O que guarda a casa de Pablo Neruda em Santiago?

Notas sobre La Chascona.

Beatriz Marassi
Caronte Design
4 min readSep 28, 2017

--

Neruda e Matilde

Pablo Neruda não nasceu nem Pablo e nem Neruda. Usava este pseudônimo para seu nome de registro: Neftalí Ricardo Reyes Basoalto.

Ele foi muito boêmio e namorador. Se casou três vezes. Sua primeira esposa foi a holandesa Maria Antonieta Hagenaar, estava junto dela quando se apaixonou pela artista plástica argentina Délia del Carril, sua segunda esposa. O relacionamento com Délia durou cerca de 20 anos, viveram juntos no México, onde Neruda começou um caso com a soprano chilena Matilde Urrutia, com quem se casou em 1966.

Matilde Urrutia e Pablo Neruda. Autoria desconhecida.

Neruda, Matilde e a casa de Matilde

Até que a relação dos dois fosse oficializada, Neruda construiu uma casa em Santiago para abrigar Matilde, que a princípio viveu só. Matilde tinha cabelos volumosos e cacheados, daí surge o apelido La Chascona que significa descabelada.

Me falta tiempo para celebrar tus cabellos.
Uno por uno debo contarlos y alabarlos:
otros amantes quieren vivir con ciertos ojos,
yo sólo quiero ser tu peluquero.

NERUDA; Pablo. Cien sonetos de amor. Buenos Aires: De Bolsillo, 2002.

O arquiteto catalão German Rodriguez Arias foi contratado para construir o projeto da residência mas Neruda mudou tanta coisa que, ao final, German nem reconheceu como sendo um projeto seu, e sim do poeta.

“Cuando éste [German Rodriguez] vio el terreno tan empinado vaticinó que los habitantes de la casa estarían condenados a vivir subiendo y bajando escaleras. Proyectó la vivienda orientada hacia el sol, lo que significaba vista a la ciudad. Pero Neruda quería vista a la cordillera, así es que dio vuelta la casa en el plano. No fue ésta la única intervención del poeta.”

Disponível em: <https://fundacionneruda.org/museos/casa-museo-la-chascona/> Acesso em 27 set. 2017.

Cordilheira dos Andes, 2015. Foto: Felipe Portella. Instagram: @F_Portella

O poeta queria a vista para a cordilheira. Queria a vista para o mar e para o por-do-sol. Ele queria tudo. Resultou em uma estrutura que se assemelha muito a um navio, tanto pelas janelas quanto pelos labirintos.

São escadas e cômodos de várias dimensões que se ligam. Portinha pequena que sai em uma sala grande, portona grande que dá no jardim. “Aqui não parece o Castelo-Rá-Tim-Bum?” lembro de ter ouvido uma brasileira dizer isso enquanto fazíamos a visita guiada.

Em uma das salas há uma passagem secreta que era usada, entre outras finalidades, para fazer surpresas aos convidados. Pelo que se especula, Neruda adorava festas, máscaras e fantasias e a casa vivia repleta de artistas e gente influente.

Reprodução da obra "Retrato de Matilde Urrutia" de Diego Rivera. Guache sobre cartão, 1953. Fundação Neruda.

Na casa há muitos artigos trazidos das viagens que fez, utensílios domésticos originais da época, e obras de arte. Há uma coleção de esculturas africanas feitas de madeira e mobília do designer italiano Piero Fornasetti.

No terraço, há murais de Hector Herrera, artista autodidata que ilustrou o livro Arte de Pájaros. Ele pintou a área externa da casa em 1955. Ano que Neruda se separou de Delia del Carril e assumiu abertamente a relação com Matilde.

O destaque é o “Retrato de Matilde Urrutia” do Diego Rivera, importante muralista mexicano, ex-marido de Frida Khalo. Ao lado direito da pintura, nos cabelos de Matilde há a silhueta de Pablo.

O Gerente do Acervo da Fundação Neruda, Javier Ormeño, com muita cordialidade me apresentou um poema que Neruda dedicou a Diego, como retribuição do presente:

LXXVI
Diego Rivera con la paciencia del oso
buscaba la esmeralda del bosque en la pintura
o el bermellón, la flor súbita de la sangre,
recogía la luz del mundo en tu retrato
Pintaba el imperioso traje de tu nariz,
la centella de tus pupilas desbocadas,
tus uñas que alimentan la envidia de la luna,
y en tu piel estival, tu boca de sandía.
Te puso dos cabezas de volcán encendidas
por fuego, por amor, por estirpe araucana,
y sobre los dos rostros dorados de la greda
te cubrió con el casco de un incendio bravío
y allí secretamente quedaron enredados
mis ojos en su torre total: tu cabellera.

NERUDA; Pablo. Cien sonetos de amor. Buenos Aires: De Bolsillo, 2002.

Pablo está escondido no retrato que Diego fez, está também no jardim, no quarto e na sala.

No quintal da residência há uma árvore e nela estão suspensas plaquinhas com olhos ilustrados. É muito curiosa a sensação de presença que se tem por toda a parte. Há muita vida.

Hoje La Chascona é uma casa-museu preservada pela Fundação Neruda e guarda a história viva do poeta, assim como outras duas casas que Neruda possuiu:

  1. La Sebastiana, em Valparaíso. O nome da casa é uma homenagem ao espanhol Sebastián Collado seu construtor, que morreu sem conseguir terminar a obra.
  2. El Quisco, na Isla Negra, que na verdade não é uma ilha, só foi rebatizada pelo poeta por conta da coloração das pedras.

Em 11 de setembro de 1973, houve o Golpe de Estado no Chile. A casa sofreu atos de vandalismo e Neruda que já estava com problemas de saúde, faleceu em uma clínica no dia 23 do mesmo mês. Matilde insistiu para que seu corpo fosse velado em casa cercado por alguns amigos. Ela reparou os danos e continuou na casa até o momento de sua morte em 1985.

--

--