo explica que a sociedade da transparência é uma sociedade positiva que abole o negativo, e portanto a diferença. Transforma a sociedade em algo uniforme, podendo, inclusive, criar tendências coletivas tais como as manipulações corporais.

Aí reside uma contradição curiosa que passa despercebida pela sociedade da transparência. Na tentativa de revelar tudo, de querer mostrar o interior das coisas e de si mesmo, cria-se uma sociedade do igual: “A comunicação alcança sua velocidade máxima ali onde o igual responde ao igual, onde ocorre uma reação em cadeia do igual” (ibid.). Onde se poderia pensar numa tentativa de pontuar uma diferença, uma singularidade, a sociedade da transparência, que clama por uma comunicação positiva, aberta, reveladora e clara das intenções pessoais, acaba por fazer o sujeito desaparecer nessa estrondosa claridade. Ficam todos uniformes, iguais.

Pensando nessa temática, poderíamos voltar nossos olhares para uma moda escolhida por um grande número de pessoas que buscam expressar suas ideias, singularidades e opiniões nas mais variadas esculturas no corpo. O corpo parece ser um canvas sobre o qual o sujeito quer expor uma obra de arte. Byung-Chul Han explica que na sociedade em questão “…as coisas têm de ser expostas para ser” (ibid., p. 27). Parece que só aquilo que estiver à mostra possui valor e validade. A singularidade, no entanto, vai nas contramão dessa tendência. O singular é aquilo que difere, que não se revela o tempo todo, que não quer se expor até para não ser copiado ou replicado. Han lembra Walter Benjamin quando este último afirma que “é mais importante que existam (coisas) do que sejam vistas” (ibid., p. 27).

As várias formas esculpidas no corpo, sem dúvida, podem representar uma vontade de marcar um traço, mas quando se pensa que esse traço pode ser adquirido através de um catálogo ou de uma rede social como Pinterest, temos de repensar se essa escolha não viralizou por causa de outras forças não tão sublimes. Se uma grande maioria acaba comungando da mesma vontade de exposição de seus traços na própria pele, vale a pena desconfiarmos e nos indagarmos. Trata-se de uma forma de expressar singularidade ou trata-se de mais uma armadilha do capitalismo de transformar inclusive a vontade de singularidade em mercadoria? O que poderia vir a ser uma marca de subjetividade acaba sendo “como a coação por exposição, que coloca tudo à mercê da visibilidade, faz desaparecer a aura enquanto manifestação da distância” (ibid., p. 28). E Han ainda afirma que isso deve-se unicamente à produção do chamar a atenção” (ibid.).

A singularidade está diretamente ligada ao negativo. A alteridade se dá pelo negativo. Eu sou isso porque não sou aquilo e assim sucessivamente. Singularidade requer encobrimento e não a positivação da revelação. Antes, para uma fotografia ser revelada, era necessário ter um negativo, lembra-nos Han. Não é mais assim que se dá a revelação das coisas na sociedade da transparência que preza pela positivação e despreza a negativização. Ao invés de vir a ser uma forma de pontuar algo, seu uso está à mercê de fazer do sujeito seu próprio objeto-propaganda.

Lacan nos lembra que “o pudor preserva o íntimo” ao mesmo tempo que Freud afirma que onde há vergonha, há verdade. A vergonha revela uma verdade, mas ela tentará estar encoberta. Sabemos dela pelo enrubescimento que entrega o falante exatamente quando ele não teve a intenção consciente de se expor. Todavia, a sociedade incita o obsceno porque nada é velado e sim exposto e, por conseguinte, perde seu valor cultural e libidinal. Além disso, é importante ressaltar que “a transparência e a verdade não são idênticos” (ibid., p. 24). A verdade depende da negatividade e seu aparecimento não é necessariamente intencional. Portanto, “a transparência é uma contrafigura da transcendência…” (ibid. p. 29). Não há algo a mais que precise ser alcançado ou buscado. Na transparência, a falta é anulada; nada é mistério. O que falta nela é a espontaneidade, ou seja, o não intencional, o não consciente.

Levar o falante a discernir de onde vem isso

A modernidade traz consigo um traço muito característico que se acentuou nas sociedades pós-modernas, ou seja, a possibilidade de fazer escolhas. Incentivou-se buscar o que se deseja, o que nos falta. Essa busca deixou de ser transcendental, desviando o olhar ascético, que antes mirava o que estava fora de si e do mundo, para virar imanente e auto-referente. A ascese, que possui uma intrínseca ligação com a transcendência, dava ao sujeito a possibilidade de pensar sua existência para além do corpo, que perece e morre. O imperativo da transparência que impele o sujeito a se exibir e expor suas vidas e traços no corpo e na virtualidade procura também anular ou, se não for possível, ao menos esconder o perecimento do corpo e da vida. A transparência é o oposto da transcendência e, portanto, da própria ascese. O corpo nos pertence e podemos fazer com ele o que bem entendermos. Porém, nossa atenção e preocupação devem se voltar para o fato de uma sociedade tratar o corpo como uma forma de fazer propaganda de si mesmo.

Temos mais uma vez de recorrer à psicanálise e indagar se tal tendência de manipular o corpo está atrelada ao Isso, reservatório das pulsões, ou se ela é mais uma forma utilizada para se identificar à uniformização tão cara para a instância egóica. Seja qual for a razão pela qual a escolha do que fazer com seu corpo, é curioso perceber que muito daquilo que achamos ser nosso direito de escolha pode, na verdade, suscitar e ser não formas de subjetivação, mas sim formas de sujeição. Mais uma vez, é objetivo da psicanálise se debruçar em qualquer modismo ou tendência vigente no social e tentar levar o falante a discernir de onde vem essa vontade.

Marco Aurélio de Carvalho Silva
É psicanalista e livre-pesquisador do Ateliê de Humanidades

Fonte da imagem: Shrink, de Lawrence Malsta — Foto: Lawrence Malstaf & Tallieu [Art Office]

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Fios do Tempo: análises do presente

Tribuna da instituição de livre estudo e pesquisa Ateliê de Humanidades. Para mais informações sobre o Fios do Tempo, acesse: http://ateliedehumanidades.com