Ateliê de José de Ribera, O filósofo Tales (déc. 1630)

Como interpretar os filósofos pré-socráticos

Augusto Fleck
7 min readJul 10, 2019

Et ipsa etiam occultatio figurarum utilis est, ad exercitium studiosorum, et contra irrisiones infidelium, de quibus dicitur, Matth. VII, nolite sanctum dare canibus.
- São Tomás de Aquino, S. th., Iª, q. 1, a. 9, ad 2.

Propus-me ilustrar neste ensaio, com a interpretação da famosa sentença de Tales de Mileto — “Tudo está cheio de deuses” (πάντα πλήρη θεών, pánta plére theón) — , o uso de alguns princípios interpretativos apropriados ao estilo gnômico, ou sentencial. Esses princípios não são produto de uma pretensa ciência apriorística, mas, em vez disso, nascem da própria atividade interpretativa, sendo obtidos através da reflexão intelectiva sobre a tentativa natural de entender o que se interpreta. Sem a capacidade de interpretar adequadamente os filósofos pré-socráticos e os escritores gnômicos em geral, uma parte relevante da tradição filosófica e cultural torna-se inacessível para a simples compreensão e, mais ainda, para o exame dialético.

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“Tudo está cheio de deuses.

O significado da sentença de Tales não é claro à primeira leitura, exigindo do ouvinte algum esforço interpretativo.

A obscuridade inicial da sentença não é constatada de modo imediato, mas conclui-se da evidente falsidade do seu significado literal. Segundo a sua interpretação literal, significaria que todas as coisas, dos mares aos céus, estão cheias de deuses tais como os imaginavam os gregos antigos. Como isso é evidentemente falso à luz da experiência comum, parece certo que ela encerra outro significado. O postulado que vai implícito aí é o de que o sábio grego, cuja sabedoria se provou com demonstrações geométricas, previsões de eclipses e conselhos militares acertados, não era nenhum louco. Mais que isso: se Tales não era louco, então o espanto causado pela falsidade evidente do significado literal de sua sentença é proposital, e a exigência de esforço interpretativo do ouvinte era parte do seu modo de transmitir o que contemplara. É a esse esforço que devemos proceder, deixando-nos conduzir sem a desconfiança que mata o conhecimento no nascedouro.

Um tópos interpretativo muito fecundo para o nosso propósito é o esclarecimento do contraditório. Toda proposição opõe-se à sua contraditória. Em princípio, a formulação do contraditório, constando dos mesmos termos apenas acrescidos de uma negação, não esclareceria em nada o significado da proposição original. No entanto, muitas vezes, ao formulá-la, evidencia-se um significado mais claro que esta pode assumir e, em consequência, também um significado mais claro da proposição original.

Formulando o contraditório da nossa sentença, temos: “Nem tudo está cheio de deuses”. Essa contradição mecânica, porém, não basta: para além da casca lógica da proposição, é preciso encontrar possíveis sentenças vivas que possam ser reduzidas a essa e às quais Tales pudesse estar se opondo de fato. Encontramos ao menos duas dessas sentenças: a primeira, a de que apenas alguns lugares estão cheios de deuses, como o monte Olimpo ou o Hélicon; a segunda, a de que não há deuses em parte alguma — são produtos da fantasia e “histórias contadas por velhas” (Platão, Górgias, 527 a, República, 350 e). Ambas parecem estar presentes no espírito grego no século VI a.C.: por um lado, a tradição mitopoética, personificada por Homero e Hesíodo, que, se podia ser posta em dúvida quanto à sua verdade lógica (adequação conceitual à realidade), portava um significado existencial vigoroso demais para poder ser abandonada sem mais; por outro lado, o incipiente naturalismo ateu, que toma precisamente esse rumo.

A sentença de Tales parece opor-se, ou antes, sobrepor-se a ambas, como síntese que, absorvendo os méritos de cada uma, as integra em uma nova forma inesperada. Opõe-se à interpretação literalista da tradição mitopoética ao atribuir aos deuses um modo de ser distinto do da realidade sensível. Tal atribuição transparece pelo contrassenso proposital do significado literal da sentença, pelo qual Tales insinua que o modo de ser dos deuses não é o mesmo da realidade que se apresenta à experiência ordinária. Opõe-se ao naturalismo ateu ao afirmar que os deuses, de algum modo, são. Discerne assim dois modos de ser e dois modos de experimentar a realidade, ao mesmo tempo que afirma ter sido o ser divino, em alguma medida, experimentado e comunicado pelos antigos poetas míticos. As duas posturas rechaçadas — a que se aferra neuroticamente a símbolos desgastados sem ser capaz de lhes insuflar vida e a que os joga fora, de maneira igualmente neurótica, lançando-se afobadamente em novidades reativas— são, com efeito, indignas de um filósofo.

Outros tópoi também poderiam ter sido usados para esclarecer a sentença. Um exemplo é o da conversão da proposição em uma questão. Como ensina Aristóteles nos Tópicos (101 b), toda proposição pode ser convertida em uma questão por um simples giro da frase. Assim, a partir da sentença de Tales, obtemos algo como: “Onde estão os deuses?”. A sentença assume então, em face da questão formulada, o tom de uma resposta, como se dissesse: “Os deuses não estão no alto dos montes ou dentro dos templos: tudo está cheio de deuses!”.

Mas o que entendia Tales a respeito do modo de ser divino? Aqui, a interpretação perde em certeza e abre-se o espaço para a conjetura. A julgar pelo curso posterior da tradição filosófica, parece que estamos diante de uma formulação inicial da doutrina professada mais tarde por outro filósofo jônico, Heráclito, sobre a Palavra (λόγος, lógos) divina, de acordo com a qual tudo se passa e que os homens, embora ouçam, não compreendem (DK 22 b 1). E Platão, nas Leis, refere-se expressamente à sentença de Tales (899 b)em apoio à sua doutrina do intelecto (νοῦς, nóus) divino que ordena tudo o que está sob o céu (967 b) e que responde ao espanto causado pela constatação da ordem inteligível da natureza.

Também esse gradual obscurecimento do significado mais profundo da sentença, que se perde em interpretações cada vez mais conjeturais, parece estar de acordo com a intenção de Tales: conduz, desse modo, o intérprete a abandonar a mera interpretação e a meditar por si a realidade. Entrar, por meditação própria, na questão do modo de ser próprio daquilo a que os poetas míticos e Tales se referem pela palavra “deuses" excederia a pretensão deste ensaio. Basta que tenha ficado claro o modo como o filósofo nos conduz nessa direção.

Retomando o nosso trajeto até aqui: I) partimos da interpretação literal da sentença, cujo contrassenso evidente nos levou — à luz do postulado da sanidade do seu autor — , a reconhecer a sua obscuridade e a buscar outra interpretação menos imediata; II)para isso, usamos o tópos do esclarecimento do contraditório, que nos levou a encontrar duas proposições mais determinadas e situadas historicamente e a analisar a sua relação dialética com a sentença original; III) com isso, obtivemos uma interpretação mais satisfatória; IV) finalmente, buscando o seu significado mais profundo, nossa interpretação tornou-se mais conjetural — postulou-se uma relação de desenvolvimento (Heráclito) e recorreu-se a uma interpretação autorizada (Platão).

Tendo esse trajeto presente em nossa memória, podemos fazer alguns juízos gerais:

A interpretação das sentenças gnômicas, como qualquer outra, parte de sua literalidade. Se o significado literal não ocasionasse nenhum problema, então a interpretação terminaria aí; esse, porém, não é o caso em tais sentenças — no nosso exemplo,o problema ocasionado é o de sua evidente falsidade. Por essa razão, é necessário usar tópoi interpretativos, mais ou menos trabalhosos, para esclarecer seu significado. A sua interpretação, contudo, ainda não termina aí. Superada a obscuridade inicial, manifesta-se outro traço típico do estilo gnômico: sua profundidade, isto é, a multiplicidade de significados valiosos que se revelam progressivamente, iluminando-se reciprocamente. Essa fertilidade das sentenças dá lugar a interpretações cada vez mais conjeturais que, na realidade, conduzem gradualmente o intérprete a, tomando posse do seu intelecto, voltá-lo diretamente à realidade contemplada.

Desse modo, distinguem-se quatro fases na interpretação das sentenças: I) a obscuridade inicial, que instiga ao esforço interpretativo, II) o esclarecimento gradual pela atividade interpretativa, III) a descoberta de um foco de significados claros encadeados; IV) o obscurecimento gradual da significação à medida que se buscam significados mais profundos por meio de interpretações cada vez mais conjeturais.

O ritmo proposital da atividade exigida para a interpretação das sentenças serve a um fim pedagógico: conduzir o intérprete a tomar posse do seu intelecto para meditar diretamente a realidade. A obscuridade inicial, produzida por meio de recursos linguísticos diversos, desafia ao esforço intelectual. Os frutos dessa atividade, quanto mais saborosos, mais estimulam ao aprofundamento desse esforço. Por fim, pelo obscurecimento gradual, o autor da sentença como que solta a mão do intérprete, deixando-o livre e responsável por meditar a questão por conta própria.

Aqui é preciso notar que essa intencionalidade pedagógica não é de tipo técnico moderno. Trata-se, em vez disso, de uma intencionalidade que nasce da inclinação natural do homem à mímese: o conhecimento é experimentado pelo filósofo gnômico como uma iluminação progressiva que em seguida volta a se fechar no silêncio, e o estilo gnômico é a imitação linguística de tal experiência, pela qual o intérprete é como que convidado a ir ao mesmo lugar sagrado onde esteve o autor.

Esses são, pois, alguns princípios para a interpretação adequada dos filósofos pré-socráticos e dos escritores gnômicos em geral, ilustrados, em seu processo de formação, pela interpretação da sentença de Tales de Mileto. Interpretar, com efeito, é sofrer — secundum modum recipientis — a ação de um autor. Sem a capacidade de receber adequadamente o que os outros exprimem, não há verdadeira atividade filosófica: a erudição torna-se oca e a crítica torna-se farsa.

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