Entre as Barras

Barbara Celestrini
8 min readDec 15, 2016

--

Música inspiração:

Estávamos viajando. Esse trabalho cansa, né? É cada furada que nossa profissão nos coloca. Era uma quarta-feira quando chegamos no nosso destino. Um local de manhãs e noites tipicamente frias, porém ao longo do dia dava aquele sol de tirar os casacos. Sei que você odeia frio e devia estar irritada por ter sido enviada para aquela atividade, seu semblante sempre deixava bem nítido (fora as resmungadas baixas impressionantemente fofinhas). Pode parecer estranho, mas comecei a te notar justamente quando chegamos no hotel. Me lembro com detalhes de você toda atrapalhada com as malas e com o corpo contraído de maneira que nunca vi antes, e eu, bem, com uma mala bem menor, esperando meu colega de quarto pegar as chaves. Quando olhei para você, imaginei que os 20 dias não seriam tão ruins assim.

Acabe sua bebida, baby, fique acordada a noite toda

As coisas que você poderia fazer, você não vai, mas poderia

Primeira noite na cidade, pós viagem, sabe como é. Existe o tipo de pessoa que chega e se joga na cama e só levanta no dia seguinte. Definitivamente você não era esse tipo de pessoa. A adrenalina corre entre suas veias constantemente, mesmo você querendo desliga-la por um tempo, ela não te obedece.

Eu sempre fui um cara que gosta de fazer caminhadas sozinho. Quis, naquela noite, rodar o quarteirão para sentir os cortes gelados dos ventos sulistas no rosto — talvez uma das inúmeras maneiras de me sentir vivo. Quando estava voltando (pois os ventos sulistas realmente cortam nossa pele), te avistei sentada nos fundos do hotel, parada, olhando para o céu. Uma cena incomum, mas depois percebi que é o que você faz.

Me aproximei, e foi o nosso primeiro contato. Você estava sentada no chão, de pernas cruzadas, bebendo uma garrafa de alguma bebida alcoólica a qual nunca identifiquei, com um maço de cigarro intacto do seu lado, fones de ouvido ouvindo Elliott Smith e provavelmente outras canções tristes. Você revezava entre olhar o céu e o maço (ainda intacto), e o líquido alcoólico nem recebia sua atenção visual, apenas era parte de um processo mecânico que frequentemente ia à sua boca. Instantaneamente você me olhou estranho, óbvio, eu cortei o seu momento intimista solitário. Peço desculpas por isso, mas na hora me pareceu muito convidativo. Eu precisava te conhecer.

E realmente, como eu precisava. Que mulher incrível você é.

Conversamos um pouco, perguntei o motivo do maço fechado ser tão interessante de ser observado. Você disse que tinha parado de fumar, e comprou um maço justamente para se provocar e não cair na vontade. Disse também, “antes que eu perguntasse”, que tinha insônia e muitos outros problemas, e preferia beber ao ar livre vendo as estrelas para acalmar seus demônios internos. Eu não conseguia parar de achar isso louco e interessante. Em um dia, me vi fascinado por você. Simplesmente uma pessoa que todos deveriam conhecer.

O potencial que você será e que nunca verá

As promessas que você apenas fará

Após a última gota ser levada à sua boca, você perguntou o meu nome e se despediu. “Até amanhã, Fernando, espero que durma bem!” e saiu andando, me deixando abobado. Quem era essa pessoa que sempre trabalhou no mesmo local que eu e eu nunca tinha visto?

O dia se tornara tedioso e lento. Eu não trabalhava na mesma área que você; na verdade, eu odiava a sua área. Nunca me imaginei ficar tão interessado por trabalhar nela. Tudo que você fazia eu me perguntava “o que ela achou de interessante nisso? Com certeza tem algo que eu deixei passar”. Era algo tão idiota, logo eu, parecendo um adolescente. Mas, de alguma forma, tudo o que você gosta tem que ser interessante, e talvez só não consigo ter um olhar como o seu.

Dias longos e noites curtas. Toda noite ia te procurar naquele seu cantinho, escondido até mesmo do estacionamento dos fundos. Surpreendentemente você ia sempre, mas em horários diferentes. Difícil admitir, mas eu fiz o papel de trouxa de ir várias vezes até te achar. Não ligava e não ligo.

No segundo dia desse encontro noturno, resolvi levar uma garrafa também, pois a noite era muito fria e só tinha como ficar do lado de fora bebendo álcool ou em movimento. Conversamos sobre a vida, universo e tudo mais. Afinal, o que somos nós além de poeira de estrelas pensantes numa pedrinha flutuante? Estranho, eu sei, mas você só me contou o seu nome no terceiro dia. Desculpa se pareci um idiota por não ter reparado antes que não sabia o seu nome. Eu não sei explicar o que eu pensava, Carol, só não sei.

Sempre que te encontrava era como um deságue de um rio no mar, mas revezávamos nos papéis. Eu me entregava e você se abria para me receber, e vice-versa. Em poucos dias já sabíamos tanta coisa um do outro. E se me perguntarem, eu continuo sem saber explicar o motivo disso.

Acabe essa bebida comigo agora e esqueça tudo sobre

A pressão dos dias, faça como eu digo

E te deixarei bem, e as manterei afastadas

As imagens presas na sua cabeça

Os resultados dos trabalhos que fomos fazer não estavam dando certo. Cobrança por todos os lados. Faltavam 10 dias ainda e eu não sabia se era bom ou ruim. Queria só chegar no hotel e beber um vinho com você. Deitar sob as estrelas e conversar sobre nossos maiores medos. Horas passavam, mas não rápido o suficiente.

Bateu meia-noite e dez minutos no meu relógio, e estava sozinho com a minha garrafa de vinho no nosso cantinho (permita-me chamar de nosso?). Achei que você não iria mais, mas você apareceu, com uma feição atípica assustada, com o maço aberto e a garrafa já quase no fim. Instintivamente te abracei. Eu não fazia a menor ideia do que estava acontecendo, mas te abracei. Eu sempre fui um cara sensível, talvez até alguns me achem um bobão. Contudo, de alguma maneira, eu estava sentindo a sua dor naquele momento. Quando nossos corpos se encontraram e se entrelaçaram, eu senti. Um peso surreal.

Pessoas que antes você teve

Que você não quer mais ao seu redor
Que empurram e forçam, e não se dobram à sua vontade
Eu as manterei quietas

Foi aí que contamos um para o outro todas as nossas desilusões amorosas. Você me contou que o seu ex-namorado tinha te ligado, e que você não aguentava mais o jogo psicológico que ele fazia. Me contou que não confiava em homens, e não fazia ideia do motivo de estar sendo consolada por um nesse instante. Que estava confusa demais e irritada por se tornar vulnerável com um estranho, e um homem, mas que não conseguia sair de lá e não sabia o motivo.

Ainda bem que era eu. Não conseguia imaginar alguém que poderia fazer mal a você, uma estranha que conhecia há 10 dias, porém me conectei como nunca tinha feito antes. Talvez nunca terei isso de novo. Não queria que soasse como se eu tivesse me aproveitando de você, mas involuntariamente te beijei da maneira mais carinhosa que eu já beijei uma estranha. Beijei seus lábios, a ponta do seu nariz, sua testa e te abracei. Uma mulher como você, intimidadora pela sua personalidade exótica, vulnerável nos braços de um cara regular que trabalha com números e visivelmente não chama atenção por onde passa, mostra que o mundo pode ser algo muito surpreendente.

Te levei até o quarto neste dia. Antes de você entrar, você me olhou silenciosamente com um olhar que nunca vou me esquecer. Às vezes, palavras não são descritivas o suficiente.

Passei o dia em silêncio. As pessoas notaram. Meu colega de trabalho e de quarto me perguntava sempre para onde eu ia à noite, pois negava convites do meu setor. Sempre dizia que estava num momento mais reservado. A essa altura já tínhamos trocado números de telefone, e recebi uma mensagem sua dizendo para não procurar você hoje, mas que estava bem. Não questionei, mas fiquei incomodado para saber o que estava acontecendo. Foi nesse dia, um sábado à noite, que decidi sair com as pessoas com quem eu trabalho.

Não tive notícias suas até a noite seguinte de domingo. Mandei uma mensagem para você dizendo da chuva de meteoros nesse dia, mas você não respondeu. Fui mesmo assim para o local de sempre, com o vinho barato de sempre, contemplar o espetáculo do universo.

Acabe a bebida, baby, olhe para as estrelas

Eu te beijarei novamente por entre as barras

Onde estou te vendo lá, com suas mãos no ar

Esperando para finalmente ser pega

Meu celular vibra. “Olha pra cima”, dizia a mensagem. Mais uma vibração. “do telhado é mais fácil de assistir a chuva, né”, mais outra mensagem, com uma carinha que expressava a obviedade do conteúdo da mensagem. Confesso que não sei o motivo da surpresa ao lê-lo. Típico. Como alguém consegue ser tão espontânea? Ainda não consegui aprender com você, Carol. Olhei para cima e estava você lá, com uma cara que parecia dizer “anda logo!”, fazendo gestos com as mãos me chamando. Definitivamente, eu não mereço alguém tão incrível.

Ao chegar no telhado do hotel, cheio de medo de ser pego por algum segurança, encontro minha doidinha preferida deitada no chão, olhando para o céu, e me junto a você. Talvez o vinho barato tenha tido efeito mais cedo que o programado, mas cheguei e te beijei. Te beijei entre as barras que te prendem em si mesma. Dessa vez um beijo de perder o fôlego, de respiração alta, e você interrompeu para sorrir. Já tinha te visto rindo, até porque sou mestre nas piadas sem graça e imitações relativamente boas, mas sorrir é diferente. Você sorriu e criou um holofote naquela pacata cidade. Por um segundo, toda a atenção da cidade deve ter se voltado para você.

Segurei sua mão e instantaneamente você disse que não sabia o que estava acontecendo. Eu disse que era só um nerd bêbado embasbacado por uma garota que era dona da sua atenção. Novamente, você sorriu. Como alguém consegue magoar você?

Acabe a bebida mais uma vez e eu vou te fazer minha

Manterei você distante, dentro do meu coração

Separada do resto onde eu gosto mais de você

E manterei as coisas que você esqueceu

E é por isso, Carol, que depois desses anos todos (30 anos, quem diria), te escrevo esta carta. Depois desta viagem, fui transferido e a vida nos separou. Tivemos vidas separadas, mas não construímos famílias. Não encontramos ninguém que nos convencesse. Nunca vou esquecer dos insuportáveis dias e das incríveis noites que passamos juntos, só nos permitindo estarmos conectados um ao outro. O álcool ajuda, claro. Mas mesmo sem ele, nossa conexão é única. Sempre foi.

Estou aqui lendo-a para você, nesta cama de hospital, porque não superei ainda o fato da vida ter tirado sua independência. A vida não pode ser injusta com você a ponto de, logo você não poder mais se expressar. Não poder lembrar mais de nós. Desde o acidente venho aqui ler histórias para você. Quando soube da tragédia, me mudei o mais rápido possível para o Rio de Janeiro. Eu precisava estar perto de você. Todavia resolvi ler esta carta hoje pois amanhã sua família desligará seus aparelhos. Eles já aguentaram 10 anos com você em coma. A vida já foi injusta demais com todos nós.

Na verdade, ela foi muito injusta desde a nossa separação. O timing nunca foi o forte da gente. Agora, com esta carta, com uma narração intercalada entre palavras e soluços, me despeço de você. Por enquanto. Apenas fisicamente. Pois sempre estaremos conectados entre as barras impostas pela vida.

Do seu nerd preferido,

Fernando.

Rio de Janeiro, 15/08/2056

--

--