Sobre mulheres que querem mudar o mundo

Barbara Nickel
7 min readAug 3, 2016

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São muitas. Somos muitas.

Biamichelle liderou a mesa “Software e Liberdade: Mulheres Cis, travestis e Transexuais na Comunidade de SL”

Parei para escutar várias mulheres durante o Fisl (Fórum Internacional de Software Livre), que rolou aqui em Porto Alegre em julho. Participei do evento como voluntária da equipe de comunicação, escrevendo textos para o site oficial. Que baita experiência. Não, não serviu para eu decidir instalar um novo sistema operacional no meu computador e nem me convenci a trocar de celular. Chegarei lá ainda, quem sabe.

É que as mesas/palestras mais transformadoras que assisti não eram sobre software ou hardware livre. Eram sobre cultura. Sobre o que acontece entre as pessoas nos espaços de convívio, trabalho e ensino de tecnologia.

São as pessoas, afinal de contas, que individualmente ou coletivamente decidem quais as coisas que serão construídas com essa tecnologia toda. Às vezes até parece que os objetos e os sistemas são gente como a gente, que eles pensam, que eles decidem como vão funcionar, que eles são muito espertos — que os ignorantes somos nós. O fato é que o modo de existência de todas essas coisas que nos encantam ou espantam (vejam como o Google sabe direitinho para onde eu quero ir nas quartas-feiras de manhã!) um dia foi decidido por alguém: provavelmente, um grupo. Ou vários grupos. Ou grupos com acesso a muitas pesquisas e cálculos. Ou grupos que viram uma ideia ali, adaptaram aqui e acabaram criando um padrão. Ou um CEO que contrariou o senso comum e inventou um botão diferente.

Todo esse hardware e todo esse software QUE ESTÃO AÍ, portanto, foram criados e construídos por pessoas. E pessoas existem e convivem e enxergam o mundo e seus problemas a partir das suas experiências, que ocorrem em um contexto cultural.

Tudo isso para dizer que o Fisl que eu vi, e que me interessa mais, estava muito mais preocupado com esse contexto cultural do que com o hardware e o software diretamente. Em quais ambientes, sob quais visões de mundo, a tecnologia é desenvolvida?

Por que precisamos nos preocupar com essa cultura se a tecnologia está obviamente melhorando nossas vidas, facilitando tudo, garantindo nossa diversão, disseminando o conhecimento? Talvez você considere essa uma discussão desnecessária. Eu vejo pelo menos mil razões pelas quais ela é fundamental. Podemos discordar :)

No final do primeiro dia de Fisl, eu assisti a uma roda de conversas de "mulheres hackers", em que várias delas se revezavam para propor questões, ações e compartilhar experiências. Uma das provocações iniciais era a seguinte: "como fazer com que mais mulheres queiram trabalhar no mercado de tecnologia?" Não demorou para surgirem relatos surreais de discursos extremamente machistas em ambientes de trabalho, na universidade, nas escolas e, claro, nas famílias. A pergunta rapidamente deixou de ser sobre como as mulheres podem desenvolver mais confiança e resiliência e virou para um foco mais complexo e interessante: como os ambientes podem deixar de exigir que as mulheres sejam heroínas para prosperar em suas carreiras na área de TI?

Mudar as mulheres não é a resposta. Se elas quiserem mudar, tudo bem. Mas essa não é a pergunta mais importante. A pergunta mais importante é sobre uma mudança cultural, uma mudança nos ambientes de tecnologia. É claro, isso é sobre uma mudança necessária em muitos outros mercados de trabalho, em muitas outras esferas da sociedade. O mercado de tecnologia está inserido na sociedade. A tecnologia é só uma parte do problema. Mas é dele que estamos falando aqui.

O objetivo dessa mudança é bem simples, quase singelo:

Essa discussão não é contra os homens e não é só sobre mulheres, é sobre ter ambientes mais saudáveis (para todos).

Nas palavras da eloquente Biamichelle Munduruku:

Eu vi a proposta de debate: "como empoderar as mulheres para evitar a auto-sabotagem?" Atenção para não confundir assédio, preconceito, falta de acesso e discriminação com auto-sabotagem. Isso é um problema sério e é cultural.

Eu tenho certeza que as histórias que eu ouvi durante o Fisl não são pontuais, não são problemas específicos daquelas pessoas específicas. São sintomas de uma cultura doente. São meros exemplos. Não admira, portanto, que mulheres e outras minorias desistam de jogar o jogo que está aí. Muitas relataram, por exemplo, que adoravam programar, mas ouviram tantas e tantas vezes que essa profissão "não é para você" que acabaram indo para outras áreas.

É por essas e outras razões que pipocam iniciativas exclusivamente femininas. Elas nascem da necessidade de criar espaços, nem que sejam temporários, mas que sejam seguros e livres de assédio. É por isso que muitas disseram que não se trata de nos adaptarmos para pertencer e vencer no mundo tal como ele existe hoje:

A gente tem que mudar esse mundo e não tentar ocupar um lugar dentro dele, porque esse mundo não é nosso.

Não sou nem quero parecer o tipo de gente que se sente no direito de dizer como os outros devem viver. Existem mulheres que acham que o mundo está bom assim. Existem mulheres que se dão super bem no mercado tal como ele existe hoje. Existem mulheres que não querem fazer parte deste mercado. Ou que desistiram, foram fazer outras coisas e são muito mais felizes do que poderiam ter sido se o plano A tivesse dado certo. Existem mulheres que acham que poderia ser melhor, mas não acreditam que algo possa mudar. Existe todo o tipo de necessidade, de desejo, de visão de mundo.

É só que este texto especificamente é sobre as mulheres que eu ouvi no Fisl e que querem que o mundo seja diferente. E que acreditam que essa mudança é importante não só para elas, mas para todos.

Bem, e por que eu, pessoalmente, estou com elas? E a gente pode discordar mais uma vez, não tem problema :)

Como eu ia dizendo lá no início do texto, essas coisas tecnológicas todas que transformam a nossa vida são criadas por pessoas. Essas coisas tecnológicas todas acabam tendo impacto em muitas dimensões da nossa sociedade. Os aspectos técnicos das decisões tecnológicas não existem no vácuo. Cada detalhe pode alterar a maneira como trabalhamos, nos relacionamos, nos conhecemos, aprendemos, andamos pelas nossas cidades, desenvolvemos nossa visão sobre política, cuidamos da nossa saúde. São, portanto, decisões que alteram nossa vida e nossas relações profundamente.

Eu acredito que grupos heterogêneos, formados por pessoas com experiências de vida diversas, são capazes de tomar decisões melhores do que grupos homogêneos. Eu sei que dá mais trabalho colocar à mesa pessoas diferentes entre si, mas também sei que o mundo é assim. E que as soluções tecnológicas existem no mundo e precisam atender a toda essa gente. Acredito que a mistura de personalidades, histórias e talentos pode levar a decisões melhores, a produtos melhores. (A Jedidah Isler, primeira mulher negra a receber o título de PhD em Astrofísica em Yale, explica melhor essa ideia neste vídeo do TED)

Por isso, não se trata tanto de nos adaptarmos a um mercado que opera sob uma lógica masculina, mas de mudarmos a lógica: tornarmos este mercado mais diverso e, portanto, mais saudável para todos. Não só mais saudável, mas também melhor equipado para lidar com decisões de impacto no universo complexo em que existimos todos.

Como não acreditar no futuro?

Não menos importante é que também acredito radicalmente que todas as pessoas devem ser respeitadas em suas trajetórias profissionais, sejam quais forem. Que todas as pessoas devem poder, se quiserem, explorar e expandir ao máximo os seus talentos, habilidades e competências. É outra dessas ideias simples, que eu nem sentiria necessidade de dizer se não tivesse escutado as histórias que escutei durante o Fisl. É um mundo doente esse em que as pessoas sofrem assédio e são desrespeitadas apenas por estarem ali.

Talvez eu seja otimista demais, mas não acredito que qualquer indivíduo pudesse ouvir aquelas histórias e não sair de lá transformado e com o desejo de transformar o mundo. O lamentável é que, em geral, os ouvintes deste tipo de discussão, que optam por participar destas mesas e não de outras, não são os que mais precisariam ouvir. Para mim, portanto, uma questão importante é: como dar visibilidade a estas histórias, a estes temas, a estas pessoas? Como levá-las aonde elas normalmente não chegariam? E como fazer este caminho sem ser a passos de formiguinha?

Não sei. Só sei que acredito no poder de todas aquelas gurias. E, se houver algo que eu possa fazer para ajudar, farei.

Essa (com o computador) sou eu ouvindo a Daniela Andrade. Segui-la no Facebook só pode te transformar em uma pessoa melhor. Vai lá.

Enfim, tentei começar a organizar algumas ideias que estão surgindo por aqui depois de tantas conversas e experiências interessantes. Espero que tenha feito algum sentido :)

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Barbara Nickel

Criei dois podcasts = Talvez seja isso + Coisas que a gente cria