Fernando Barone
4 min readJun 9, 2017

Mais ficção ou mais científica?

Há algum tempo, um amigo escreveu o seguinte parágrafo em uma resenha de ARQ, filme de ficção científica da Netflix:

“Eu sou fascinado por ficção científica, mas curto ainda mais a ciência do mundo real. Quando as duas coisas se unem — um filme de ficção com forte embasamento teórico –, eu tiro o chapéu para quem conseguiu tal façanha, seja com um livro, um filme, uma série… […] não é barato ser cientificamente preciso em Hollywood. Por isso é muito mais fácil deixar o científica de lado, e ficar só com o ficção, dando asas à imaginação de quem escreve e de quem vai interagir com o conteúdo criado.”

Isso me motivou a escrever sobre a relação ficção/ciência do Sci-fi pois, apesar de discordar do Henrique, não acho que ele esteja errado.

A ficção científica está sob o guarda-chuva da ficção especulativa, que também engloba, por exemplo, a fantasia e o horror, além de todos os subgêneros que se originam dos mesmos. Essa informação é importante, pois o nome desse “gênero macro”, bem como os menores, já indicam para o leitor o que ele vai encontrar nas obras classificadas desta forma, e a palavra-chave aqui é especulativa.

Dentro do sci-fi temos diversas subdivisões, como sci-fi militarista, história alternativa, science fantasy, pós-futurismo, cyberpunk, space opera, space western e por aí vai. Todos esses subgêneros podem ser divididos em dois grandes grupos: soft sci-fi e hard sci-fi. Enquanto o soft foca em críticas sociais, metáforas para o nosso estilo de vida e em histórias centradas no desenvolvimento dos personagens, o hard dá mais atenção para a ciência envolvida no futuro imaginado, seja ela física, química, biologia ou até mesmo algo inventado pelo autor, mas com fundamentos sólidos na ciência conhecida.

Considerando todo esse sistema de classificação — que pode parecer confuso, mas é bem útil para um leitor pular de um autor para outro mantendo suas expectativas minimamente satisfeitas –, entendo duas coisas sobre a resenha do Henrique sobre ARQ:

  1. Ele é fã de hard sci-fi;
  2. ARQ não foi hard o suficiente para o seu gosto.

Até aqui, não temos nada absurdo, certo? Cada pessoa tem um gosto específico, que pode se sobrepor ao de outras pessoas em aspectos de maior ou menor escala. Meu problema é com o fim da sentença que copiei para este artigo:

“Por isso é muito mais fácil deixar o científica de lado, e ficar só com o ficção, dando asas à imaginação de quem escreve e de quem vai interagir com o conteúdo criado.”

A impressão que este trecho me dá é que ciência e imaginação são opostos, que um anula o outro quando são utilizados juntos. Só que, por mais hard que uma obra de ficção científica seja, boa parte do que é apresentado vem da pura imaginação de seu criador. Como disse Ray Bradbury, “Tudo o que você sonha é ficção e tudo o que você realiza é ciência. A história da humanidade nada mais é que ficção científica”.

Uma das primeiras obras consideradas ficção científica, A Máquina do Tempo, de H. G. Wells, dá apenas uma desculpinha em pseudo-ciência sobre o tempo ser uma quarta dimensão — opinião que ficava cada vez mais popular na época, mas sem fundamentos sólidos — e parte direto para a aventura num futuro distante, com elois, morlocks e o fim dos tempos. Por outro lado, Jules Verne pode ser considerado um escritor mais hard, pois realizava extensas pesquisas sobre o funcionamento de suas invenções literárias, que depois eram fielmente traduzidas para o papel na versão final.

Ambos os estilos estão presentes desde os primórdios do gênero e os dois têm grandes contribuições para o inconsciente coletivo no último século. É fácil imaginar que autores como Arthur C. Clarke ou William Gibson dedicavam capítulos inteiros para descrever suas peripécias futuristas, como o satélite no caso do primeiro ou uma internet popularizada e totalmente integrada à sociedade no segundo. Só que as ferramentas desses autores eram bem mais literárias, imaginativas, que científicas. Outros cientistas pegaram essas ideias inspiradoras e trabalharam para que se tornassem realidade. Citando outro pilar do gênero, Frederik Pohl, “uma boa história de ficção científica não deve prever o automóvel, mas o engarrafamento”.

O aspecto especulativo é importantíssimo para a ficção científica, levando a imaginação humana para cenários nunca antes imaginados, mas que podem, em decorrência, guiar carreiras inteiras. O próprio Clarke imaginou como seria uma estagnação da criatividade humana após um contato com uma inteligência alienígena infinitamente superior em O Fim da Infância, e já te adianto que a perspectiva não é nada boa.

No fim das contas, especulação e ficção andam de mãos juntas, uma sempre puxando os limites da outra para um avanço tanto mental quanto real. Eu espero que, no futuro, tenhamos cada vez mais soft, hard, weird e tudo mais o que aparecer no caminho.