A memória de Charlie Zhong

Bananistão
11 min readAug 26, 2023

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Algo, sin duda, aconteció, pero no lo sentí. Apenas un principio de fatiga, acaso imaginaria.

(Jorge Luis Borges, “La memoria de Shakespeare”)

Gérson Camacho descia a rua Augusta no final da tarde; tinha acabado de instalar um ar-condicionado no escritório de um agiota e estava indo para casa. Quando passou por uma banca de jornal, alguém, aproveitando-se da meia-luz, saiu por trás dela e colocou-lhe uma pistola nas costas. O gelado da arma provocou uma onda de tremor que fez os 150 quilos de Gérson estremecerem.

— Olha, tenho cem reais no bolso da frente do macacão e um bilhete único.

— Eu não quero o seu dinheiro — disse a voz rouca — e não se vira, senão te estouro o rim.

— Eu tenho um celularzinho, mas nem é smart…

— Cala a boca, gordo! Você foi o escolhido.

Por um instante, Gérson pensou que era uma pegadinha, igual às que ele gostava de ver no YouTube; foi justo quando a pressão do cano da arma aumentou sobre as banhas que lhe protegiam o rim.

— Fica calmo, gordo. É o seguinte: na verdade eu vou te dar algo, que é uma maldição. Você tem duas opções: aceitar a maldição ou ganhar um buraco de bala nas costas.

Viver com a maldição era continuar vivo, no fim das contas. Com certeza era um maluco cracudo em delírio.

— Beleza; pode soltar a maldição.

— Certo. Eu vou te dar a memória de Charlie Zhong…

— De quem?

— Cala a boca! Eu vou te dar a memória de Charlie Zhong. A única coisa que você precisa dizer é “eu aceito”.

Nesse instante, o intestino de Gérson soltou um borborigmo comprido; o medo estava se materializando. Era urgente resolver o impasse e procurar um banheiro.

— Tá certo! Eu aceito, eu aceito!

— Oquei, gordo. Boa sorte… e desculpa; eu não tive opção. Eu vou me afastar, e você não vai se virar, certo? Se você se virar, eu atiro.

— Vai em paz, irmão.

Gérson sentiu o cano do revólver descolar-se das suas banhas e deu um suspiro.

— Não se vira…

— Vai com Deus, porra! Não vou me virar.

Passos apressados e o barulho seco de algo caindo no chão; Gérson contou até vinte. Quando se virou, não havia mais ninguém no vão de calçada entre a banca de jornal e a porta fechada de um boteco falido. Mais perto da esquina, uma torneira de jardim caída, a arma do maluco.

Sem perdas maiores que a vergonha de ser abordado por um maluco que usava uma torneira como arma, Gérson disparou até achar um boteco; ali pediu para usar o banheiro. Por pouco não perde as calças. Com as tripas em ordem e por ser sexta, sentou-se à barra do balcão e pediu uma cerveja. Depois daquilo tudo, ele achava que merecia um refrigério, mental e físico.

— Cristo, mataram um urubu nesse banheiro! — disse um cliente que abriu a porta do sanitário.

Gérson se encolheu e mandou o copo de cerveja para dentro de uma vez.

Em casa, depois de duas horas de metrô, trem e ônibus, Gérson ficou pensando na tal maldição do maluco. No banho, deu um sorrisinho enquanto a água do chuveiro lhe escorria pela cara.

— Arrombado… quase me borro inteiro.

A madrugada de Gérson foi intranquila. Sonhou estar perdido em uma cidade chinesa do começo do século XX, percorrendo um labirinto de ruelas estreitas, com gente que berrava, grupinhos que fumavam ópio pelos cantos, restaurantes vaporosos, cavalos, esterco de cavalo pelo chão lamacento e esgoto a céu aberto. No sonho, Gérson dizia sempre três sílabas, talvez em chinês, moduladas como quem imitasse um bicho, e as pessoas, ao ouvi-lo, atiravam-lhe o que porventura tivessem nas mãos: pedaços de bambu, comida, penicos cheios e vazios, tocos de madeira; algumas tacaram-lhe mesmo pedras do chão. E foi a noite toda gritando três sílabas e fugindo de gente nervosa.

Gérson acordou tarde, com o sol na cara e empapado de suor. Uma dor aguda de cabeça se fazia presente. Acordou com a cama no chão; mexeu-se tanto que o estrado não aguentou. Quando conseguiu se sentar no que sobrou da cama, apareceu a irmã, com quem ele dividia a casa inacabada.

— Ê, Gerso! Bebe que nem um porco e depois fica aí, falando a noite inteira. E ainda por cima arrebentou a cama!

— Eu falei muito?

— Muito, mal deu pra dormir, mas não dava pra entender nada. Parecia japonês. Eu preferia quando você só roncava; e olha que você ronca que nem o caminhão do lixo.

Gérson cuspiu as sílabas do sonho do meio duma careta.

— Ave! Era isso aí. A noite toda. E o que que é isso, Gerso?

— E eu que vou saber? Falei isso no sonho a noite toda… e agora eu não quis falar, mas saiu.

Gérson se lembrou súbito do doido e da maldição e ficou quieto por alguns instantes. Reviveu a cena do dia anterior com detalhes, tanto que o intestino soltou outro borborigmo comprido.

— Eu vou no banheiro, Bel.

Era sábado, e Gérson achou melhor sair de casa, tomar um ar. Desceu a rua de casa e caminhou pela avenida do bairro, de fundo de rio, ladeada de casas feias e inacabadas, não obstante a antiguidade do lugar. Na esquina, uma loja de quinquilharias que tinha sido aberta não tinha muito; Gérson resolveu dar uma inspecionada, afinal, havia vários cacarecos úteis para o lar e cujos nomes lhe fugiam. Mal Gérson passou o corpanzil todo para dentro da loja, veio em sua direção o dono, um chinês idoso muito educado.

— Bom dia. Bem-vindo pra comprar e…

Gérson mal viu o homem e, com uma boca imensa, disse, de golpe, as três sílabas que o atazanaram a noite toda. O chinês ficou branco e depois vermelho e furibundo; começou a soltar sílabas como uma metralhadora e pegou um rodo de uma prateleira. A golpes de rodo expulsou Gérson da loja; as pessoas que estavam em volta ficaram sem entender porque o chinês, habitualmente tão cordato, teve aquela explosão de raiva.

— Você não me ponha mais os pés aqui, entendeu? — gritou o velho brandindo o rodo na porta do bazar.

Gérson voltou amedrontado para casa e ficou o dia todo no quarto. Chegou à conclusão de que estava enlouquecendo, até que lhe veio à memória de novo a situação do dia anterior.

— Será? Será a tal maldição? A memória do Charlinho Shang?

— Charlie Zhong — corrigiu-lhe uma voz interna.

Então a maldição era real. Mas quem raios era Charlie Zhong?

Gérson passou o resto do sábado e o domingo entre a insônia e o delírio. Toda vez que pegava no sono, sonhava com a cidade chinesa, com as três sílabas e com sovas e objetos atirados na sua direção. Acordava com aquela sensação de tropeçar no chão.

Na segunda, foi moído de sono para o trabalho. Foi pronto para tirar uma soneca enquanto não pediam a instalação de um ar-condicionado, mas, assim que chegou à oficina, o chefe já lhe passou a ordem de instalação em um restaurante na Liberdade. Quando saiu da estação, Gérson percebeu que conseguia ler caracteres chineses e assustou-se. Mas nada fazia muito sentido, pois, na verdade, eram frases em japonês.

Assim que entrou no restaurante, Gérson começou a suar frio. Veio uma senhora chinesa e perguntou o que ele queria.

— Ar… ar-condicionado… instalar…

— Ah, sim, sim. Por aqui.

E a senhora começou a empurrar Gérson para o fundo do restaurante, que ia esbarrando nas cadeiras. Em determinado ponto, quase perto da cozinha, o ar quente começou a lhe fazer mal. Também havia um biombo e, por trás, um grupo de cinco homens engravatados, chineses, que falavam em voz baixa. O volume corpóreo de Gérson chamou-lhes a atenção e os cinco encararam o rosto cansado do instalador de ar-condicionado.

Gérson sentiu a cara inteira tremer e tentou cobrir a boca com as mãos, mas acabou por mordê-las e proferir as três sílabas infernais. Os cinco homens levantaram imediatamente, derrubando cadeiras, e jogaram-se sobre Gérson; a dona do restaurante começou a gritar também. O biombo caiu; Gérson foi atirado sobre a mesa de uma família chinesa que tomava café da manhã. No fim, confusão generalizada entre os cinco engravatados e o resto dos clientes. Apesar das dez arrobas, Gérson esgueirou-se para fora. Quando conseguiu chegar à esquina, ouviu o estampido de um tiro.

Atordoado, Gérson vagou perdido pelo Centro, pensando no que tinha ocorrido desde sexta. Ele andava no Pátio do Colégio em direção à rua Boa Vista quando alguém o agarrou pelo braço. Estava pronto para descer a mão em quem quer que fosse e, para o seu ainda maior assombro, viu que era outro chinês velho, de camisa e colete, parecido com o senhor Miyagi; percebendo a intenção de Gérson, o chinês tratou de acalmá-lo.

— Fique calmo. Eu sei qual é o seu problema. Confie em mim.

Gérson olhou desconfiado para o senhor Miyagi.

— Desde sexta a minha vida virou de ponta-cabeça…

— E vai virar mais ainda se não me ouvir. Escuta: eu estava no restaurante. Sei qual é o seu problema. E sei também que o Colhão de Dragão agora está atrás de você e o jurou de morte.

— Quem tá atrás de mim?

— É a parte da máfia chinesa que trafica fralda descartável. A turma de terno de gravata que estava lá, atrás do biombo…

— E mais essa ainda! — Disse Gérson antes de, num icto, soltar de novo e de maneira estridente as três sílabas malditas.

Gérson acompanhou o senhor Miyagi, que na verdade era o seu Li, dono de uma loja de fantasias na Porto Geral. Os dois foram para o fundo da loja atulhada até o teto de máscaras e roupas coloridas, onde Li tinha seu escritório: duas cadeiras e uma mesinha de fórmica em que mal era possível apoiar os cotovelos, numa salinha minúscula cujas paredes tinham cartazes e papéis com caracteres chineses. Gérson sozinho ocupava meia sala e conseguia manter apenas meia banda sobre a cadeirinha que, vistas suas proporções, parecia móvel de casa de boneca.

Gérson suava e, em poucos instantes, seu calor corporal empesteou o ambiente.

— Alguém te deu uma memória? — perguntou Li.

O instalador de ar condicionado explicou como pôde a abordagem que sofreu na Augusta e tudo o que aconteceu desde então.

Li ouviu com atenção e, quando a narração chegou ao momento em que ele e Gérson se haviam encontrado, começou a falar.

— As memórias podem passar de pessoa a pessoa; há memórias de grandes homens que circulam por aí e continuam a criar beleza, mas a memória de Charlie Zhong é uma aberração.

“Zhong viveu em Hong Kong, no final do século XIX, onde era puxador de riquixá. Sei disso porque meu pai cresceu lá. Ele era uma espécie de ‘doido de estimação’ porque apenas repetia as últimas palavras que lhe eram ditas, e as pessoas achavam isso engraçado. Um dia, porém, presenciou uma discussão e ouviu essas três sílabas que estão te atormentando, palavrão tremendo em cantonês, ditas de u’a maneira que marcou o coitado do Charlie.”

— E o que significam essas sílabas, seu Li.

Li disse que não havia uma tradução precisa; pediu desculpas a Gérson e deu uma paráfrase de obscenidades em português com quinze palavras, tirando as conjunções e eventuais verbos.

— Não é á toa que agora querem me matar. — disse Gérson — Cr’em Deus-Pai!

Li prosseguiu:

“Depois de presenciar a discussão, ele não repetia mais as últimas palavras das pessoas, mas só o bendito do palavrão, que, como você viu, não tem paralelo em língua conhecida. É tão tremendo em chinês que houve casos de crianças deserdadas e entregues a orfanatos por terem ousado dizê-lo.

“Charlie tornou-se um pária; por onde andava, atiravam-lhe pedras, comida, brasas, o que estivesse à mão; o expulsavam aos pontapés. Quis o destino que, num acidente de carroças num cruzamento, morressem Charlie, que atravessava a rua — e que causou o acidente quando, pela última vez, berrou essa infâmia — e um grande sábio cantonês. Quem colheu a memória ainda na rua confundiu os dois e, em vez da sabedoria, acabou perpetuando um caso grave de ecolalia…”

— Ecologia? — perguntou Gérson.

— Não, ecolalia; isso de repetir palavras. E como você já sabe, a memória pode ser transmitida a outra pessoa, desde que ela aceite a memória. O cara que te abordou devia estar muito perdido, porque isso pode ser feito de maneiras muito mais simples… sem tanta violência.

— O senhor não quer a memória, seu Li?

— Tá doido, homem? Você precisa arrumar um trouxa, coisa que Li não é. Bem, era isso. Agora você já sabe o que fazer. Pega uma fantasia da loja, desde que não seja muito espalhafatosa. Os caras do Colhão de Dragão estão atrás de você e vão fazer abajur do seu couro.

Gérson olhou espantado para Li, e esboçou um sorriso.

— Não estou brincando. O chefe deles tem vários objetos de pele humana no escritório. Li viu. E você tem bastante couro.

Li abaixou a cabeça e dedicou-se às notas fiscais que estavam sobre a mesinha.

Gérson pegou uma fantasia de Batman, que era o que de mais discreto havia na loja e saiu de lá atordoado, embora agora houvesse um norte: passar adiante a memória de Charlie Zhong, o maluco de Hong Kong. O Batman obeso desceu a Porto Geral aos trambolhões até chegar à 25 de Março. Atravessou o Tamanduateí e, parando em cima da ponte, soltou novamente as três sílabas, num grito horrendo. Mesmo com o trânsito, os tons das sílabas fizeram eco nos prédios velhos do vale.

Gérson alcançou a rua do Gasômetro. Entre lojas de ferragens e miudezas para marcenaria, ele divisou dois andarilhos bêbados que conversavam, um escorado no outro, na porta de uma loja fechada.

— Já te disse que eu não quero! — dizia o mais barbudo dos andarilhos.

— Vai! Meio maço de cigarro nesse seu corote.

— Fumar faz mal.

Gérson chegou mais perto, o que fez o dono do bujãozinho de pinga parar de discutir para observar o recém-chegado e dizer:

— Porra, é o Batman. E como tá gordo! Vou parar de beber.

“É agora”, pensou Gérson.

— Eu tenho um negócio pra vocês dois…

— Se for carregar porta ou máquina por uns trocados, pode esquecer, Batman — disse o andarilho dono dos cigarros.

— Nada de carregar porta. É algo muito melhor. E de graça. Basta vocês quererem…

Os andarilhos se entreolharam.

— Já sei! Você precisa de um Robin. — E os dois explodiram num riso ébrio misturado com tosse.

— Não. Eu vou dar pra vocês um superpoder. Vocês topam?

— A gente não usa droga, chefe; só cachaça.

Os andarilhos estavam marinados no álcool, mas vislumbraram estar diante de algum tipo de maluco. Afinal, quem ia sair vestido de Batman no sol tremendo que fazia e falando baboseira? Gérson estava todo suado, com rodelas imensas debaixo dos braços e no peito. O andarilho da pinga se adiantou:

— Tá certo, homem-morcego. Diz lá: qual é o negócio?

— Eu vou oferecer, e vocês só precisam dizer que aceitam.

— É bom negócio?

— É ótimo. Vocês aceitam a memória de Charlie Zhong?

O do cigarro:

— Quê?

O da pinga:

— Eu aceito!

Com todas as forças, Gérson saiu correndo e dobrou a esquina. Os andarilhos tentaram correr atrás dele, mas tropeçaram um no outro e caíram.

Gérson contou o dinheiro que ainda tinha e tomou um ônibus para Assunção do Paraguai. Nunca mais foi visto. O andarilho da pinga acabou morrendo espancado um mês depois do encontro na rua do Gasômetro: depois de ter berrado as três sílabas a torto e a direito, arrumou confusão com a turma do Colhão de Dragão. O seu couro com tatuagens de cadeia agora é parte de um biombo no escritório do chefe da máfia.

Quanto à memória de Charile Zhong, não foi passada para mais ninguém, e extinguiu-se ao mesmo tempo que a memória do andarilho.

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