O que não é o Real Digital: desvendando mitos sobre a CBDC Brasileira

Bruno E. Grossi
9 min readAug 8, 2023

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Você já ouviu falar do Real Digital? Não, não é uma nova rede social para compartilhar memes. O Real Digital é, na verdade, a proposta revolucionária do Banco Central do Brasil (Bacen) de criar uma moeda digital oficial, uma extensão das cédulas físicas e do dinheiro eletrônico que usamos em nosso dia a dia. De forma formal, esse projeto é conhecido como CBDC: Central Bank Digital Currency.

Em um mundo cada vez mais conectado e voltado para a inovação, a ideia de uma moeda digital emitida pelo próprio Banco Central vem ganhando força. Mas o que isso realmente significa na prática? Como o Real Digital vai funcionar e qual será o seu impacto na economia brasileira? E, talvez ainda mais importante, quais informações desencontradas ou sensacionalistas circulam a respeito dessa novidade?

Neste artigo, embarcaremos em uma jornada para desvendar os mitos e verdades sobre o Real Digital. Exploraremos como essa iniciativa promete revolucionar o sistema de pagamentos brasileiro (SPB), proporcionando maior eficiência, segurança e inclusão financeira. Além disso, esclareceremos concepções equivocadas que podem ter surgido em meio às discussões acerca da CBDC brasileira.

CBDC Brasileira

CBDC, sigla para Central Bank Digital Currency, é uma forma digital da moeda fiduciária emitida e controlada pelo Banco Central de um país. Ao contrário das criptomoedas descentralizadas, como o Bitcoin, a CBDC é uma iniciativa governamental e possui o respaldo das autoridades monetárias. Ela representa uma evolução tecnológica do dinheiro tradicional, permitindo que transações sejam realizadas de forma digital, segura e eficiente, por meio de sistemas eletrônicos autorizados, como aplicativos e plataformas bancárias.

A CBDC do Banco Central do Brasil, também conhecido como Real Digital, busca modernizar o sistema financeiro do nosso país, utilizando soluções tecnológicas modernas, aumentando a inclusão financeira e acesso a novas soluções financeiras. Cria uma padronização entre os diversos sistemas existentes utilizando tecnologia aberta, open source, com Blockchain compatível com EVM. Quer também oferecer uma alternativa complementar às formas de pagamento existentes, com programabilidade, permitindo, por exemplo, a execução de contratos de Entrega contra Pagamento (Delivery vs Payment, DvP).

Desmistificando mitos

  • Mito 1: O Real Digital é uma criptomoeda

Não, o Real Digital não é uma criptomoeda, anônima e descentralizada. Diferentemente das criptomoedas, como o Bitcoin e o Ethereum, o Real Digital não se enquadra no modelo de uma moeda anônima e descentralizada. Embora ambos sejam formatos digitais de dinheiro, suas características e origens são distintas.

As criptomoedas são emitidas por grupos e entidades privadas, sem respaldo de uma moeda soberana ou um governo, e seu valor é definido unicamente pelo mercado, podendo ser altamente volátil. Além disso, elas operam em uma rede descentralizada, controlada por uma tecnologia blockchain, onde todas as transações são registradas e tornadas públicas.

Por outro lado, o Real Digital será emitido e regulado pelo Banco Central do Brasil (Bacen), possuindo paridade com o real físico e estabilidade de valor. Ele estará sujeito às mesmas políticas monetárias adotadas para o real físico, o que garantirá sua segurança e confiabilidade. Além disso, o Real Digital utilizará uma blockchain permissionada, restringindo o acesso apenas a entidades autorizadas pelo Bacen, proporcionando maior controle e segurança nas operações.

  • Mito 2: O Real Digital vai acabar com o papel-moeda e o PIX

Contrariando o mito, o Real Digital não tem a intenção de substituir o papel-moeda nem o PIX. De acordo com o Banco Central, o Real Digital será uma extensão do real físico, complementando-o em vez de substituí-lo. Sua principal função é proporcionar uma solução de dinheiro programável, facilitando a interoperabilidade entre os diversos participantes do sistema financeiro brasileiro.

O Real Digital, em essência, atuará como uma plataforma para simplificar as comunicações e operações entre os bancos, garantindo a confiabilidade das transações. O Bacen continuará a emitir o papel-moeda como sempre fez, e o PIX continuará sendo uma ferramenta essencial para transferências instantâneas de valores.

Embora o Real Digital possa abrir caminho para o surgimento de novos produtos e soluções, como pagamentos offline (ou duo-offline) e pagamentos programáveis por meio de smart contracts, ainda é cedo para prever todas as possibilidades que essa tecnologia trará ao cenário financeiro. O importante é entender que o Real Digital complementará o sistema financeiro existente, sem tornar o papel-moeda e o PIX obsoletos.

  • Mito 3: O Real Digital será transacionado pelo usuário final, como as criptomoedas

Ao contrário das criptomoedas, o Real Digital não exigirá que o usuário final tenha conhecimentos técnicos avançados para realizar transações. As criptomoedas demandam que os usuários possuam carteiras digitais, chaves públicas e privadas, endereços alfanuméricos e estejam conectados à rede blockchain para validar suas transações. Esses aspectos técnicos podem ser complexos para muitas pessoas e podem dificultar o uso cotidiano.

No caso do Real Digital, o acesso será simplificado e intuitivo, assemelhando-se ao uso dos meios de pagamento tradicionais que já conhecemos. Os bancos serão os responsáveis por fornecer uma interface amigável e padronizada para que os usuários possam enviar e receber Reais Digitais (ou simplesmente Reais) e acessar as soluções criadas a partir dele. Imagine uma solução DeFi (Finanças Descentralizadas), mas sem a necessidade de se preocupar com complexidades técnicas ou conhecimentos especializados, e ainda com a garantia de que as operações estejam em conformidade com as regulamentações do Banco Central. Essa simplicidade no acesso é uma das vantagens do Real Digital, tornando-o mais acessível e conveniente para o usuário final, possibilitando que mais pessoas tenham acesso a esses mecanismos financeiros.

  • Mito 4: O Real Digital não é descentralizado porque é controlado pelo Banco Central

Esclarecer esse mito envolve entender a diferença entre descentralização e acessibilidade pública. A descentralização refere-se à forma como as informações são armazenadas e processadas em uma rede. Uma rede descentralizada não depende de uma autoridade central para funcionar e é constituída por vários nós que se comunicam e compartilham dados. Essa característica é importante para evitar um ponto único de falha e garantir a resiliência do sistema.

Por outro lado, a acessibilidade pública refere-se à possibilidade de qualquer pessoa ver e participar das transações na rede. Uma rede pública permite acesso aberto e sem restrições, enquanto uma rede privada restringe o acesso a um grupo limitado de pessoas ou entidades com permissões específicas.

O Real Digital é uma rede descentralizada, pois não depende de um ponto central para operar, mas é uma rede permissionada. Ou seja, apenas entidades autorizadas e regulamentadas pelo Banco Central terão acesso à sua blockchain. Isso significa que o controle e a governança estarão nas mãos do Banco Central, que poderá validar e autorizar quem pode operar e validar as operações realizadas na rede.

Portanto, o fato de o Real Digital ser controlado pelo Banco Central não implica que ele seja centralizado. Ele é projetado para ser descentralizado na forma como as informações são processadas e armazenadas, mas é uma rede permissionada para garantir que apenas entidades confiáveis tenham acesso às operações financeiras, cumprindo as regulações e promovendo a segurança do sistema.

Imagine que num cenário em que os computadores do Bacen fiquem sem conexão, o sistema financeiro continua funcionando e você poderá fazer suas compras e operações normalmente. E atenção aqui: mesmo nesse cenário, o Bacen não deixa de regular as transações, visto que elas serão sempre regidas por smart contracts pré-programados, que podem ser verificados a qualquer momento, por qualquer participante.

  • Mito 5: O Real Digital é mais uma blockchain, para concorrer com Bitcoin e Ethereum

Esclarecer esse mito é fundamental para entender o papel do Real Digital no ecossistema financeiro. O Real Digital não tem a intenção de concorrer com as redes públicas, como Bitcoin e Ethereum. Pelo contrário, ele busca aproveitar os mecanismos confiáveis criados por essas soluções para trazer agilidade e resiliência ao sistema financeiro nacional.

As redes públicas, como Bitcoin e Ethereum, são projetadas para operar como moedas digitais descentralizadas, fora do controle de qualquer entidade central, e atendem a uma ampla gama de casos de uso. Isso os torna soluções computacionais robustas para garantir confiabilidade de transações, que é base do conceito de blockchain.

Em vez de competir com as redes públicas, o Real Digital visa aproveitar as inovações tecnológicas e a confiança estabelecida pelas criptomoedas para fortalecer o sistema financeiro brasileiro, garantindo sua interoperabilidade e resiliência. Dessa forma, o Real Digital atua como uma evolução tecnológica que complementa e aprimora o ecossistema financeiro nacional, em vez de ser uma alternativa competitiva ao Bitcoin e Ethereum. Isso, claro, portas para um melhor entendimento dessas moedas, e possíveis integrações futuras, mas ainda é cedo para definirmos como isso vai acontecer.

  • Mito 6: O Real Digital é uma moeda de um governo autoritário já que possui uma função de congelamento de saldo

Não, o Real Digital não é uma moeda de um governo autoritário. Essa função de congelamento de saldo existe no smart contract para garantir o cumprimento da legislação brasileira, que prevê a possibilidade de bloqueio ou arresto de valores por ordem judicial em casos de processos legais.

É importante destacar que essa função de congelamento de saldo não é exclusiva do Real Digital, mas também se aplica ao real físico e aos depósitos bancários tradicionais. Em situações específicas, como investigações criminais, garantias judiciais ou ações de combate à lavagem de dinheiro, o sistema financeiro precisa ter a capacidade de restringir temporariamente o acesso a certos valores.

O Banco Central do Brasil enfatiza que o Real Digital será uma moeda democrática e inclusiva, respeitando os direitos e deveres dos cidadãos e das instituições financeiras. Além disso, o projeto do Real Digital busca a transparência e a auditabilidade, permitindo que as transações realizadas na rede sejam rastreáveis e verificáveis.

O Banco Central tem sido transparente em relação ao projeto do Real Digital e tem buscado a participação e colaboração da sociedade civil no debate e no desenvolvimento da moeda digital. O objetivo é construir uma solução que atenda às necessidades da população brasileira, respeitando as garantias legais e promovendo a segurança e a confiabilidade do sistema financeiro nacional.

Desafios e considerações do Piloto do Real Digital

A implementação de um CBDC utilizando blockchain passa por diversos desafios,e o piloto do Real Digital é apenas um primeiro passo de validação de conceitos. É importante garantir que o sistema seja seguro e auditável, imune a ataques cibernéticos, ao mesmo tempo em que garanta a privacidade dos usuários. Além disso, um sistema descentralizado exige infraestrutura tecnológica de ponta, que precisa estar acessível a todos os participantes da rede, o que torna necessário uma solução aberta e livre de royalties.

O piloto do Real Digital, que começou a rodar agora em Julho de 2023, com 14 participantes, é uma prova de conceito, utilizando tecnologia de Blockchains compatível com EVM (Ethereum Virtual Machine) usando a implementação de código fonte aberto Hyperledger Besu. Todas as informações sobre como os participantes selecionados podem se conectar à rede estão disponíveis num repositório de código público em https://github.com/bacen/pilotord-kit-onboarding.

O uso dessa tecnologia permitirá o acesso a novas ferramentas financeiras, como Tokenização de Bens e Ativos, que implicará a acesso mais barato e democrático a ativos caras ou complexos demais para usuários comuns. Falaremos sobre essa nova economia tokenizada em outro artigo.

Conclusão

O projeto de CBDC brasileiro é parte de um movimento global que envolve diversos Bancos Centrais e entidades como o Bank for International Settlements (BIS). Países como China e Índia estão à frente em seus projetos de CBDC, assim como muitos outros que avançam em suas legislações e discussões. Acompanhar essas iniciativas é importante para entender o cenário mundial, e o site cbdctracker.org é uma valiosa fonte para se informar sobre esses desenvolvimentos.

O Brasil, por sua vez, emerge como uma referência nesse contexto, graças ao Piloto do Real Digital. A iniciativa brasileira busca modernizar o sistema financeiro nacional, garantir maior inclusão financeira e proporcionar agilidade e segurança nas transações. O Real Digital não é uma criptomoeda descentralizada, mas sim uma CBDC controlada pelo Banco Central, que busca complementar as formas tradicionais de dinheiro e pagamentos existentes no país.

Desmistificar os mitos sobre o Real Digital é essencial para compreender seu verdadeiro propósito e potencial. O Real Digital não pretende substituir o papel-moeda nem o PIX, mas sim aprimorar as transações financeiras e promover a eficiência do sistema. Ele não é uma moeda de um governo autoritário, mas sim uma solução democrática e inclusiva, projetada para respeitar os direitos e deveres dos cidadãos e instituições financeiras.

O Brasil está trilhando um caminho promissor no desenvolvimento do Real Digital, acompanhando as tendências globais nessa área. Com transparência e participação da sociedade civil, o Banco Central busca construir uma moeda digital inovadora, capaz de impulsionar o sistema financeiro brasileiro para o futuro. À medida que o projeto avança, é essencial continuarmos desvendando mitos e compreendendo as oportunidades e desafios que o Real Digital trará para o país. Estamos diante de uma transformação significativa no cenário financeiro, e é fundamental estarmos preparados para abraçar essa nova era do dinheiro digital.

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