Recomeço

Beatriz Salazar
5 min readJan 24, 2018

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Henrique observava Helena mergulhar o papel fotográfico em uma das quatro bacias espalhadas pelo laboratório de revelação da faculdade. Ela havia tentado lhe explicar o que cada líquido fazia, mas Henrique tinha se perdido em algum ponto entre o revelador e fixador.

Helena era quem tinha cuidado de todos os aspectos deste projeto — a ideia era dela, afinal, e mesmo quando as fotos digitais falharam ela não desistiu, logo aparecendo com uma câmera analógica, os filmes e todos os químicos necessários. Henrique só contribuíra financeiramente.

As fotografias eram um trabalho de meses, ele estava em partes ansioso e nervoso para descobrir se elas tinham a resposta que tanto procurava. Mas por ora, não havia o que fazer senão observar Helena trabalhar. Ele queria puxar assunto, mas ela estava tão concentrada… Tão linda, mesmo sob a luz vermelha.

— Essa é a coisa mais hipster que já aconteceu na minha vida — disse Henrique depois de um tempo, incapaz de se manter em silêncio.

Helena o olhou por cima dos óculos, com uma das sobrancelhas arqueada.

Você é a coisa mais hipster que já aconteceu na minha vida — ela respondeu, soltando um risinho.

— Mas eu não sou hipster! — negou prontamente, embora no fundo ele admitisse que tinha um fraco por camisas xadrez de flanela.

— Cuidado, João Henrique, sua coleção de discos de vinil vai ficar chateada.

— A qualidade do som é melhor, Maria Helena. — Ele fez questão de dar ênfase no nome completo dela. Quando viu que ela fez uma careta, continuou: — Você que começou com isso do primeiro nome.

— Tá começando a aparecer a foto, você quer ver?

Ele assentiu e se aproximou dela. Juntos, observaram a primeira imagem em preto e branco tomar forma. Era de Henrique, o que não era nenhuma surpresa, todas as fotos seriam dele. Nesta ele exibia sua primeira tatuagem no antebraço, um lobo, ainda coberto com o plástico filme.

— Ainda diz que não é hipster… — murmurou Helena.

Henrique se limitou a cutucá-la nas costelas. Olhou para a tatuagem, agora cicatrizada. Tinha demorado tanto juntando dinheiro e coragem — principalmente a coragem — e agora até se esquecia do desenho em seu braço.

— Esse ano eu vou fazer outra.

— Ah é? O que você quer tatuar? — ela indagou, movendo o papel de uma bacia para a outra.

— Ainda não sei. Alguma coisa geométrica, talvez.

Helena o olhou como se não botasse muita fé no assunto, mas continuou com o processo de revelação. A próxima foto era de Henrique tocando violão numa reunião na casa de uns amigos. A primeira vez que ele tinha tocado e cantado em público em anos. Quando lhe passaram o violão ele achou que nenhum som sairia, mas no final fez um trabalho decente para quem estava há tanto tempo sem praticar.

— Isso é uma coisa que você devia fazer mais vezes — apontou Helena. — Não quero inflar seu ego, mas você realmente leva jeito, tem uma voz bonita.

— Espera, você pode repetir? É isso mesmo que eu ouvi, você tá me elogiando, Helena?

Foi a vez dela de lhe dar uma cutucada.

Mas não era a primeira vez que Henrique ouvia isso, de que levava jeito para música. Várias pessoas acreditaram nisso, investiram nele. Ele que abandonara tudo há anos, depois do repentino sumiço da pessoa que mais lhe apoiava. Porém, talvez fosse a hora de dar mais uma chance, tirar o velho violão da capa…

O procedimento das fotos continuou e Henrique ia as pendurando para que secassem.

Novas ocasiões iam surgindo, algumas bem casuais, como ele lendo um livro, caminhando… Nunca percebia quando Helena tirava essas fotos. Mas outras eram mais interessantes, como a da defesa de seu TCC da faculdade ou a em que ele estava completamente bêbado, comemorando a contratação no emprego que tanto queria. O jornalismo não era sua paixão, mas por enquanto pagava as contas.

No entanto, nenhuma das fotos mostrava o que eles realmente procuravam.

— Eu acho que o plano foi uma perda de tempo… — disse Helena, soltando um suspiro. Ela estava começando a ficar desanimada.

— Você já revelou todas as fotos?

— Faltam algumas, mas acho que não vai dar em nada.

Continuaram a observar. Helena estranhou a próxima imagem que ia se formando.

— Ei, não fui eu que tirei essa!

Isso era evidente, já que ela também aparecia nesta. Eram os dois em uma festa. Conversavam tão próximos por causa do volume da música que até parecia que eram um casal. Infelizmente não eram, para azar de Henrique.

Tinha conhecido Helena na faculdade, no pior período de sua vida. Ele estava há três noites em claro quando conversaram pela primeira vez. Todos seus amigos acreditavam que, como estudante de psicologia, ela poderia ajudá-lo com a insônia, com as vozes, com os surtos. Não estavam errados.

Helena tinha se tornado a pessoa mais importante em sua vida. A única a acreditar nele, a não pensar que ele estava louco. Pelo contrário, ela que vinha tendo essas ideias de como resolver o problema… Talvez Helena fosse louca também. Henrique só tinha certeza de que, mesmo que ela não tivesse o ajudado tanto ao longo do ano, ele a teria querido do mesmo jeito.

Mas não estava se dando por vencido… Só Deus sabe o que o ano novo poderia trazer para eles, ainda era só janeiro, tinha muito tempo.

— Não acredito que mexeram na minha câmera — ela continuava reclamando.

— Para de ser chata, ficou legal a foto — retrucou ele, admirando a fotografia mais uma vez enquanto a pendurava. Esta ele ia querer guardar.

Helena poderia continuar a reclamação, mas a última foto fez um arrepio passar por sua espinha.

— Henrique… — chamou, hesitante. — O plano não falhou.

Ele correu até ela, ansioso para ver a foto.

Por mais que fosse isso mesmo que eles quisessem com as fotografias, Henrique não pôde evitar o choque em ver o rosto da criatura que tanto lhe assombrava.

Ali estava ele, acima do ombro de Henrique, na foto que Helena tinha tirado em seu apartamento. Parecia um homem normal — se o normal fosse ser translúcido. Não sabiam se era fantasma ou demônio, mas isso não importava, Henrique precisava se ver livre dele.

Porque isso era o que ele mais queria, mais do que voltar para a música, do que encontrar alegria em sua carreira profissional, mais até do que Helena. Queria viver em paz sem sentir sua presença ou ouvir sua voz.

— Bom… Você realmente tem um encosto — continuou Helena. Até ela parecia um pouco chocada. — Pronto pra se livrar dele?

— Mais do que nunca, você sabe disso.

Era esta a sua maior resolução para 2018.

Este texto foi escrito para o projeto Na Ponta da Caneta do Who’s Thanny. O tema de janeiro era Recomeço.

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