Ucconx no Twitter: onde dois discursos e dois eventos se encontram

Bia Toledo
12 min readDec 12, 2022
Foto: Divulgação da Ucconx

Divulgado como “o melhor festival da cultura pop da América Latina”, a Ucconx atraiu grande atenção do público. Com promessas de grandes celebridades internacionais e diversas atrações para o público geek e gamer, o evento cresceu com expectativas de bater de frente com a Comic Con Experience e criar uma experiência inesquecível. De fato, é possível que essa primeira edição da Ucconx nunca seja esquecida, mas não pelos motivos que imaginavam.

Aproximando-se da sua data de ocorrência, em julho de 2022, burburinhos crescentes nas redes sociais interromperam seus planos de sucesso. Mais que apenas reclamações da organização, os posts expõem um lado B tenebroso, repleto de polêmicas trabalhistas, mentiras e decepções para o público ansioso que aguardava seu acontecimento. Nesse meio, o Twitter se tornou talvez o principal espaço para amplificação de suas controvérsias, a partir de posts, threads e memes que se popularizaram antes, durante e depois do episódio. No fim, a Ucconx ganhou a desejada popularidade, sendo nacionalmente reconhecida como uma grande falha no mundo de eventos geek.

Aqui trazemos uma análise dos discursos de dois ângulos: de um lado, a empresa organizadora e do outro, seus funcionários e consumidores. Com informações fornecidas pelo ex-colaborador Hugo E. V. Melo, completamos o cenário e tentamos revelar o contexto que se esconde por entre as linhas.

A breve história: do luxo ao lixo

No início a Ucconx não tinha a fama de fracasso que possui hoje, porém sempre foi rodeada por uma sombra de dúvida. Diferentemente de outros eventos conhecidos dentro do meio geek, como a Comic Con Experience, que são reflexos de outras convenções internacionais, a Ucconx surgiu “do nada”, sem precedentes para as pessoas se basearem. Um evento que estaria ocorrendo pela primeira vez, sem popularidade estabelecida, nem grande alcance de divulgação e ainda levantando grandes expectativas de atrações, cultivava suspeita entre as pessoas.

As promessas da organização eram astronômicas. Com a confirmação da vinda de atores de grande calibre, que até mesmo grandes festivais poderiam ter dificuldade em trazer, como a Millie Bobby Brown (“Stranger Things”), George Takei (“Star Trek”) e Rupert Grint (“Harry Potter”), cobrando ingressos de R$125 a R$ 5.400, seria este realmente o novo maior evento de cultura pop da América Latina?

Apesar de impressionar os mal avisados com as altas expectativas, suspeitas sobre as estranhas circunstâncias de sua organização ainda existiam. Chegando os dias de sua grande estreia, o Twitter foi preenchido por postagens que revelavam não apenas um caso de má organização e desconhecimento sobre o mundo geek, mas também de prejuízo aos seus funcionários.

A situação foi se agravando pouco a pouco, a começar pelo cancelamento dos artistas George Takei e Millie Bobby Brown, muito esperados pelos fãs brasileiros. Em nota inicial, a empresa explicou que a atriz de Stranger Things havia testado positivo para COVID-19 e por isso não poderia comparecer. Contudo, em seguida, desmentiram a alegação e deletaram o post, agora esclarecendo que o cancelamento ocorreu, na verdade, devido a outros compromissos da artista.

Além da confusão sobre a verdade das declarações, fãs que haviam comprado ingressos para verem os artistas se sentiram prejudicados pela notícia, de início tendo que ser reagendados para encontros com outros artistas no lugar. A movimentação sobre o assunto foi tanta que o próprio Procon solicitou esclarecimento da empresa sobre o ocorrido. Mas o dano já estava feito, as dúvidas apenas aumentavam entre as pessoas: será que os outros artistas realmente irão comparecer? Seria este um grande golpe?

O problema da Ucconx, no entanto, estava longe de ser apenas um caso de dano aos consumidores. Entre as postagens de insatisfação, uma enxurrada de denúncias de funcionários que trabalhavam no evento também começaram a surgir e se multiplicar no Twitter. Por meio de threads, eles revelam o amadorismo dos organizadores originais, que desconheciam o universo geek, expõem a existência de bullying e de descaso com funcionários, que chegaram a trabalhar por meses sem receber salário. As falsas promessas dos sócios se estendiam para a própria equipe de colaboradores, que acabaram também golpeados pela empresa.

As diversas postagens que pipocaram nas redes sociais começaram a se amplificar por compartilhamentos, gerando maior comoção por parte do público expectante. Nas redes, novas denúncias, memes e comentários surgiam em grande velocidade, as pessoas organizavam ações e boicote, artistas que comporiam a Artist’s Alley se uniram para não comparecerem. O resultado foi um evento “fantasma”, repleto de espaços vazios, que viralizou na internet devido ao fracasso frente às suas grandes expectativas.

Foto: ambiente da Ucconx vazio. Twitter / @RuanSegretti

A existência de “duas Ucconx”

Denúncias, cancelamentos e estandes vazios, cada acontecimento importante da Ucconx foi divulgado e amplificado nas redes sociais enquanto ocorria. Por elas, sabíamos o que estava acontecendo como se fosse em tempo real. Para contrariar o discurso que a própria empresa emitia constantemente por seus próprios meios, o Twitter assumiu um papel de ativismo e divulgação para o outro lado dos envolvidos: os consumidores e os funcionários que foram impactados. Os dois lados, no entanto, parecem estar comentando sobre eventos completamente diferentes.

Passeando despretensiosamente pelas redes sociais do evento, temos a imagem de uma Ucconx que alcançou grande sucesso com seu público, soube lidar muito bem com todos os problemas e ocorreu sem grandes percalços. Simplesmente o evento que havia sido idealizado. Se saímos dessa página e buscamos novas opiniões, fazendo uma simples busca pela tag “Ucconx” no Twitter, encontramos um cenário totalmente oposto, marcado por erros, decepções e demandas por compensações pelas injustiças. Um evento que não deu certo.

Do lado da empresa organizadora, as manifestações em relação às adversidades e polêmicas em suas próprias redes não foram muitas. Podemos encontrar algumas referências às tratativas e atualizações sobre acontecimentos em veículos jornalísticos, como o pronunciamento em relação ao pedido do Procon. A escolha de palavras e de imagens utilizadas por eles nas redes sociais e declarações parecem uma seleção que omite o festival que deu errado. Sempre carregam uma carga positiva: fotos de pessoas frequentando o espaço, palavras de celebração do êxito, frequentadores aproveitando atividades, grandes celebridades ocupando os palcos. Para entender algumas repercussões de casos negativos, é necessário buscar ativamente. No ambiente virtual deles, há o controle para construir a Ucconx perfeita.

Pelos comentários de algumas das postagens, no entanto, já temos uma pista do outro lado da história. Reclamações, preocupações com possíveis cancelamentos e apontamentos do despreparo, não se restringem aos comentários. Uma pessoa que sai do perfil do evento e busca saber opiniões sobre o evento nas redes sociais, encontra uma imagem totalmente oposta. Elas se tornaram a principal forma de manifestação contra os acontecimentos ou apoiar os prejudicados.

Hugo E. V. Melo, responsável pela terceira equipe de marketing da UcconX, informa que realmente o Twitter acabou por ser um veículo natural das críticas ao evento. O algoritmo da plataforma compartilha uma publicação com os interessados num tópico, fazendo com que muitas pessoas fora do ciclo do autor possam ter acesso ao que foi postado. A amplificação do assunto foi enorme, seguida por ainda mais manifestações, que por sua vez também amplificaram. Em pouco tempo, todo mundo conhecia a situação e estava curioso para saber o desenrolar dos acontecimentos.

Aproveitando a viralização que o Twitter iniciou, Hugo usou sua conta pessoal para denunciar os organizadores do evento. Sua postagem chegou ao topo dos trending topics da rede, mais uma motivação para outros envolvidos começarem a fazer suas próprias denúncias pela mesma via.

O poder das redes sociais

O ponto mais interessante da situação é a forma “orgânica” do encadeamento da situação, permitido apenas pelo modo de operação da rede. Toda a articulação que se deu via internet é um efeito e exemplo do contexto de mudança do papel simplório das redes sociais. Muitas vezes vistas como meio de entretenimento, hoje a circunstância de convergência midiática as transforma em poderosas ferramentas de criação de reputação, motivo pelo qual as marcas cada vez mais investem em sua presença online. O controle e o poder do produtor e do consumidor estão situados em um novo tipo de interação. Se antes o cenário era mais vertical e a opinião do consumidor dificilmente chegava no produtor, hoje qualquer pessoa pode ter sua voz ouvida por meio das redes sociais. Qualquer pessoa pode tomar conhecimento de uma situação e se expressar na internet, seja positivamente ou negativamente. Todo mundo pode causar um efeito sobre uma corporação: a relação agora está horizontalizada. O caso não foi diferente para aqueles afetados pela UcconX.

O conteúdo criado não se restringiu apenas a palavras, as pessoas publicaram vídeos, imagens, criaram variados formatos de memes em cima da tragédia. Também não ficou só no Twitter, apesar de muito ter iniciado em seu território, em outras redes como o Tiktok podemos ver a mesma base de conteúdo que busca explicar o cenário viralizado. Youtube, Instagram, Facebook, também não escapam. Pessoas visitaram o evento para produzir conteúdo para as plataformas, mostram e relatam os espaços vazios e a falta de público, tiram sarro da situação e podem até ganhar interações com a publicação desses vídeos.

Memes, com seu caráter viral e engraçado, auxiliam ainda mais a expandir o alcance do assunto, gerando maior engajamento e curiosidade entre o público. Mesmo se algo é publicado em uma das redes, não é incomum que ele seja compartilhado em outras, cruzando entre as mídias e possuindo um alcance ainda maior entre as pessoas. Aqueles que preferem uma ou outra rede social ainda será capaz de consumir a informação sobre a Ucconx e conhecer o que está havendo.

A grande comoção gerada foi capaz de gerar movimentação entre as pessoas, que passaram a advogar a favor do lado prejudicado ao mesmo tempo em que gerou manifestações reais, como artistas do Artist’s Alley planejando em conjunto não participarem.

Em suma, este é um perfeito exemplo de como o grande contexto midiático que vivemos hoje permanece escondido entre as linhas do cenário, escondendo casos como as manifestações contra as atitudes da Ucconx expressas pelo modelo de uso e funcionamento de redes sociais. A partir da manipulação de conteúdo em suas mídias, especialmente omitindo informações de cunho negativo, a empresa busca resgatar uma imagem boa do evento, necessária para o pleno sucesso. No entanto, o encontro com as falas alternativas, altamente difundidas em todo o canto da internet, é inevitável.

Falem bem, falem mal, mas falem de mim

Um aspecto interessante é a diferença entre como planejavam fazer sua popularização e como ela realmente ocorreu. “A estratégia de divulgação era no modelo 360, que contemplava a divulgação online e offline”, explica Hugo, iriam utilizar influenciadores e plataformas como Google e Facebook, online, além de rádio e televisão, offline. O modelo completo, no entanto, nunca foi implementado, somente a divulgação via Instagram e por reportagem do UOL Splash. Como a comunicação aos moldes originais encontrou diversos problemas para ser posto em prática, as redes sociais acabaram por ser os principais meios de divulgação. Ainda assim,o alcance da Ucconx se mostrou limitado, dado que entre o público alvo havia pouco conhecimento antes da viralização da polêmica.

O resultado gerado pelas redes sociais é controverso. É inegável o alcance gerado e a movimentação iniciada entre as pessoas, porém a propagação também trouxe uma atenção inédita para o festival. “O que salvou o evento talvez tenha sido as críticas”, opina Hugo. A Ucconx já estava “flopada” antes de sua viralização, não havia público para frequentá-la e os organizadores estavam até mesmo distribuindo ingressos de graça. A ironia é que devido ao próprio fracasso, o evento viralizou na internet, conseguindo que as pessoas finalmente soubessem de sua existência.

“A viralização foi no primeiro dia de evento, então no segundo dia do evento as pessoas estavam curiosas pra ir na Ucconx e ver se realmente era tudo aquilo que havia se falado na internet” — Hugo Melo

“É aquela velha máxima: fale bem ou fale mal, mas fale de mim. E foi exatamente isso que aconteceu com a Ucconx”, Hugo continua. Muitos se aproveitaram dos ingressos de graça para visitar o evento, estabelecendo, mesmo que sem querer, uma oportunidade de divulgação para eles. É fácil encontrarmos na internet publicações de pessoas comparecendo e mostrando o fracasso do evento, talvez pela busca por visualizações ao surfar a onda de atenção que o assunto recebia. E, de fato, muitas postagens assim chegaram a viralizar

Portanto, a polêmica foi uma consequência do fracasso e não o contrário. A relevância gerada pela viralização de seus problemas, apesar de substancialmente negativa, talvez tenha contribuído para o evento não falhar de forma completa.

Irresponsabilidade empresarial e a tal da “pejotização”

Frente aos acontecimentos, não é possível ignorar talvez a parte mais preocupante revelada, que foi o grande descaso com os funcionários do evento pela própria organização. A situação ocorreu antes da aquisição pela BBL, empresa de entretenimento, que assumiu controle do evento em fevereiro de 2022.

O problema não engloba apenas o não pagamento de salários de vários colaboradores, possui um aprofundamento complexo que desemboca em um ambiente tóxico de trabalho. Além de serem obrigados a trabalhar sem receber, se apoiando em promessas vazias, apontam que as mentiras eram comuns com a equipe e o público, entre elas o suposto esgotamento da pré-venda (na verdade, haviam sido vendidos apenas 6 ingressos) e um contrato fechado com Chris Hemsworth (ator que interpreta o super-herói Thor em filmes da Marvel).

Mesmo com o postergamento cada vez mais distante de seus salários, os funcionários ainda eram estimulados a continuar desenvolvendo o evento. Sob o sonho de entrar no meio da cultura pop e a pressão, trabalhavam além do horário comercial e em regime PJ (Pessoa Jurídica).

“Você não pode criar um negócio em que você sabe que não tem fluxo de caixa, você não tem dinheiro em caixa suficiente para segurar a operação por seis ou sete meses pelo menos, para pagar o salário de funcionários”, expressa Hugo. “As pessoas precisam ter um pouco mais de responsabilidade empresarial”. Ele continua falando sobre o regime em que vários funcionários estavam na empresa, um reflexo de um fenômeno derivado da reforma trabalhista no Brasil: a “pejotização”.

O modelo é muito adotado por empresários. Para desviar de direitos trabalhistas, eles contratam o funcionário como PJ, porém fazem-no trabalhar como se tivesse sido contratado via CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Assim, o empregado possui todas as cobranças de CLT, como a exclusividade, mas sem a segurança proporcionada pelos direitos trabalhistas. Os funcionários da Ucconx, portanto, funcionavam com grande insegurança, enquanto os sócios organizadores se beneficiavam do modelo distorcido.

“A gente trabalhava como CLT, mas nosso regime de contratação era PJ” — Hugo Melo

Houve uma ascensão de um discurso, muito propagado em redes como o Linkedin ou no meio de startups, da dedicação ao trabalho pelo amor ao que faz. Apesar de bonito a um primeiro vislumbre, ele é muito utilizado por empregadores para estimular o trabalho fora das condições saudáveis, como trabalhar sem horário fixo de fim de expediente e assumir responsabilidades fora do escopo contratado. O mesmo discurso parece se aplicar aos organizadores da Ucconx, aproveitando-se das aspirações de participação no mercado da cultura pop e utilizando-se de fraudes para burlar proteções aos funcionários. Por trás da oportunidade de entrada no meio desejado, esconde-se a intenção de exploração da força de trabalho, maquiando-se com promessas e mentiras bonitas que culminaram no calote aplicado sobre as pessoas empregadas. Estas buscaram ajuda na justiça para conseguir receber seus salários atrasados.

Dentro de um contexto de busca incessante pelo lucro e desconsideração pelos trabalhadores, há um contra movimento que visa equilibrar a vida pessoal e a profissional, chamado quiet quitting ou “demissão silenciosa”. Apesar do nome, a procura não é por demissão, mas sim pelo livramento do ambiente de trabalho tóxico, limitando suas funções exatamente às contratadas.

Usando o Twitter e outras redes sociais, as pessoas conseguiram se opor ao que exigem os empregadores e expor com desgosto suas “malandrisses”. O movimento é de reconquista de sua vida e de seus direitos, levando o conhecimento e atenção para outros que possam estar na mesma situação. É uma contracorrente, um ambiente alternativo, para informar, educar, protestar, exigir e organizar movimentações em relação aos problemas trabalhistas que as flexibilizações legais podem ter aplicado.

E no fim, o que deu?

De uma forma geral, podemos dizer que as redes sociais ajudaram a trazer luz ao cenário completo em torno do Ucconx, tanto do ponto de vista da empresa organizadora, das pessoas da equipe interna e dos clientes. A propagação, no Twitter, da ausência de público no primeiro dia do evento fez com que muitas pessoas comparecessem nos dias seguintes apenas para presenciar a ausência de público. Isso amorteceu o fracasso e gerou a esperança de novas edições.

Até o momento de edição deste texto, não houve um desfecho para os organizadores originais do evento. Hugo e outros funcionários já moveram ações trabalhistas, mas os processos ainda estão rolando na justiça. A equipe de marketing liderada por Hugo Melo trabalhou por 7 meses e recebeu apenas o equivalente a três meses e meio de seus serviços prestados.

A primeira edição da Ucconx nos serve como um conto preventivo para cuidados com promessas de empregadores e expectativas grandes demais para projetos. Também coloca em perspectiva o grande poder que possuímos na palma da mão com as redes sociais hoje em dia, capaz de influenciar esferas nas quais não necessariamente estamos envolvidos. As dos discursos paralelos, de um evento único, que se formaram nas redes sociais, se encontram e entram em embate em múltiplas ocasiões na mídia, cada uma refletindo uma realidade diferente de um mesmo acontecimento.

O certo é que no fim, apesar de toda a repercussão, os organizadores ainda divulgam um saldo positivo com o evento, já havendo comentários sobre uma próxima edição. Se veremos os mesmos erros cometidos ou presenciaremos um aprendizado significativo, é uma pergunta que ficará sem resposta até seu lançamento, mas que provavelmente será respondida a partir dos múltiplos olhos das mídias sociais.

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