O funeral da tia Herta

Bananistão
6 min readDec 9, 2023

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Por sorte, Breno, um dos tantos sobrinhos, estava na casa quando a tia Herta teve um ataque cardíaco e caiu no meio da sala. Sorte, porque ela vivia sozinha e recebia visitas muito raramente; se Breno não estivesse lá, tomando café, tia Herta, insepulta, ficaria sabe-se lá quanto tempo à mercê das forças desagregadoras da natureza que agem sobre a matéria orgânica que se torna inanimada.

Breno disse que a tia Herta morreu de repente, na sua frente, quando lhe trazia uma fatia de pudim, “caindo com a leveza de um pardal a quem a vida abandonou de chofre”. Sim, Breno usou “de chofre” porque era pedante e metido a poeta, embora a sonoridade da locução lembre o barulho de alguém lixando uma janela de aço. Mesmo com os fumos poéticos, Breno não conseguiu evitar que os primos rissem dele na delegacia, porque era impossível que uma senhora de oito arrobas caísse “com a leveza de um pardal”. Até o escrivão riu.

De qualquer maneira, coube a Breno, que havia sido testemunha ocular da queda do pardal, arrumar as coisas para o enterro. Tia Herta não deixou nenhum tipo de disposição sobre como queria o seu funeral, então o sobrinho pensou em não gastar muito. Breno acabou indo parar em uma funerária por recomendação enfática de um amigo que tinha enterrado entes queridos recentemente.

Mal entrou e foi recebido por um homem alto e largo, moreno; algo havia nele de meio indígena. Com paciência infinita e cara compungida, o homem foi mostrando a Breno os vários caixões: todo tipo de madeira, todo tipo de forro, detalhes metálicos. Havia mesmo uns pacotes incluindo caixão, aluguel de pedestais para coroa de flores e círios. Breno pensou no quão cara poderia ser a burocracia da morte, como se não bastasse a inconveniência de perder a vida.

Percebendo o desânimo de Breno, Aristeu, o agente funerário meio índio e muito experiente no mister, chamou o jovem de canto.

— Veja, Breno, às vezes esse tipo de despesa pode parecer absurdo e desnecessário…

Breno preparou-se para algum tipo de sermão sobre entes queridos para justificar pagar uma exorbitância num caixão que, no fim das contas, era apenas a casquinha do bombom que a terra ia comer; o recheio do bombom era a tia Herta. As analogias que surgem nesses momentos são quase sempre desse tipo. Aristeu prosseguiu:

— …essa despesa pode parecer absurda e desnecessária. E é.

Breno arregalou os olhos para Aristeu, que o convidou com a mão para passar por uma porta que dava para o fundo do estabelecimento. Caminharam por um corredor estreito até que o ambiente perdeu a atmosfera carregada de luto e o cheiro de comida foi ficando mais forte. Chegaram ao que lembrava a cozinha de um restaurante, com freezers e fogões industriais, além de fornos. Havia panelões borbulhantes e o cheiro da comida era delicioso.

Aristeu pousou a mão sobre o ombro de Breno.

— Percebo que você é um homem de cultura; vamos conversar no meu escritório?

O escritório de Aristeu, um cômodo apertado com arquivos, era um anexo daquela cozinha. O cheiro de comida boa dominava tudo.

— Meu caro Breno, vejo em você um espírito imenso, um coração muito grande… o que eu tenho a lhe oferecer está longe daqueles caixões tenebrosos e, convenhamos, muito caros, reconheço. Primeiro, preciso perguntar se você está aberto a novas ideias.

Aristeu já tinha fisgado Breno: afagou-lhe o ego que tinha pelo seu verniz cultural e agora o desafiava; caiu mais fácil que a tia Herta fulminada pelo infarto.

— Pode falar, Aristeu. Sou todo ouvidos.

E nisso Breno, sentado numa poltrona puída, cruzou as mãos sobre a barriga, fazendo cara de quem é mais pretensão que cérebro. Aristeu começou a falar.

— Você sabe, Breno, que os ritos funerários vêm de longe. É uma das coisas que marcaram o início da civilização: primeiro, os enterros cerimoniais, depois a agricultura e as cidades. Talvez tudo ao mesmo tempo. São rituais que mostravam o respeito para com o sagrado: o fim da vida era tão enigmático quanto o começo para aqueles homens rudes, caçadores-coletores da Anatólia e da Mesopotâmia. Era preparar o finado para a vida após a morte. Hoje, sabemos como a vida começa e o que causa o seu fim…

Havia um crucifixo pendurado na parede do fundo do escritório. Aristeu parou um instante e voltou-se para o crucifixo.

— Acredita em Deus, Breno?

— Não, Aristeu; sou ateu.

Aristeu levantou-se e tirou o crucifixo da parede.

— Deixo-o aí em respeito à maioria dos meus clientes, que, às vezes, o luto torna improvisamente cristãos, mesmo que nunca o tenham sido.

— Entendo.

— Onde estávamos? Ah, sim. Hoje é claro que a vida e o seu fim são eventos aleatórios, longe de qualquer divindade. Por que, então, gastar uma fortuna com um funeral? É dar dinheiro para a terra comer… sabe, Breno, descendo de povos tapuias do Nordeste do país… tapuias porque não falavam tupi… os meus antepassados ajudaram os holandeses em vários momentos da invasão que ele promoveram na costa do Nordeste, no século XVII…

Breno apenas escutava Aristeu e nem se lembrava mais da tia Herta, que estava fechadinha num saco, dentro da geladeira da morgue. Aristeu, nessa pausa, tirou da gaveta da escrivaninha sebenta um livro de capa verde e branca, já bem manuseado e com as laterais encardidas. Abriu numa página já marcada. Leu por alguns instantes e resumiu a leitura:

— Zacharias Wagener, que era saxão e esteve entre os holandeses que invadiram o Brasil, faz uma descrição fantástica sobre como os tapuias tratavam seus mortos. Quando morria um deles, não o sepultavam, como é uso na civilização judaico-cristã, mas o cortavam em pedacinhos, que comiam crus e assados. Diziam que seu ente querido ficaria mais bem guardado dentro do corpo de um igual do que dissolvido e perdido para a terra; os ossos, que não é possível comer, eram cremados e reduzidos a pó, para depois serem agregados a outros alimentos.

Breno caiu do bem-estar que sentia.

— Pera… você não está sugerindo que a gente coma a tia Herta?

Aristeu fechou o livro e a cara.

— Breno, Breno… achei que você era mais aberto…

— Mas isso é canibalismo! E outra: quem faz isso ainda?

— Minha empresa faz, Breno. Basta o cliente querer.

— É um absurdo.

— Breno, absurdo é abrir mão de nutrientes importantes cuja decomposição vai contaminar a terra. Um corpo serve como alimento, fornecendo os nutrientes de que está composto e você ainda ajuda o planeta, impedindo que ele se torne poluente na terra. — Aristeu pôs-se de pé por detrás da mesa, ameaçador; de repente, tinha ficado ainda maior e mais alto — Não é sustentável? Não é ecologicamente correto?

Breno sentiu-se encolher na poltrona; Aristeu parecia dominar toda a sala pequena, como uma divindade indígena feroz, poderosa e envolvida em nuvens, um Júpiter tapuia, com raios nas mãos e nuvens nos pés.

— Além do mais, Breno, é parte da nossa herança cultural.

Breno Schwarzkopf, neto de bávaros, concordou.

— Tem razão, Aristeu.

Aristeu de súbito voltou à casca de vendedor de caixões.

— Aqui tem um menu… um catálogo das receitas que podemos fazer. Um corpo serve até umas quinze pessoas; no caso da tia Herta, até vinte. Podem ser feitos vários pratos: iscas de fígado, bifes, carpaccio, que é feito da carne da coxa… também podem ser feitos embutidos, como salame ou presunto cru, mas o processo é mais demorado. Temos aqui cozinheiros muito bons, que são meus irmãos, inclusive. Antes do banquete cerimonial, celebramos os feitos do morto, e, querendo, cada parente fala algo. Durante o banquete, podemos servir vinho, que fica por conta da família, mas também podemos fornecer, por conta da casa, fermentado de caju, que é pisado pelos pés das minhas irmãs, no estilo tapuia. Depois, cremamos os ossos e cada um dos presentes leva um potinho com as cinzas condimentadas com canela e cebola desidratada. Pode ser com pimenta também, que é mais o meu gosto, inclusive.

— E quanto sai, Aristeu?

— Metade do valor do caixão mais barato, mas 10% do peso do morto é comissão da casa.

— Fechado.

Não foi muito difícil vencer a resistência dos parentes: o valor convidativo, o vislumbre da comida e os benefícios para o planeta convenceram todos. Aristeu ainda fez de sacerdote tapuia, o que encantou os parentes da tia Herta, e também de maître.

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