Saudades, mortes e esperanças
Na televisão, artistas, filósofas, cantores, escritoras e poetas de toda a sorte discutem saudade. A televisão, a que me refiro, é uma gambiarra, é apenas um notebook fazendo às vezes de TV, enquanto o chão faz às vezes de cama, às vezes de maca. Enquanto reparo se o que inflama minha lombar dá algum sinal de melhora, Zé Celso diz que a vida é tragédia, e não acredita no drama da saudade, entende que saudade é tragédia. Zé partiu incendiado. Descubro, agora, que seu irmão foi assassinado com 107 facadas, por homofobia. Penso que a saudade que Zé Celso vivia pode, também, ter sido esfaqueada. De fato, não é drama, é tragédia. Lirinha diz que saudade é a morte da esperança e isso me pega de assalto. Eu vejo — ou via - que a saudade é repleta de esperanças. Talvez seja a morte em sua polivalência que Lirinha tenha mencionado - ou não. Clarice, que não está no vídeo que, agora, rola no plano de fundo desses aconteci(pensa)mentos, falava que somos livres e esse é o inferno. Essa frase não encontra eco em meu pensamento, meu sentimento é de outro manequim, não cabe, porque há sempre 107 facadas à minha espreita. E isso é qualquer coisa, menos liberdade. Não quero brigar com Clarice, por que que bobagem brigar com mortos!, que ingenuidade lutar com excertos!. Saudade é uma possibilidade de reinventar contextos, forjar pretextos, armar nosso inconsciente para sonhos nonsenses. Mas há sonhos que não são nonsenses? 107 facadas atingem sonhos e pertubam sonos. Em 1987, Luiz Antônio Martinez Correa, na véspera da véspera do Natal, dia 23, é assassinado com 107 facadas. Nada mais simbólico para o Espírito Natalino: Para o Papai Noel entrar, o veado tem que sair, para o menino Jesus nascer, uma bicha tem que morrer. A televisão - digo, o notebook que se faz de cinema em casa, enquanto deposito minhas esperanças no próximo diclofenaco, que se faz de hóstia e comungo para a remissão da minha dor - continua exibindo todos esses queridos falando de saudade. “Saudade é maior quando o bilhete é só de ida”. Uns falam de amores, o outro fala do irmão, muitos falam de pais e mães. Vivos, mortos, mortos-vivos, vivos-mortos. Saudade é artifício, e porque o remédio que engulo é analgésico e não lisérgico, compreendo que é o mais perto de transcendência que muitos de nós temos em alguns momentos. Algumas pessoas, eu desconfio, podem ter tido nas saudades as únicas possibilidades de transcender o real - fora os momentos de sonhos, óbvio, pois o universo onírico é rebelde, por excelência. Poderia até ser covardia, nos pegar, assim, despreparados, desarmados, quando adormecemos. Mas no Procon da existência humana, as reclamações acerca dos sonhos têm outros fundamentos. “Joguei no bicho, e não acertei”, “sonhei comendo uma comida deliciosa e acordei”, “sonhei com aquele romance que havia afirmado que superei” e quase nunca a covardia. Desejos não realizados, situações impossíveis, verdades impraticáveis, traumas em forma de pesadelo, situações vividas em fôrma de arremedos. É, muitas vezes, nos sonhos, que a saudade é despertada. Pela manhã, ao acordar, água no fogo, pro café, ou encarando o espelho, escovando os dentes: a lembrança do sonho, e aquele reencontro, seja da saudade que a gente abraça e celebra, seja dos nós engolidos e que a gente nega. Saudade e sonho. Às vezes o sono se alimenta de sonhos. Às vezes nos deixa desnutrido de saudade. Ao redor dos dias da partida da amiga querida, sonhei com ela de calça jeans, blusa amarela, sorriso no rosto, projetada certamente por uma foto dela da época que eu não a conhecia. Olha como a saudade é bicha danada, no desconforto da falta, me deu oportunidade de ver minha amiga até no tempo que eu não tinha vivido. Mas quem disse que eu não vivi? Que saudade, viu!Outro dia, no meu teatro mambembe do inconsciente, não importava a personagem, não importava o local, eu estava sempre bebendo água. Estava de ressaca, e o corpo foi convocado para entrar em cena, e anunciar a estiagem. Esperança. Lirinha dizendo que saudade é a morte da Esperança. Na luta pela vida, esses diversos sistemas internos que nos compõem não perdeu esperança e alertou “bicha, bebe água”. Você tem sede de que? Você tem fome de que? Fome e saudade são sentimentos mais próximos que a gente imagina. A gente só tem fome do que já comeu. A gente só tem saudade do que já viveu. O novo, que não comemos, que queremos experimentar, é da ordem do desejo, não da ordem da saciedade. O que não vivemos e gostaríamos de experienciar, é desejo, não saudade. Mas saudade pode ir além, como revelar a fotografia antiga de uma amiga no quarto escuro do inconsciente. “Saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu” é um dos versos mais fortes da MPB - mesmo quando a gente já percebeu, depois de algum tempo, que a música brasileira subestima Candeias, e superestima Buarques (mas isso é outro papo). Esse verso tem um anteverso que é dizer que aquele quarto não existe mais, não como era, mas ainda assim é arrumado. Arrumar esse quarto é suspender a tragédia, eliminar o drama, e sem cobrança de bilhete e sem excesso de bagagem, rendendo-se à saudade, fantasiar concretudes tão fortes quanto um abraço. 107 facadas. Passa pela minha cabeça que Zé Celso, atravessado por esse assassinato, tenha provocado nos quase 40 anos seguinte da morte matada de seu irmão, tanta convocação à irreverência, tanto chamado ao corpo, tanta ode à liberdade. A saudade de Zé Celso, de seu irmão morto, agora eu imagino como uma coreografia da Esperança, nascendo, morrendo, com fome, saciada, marcada sempre por 107 facadas, em tantos espetáculos do Teatro Oficina. Se a gente tira esperança da saudade, o que é que fica, Lirinha? As 107 facadas? Um homem branco privilegiado morto por homofobia em 1987 — o ano que nasci e que, ao mesmo tempo, comecei a morrer. Um músico negro brilhante, em 2018, morto por 13 facadas Um líder indígena guajajara assassinado em uma emboscada. Penso agora que o que Lirinha disse não é tao desprovido de fundamento — embora ache que o assunto que ele trouxe é de outro segmento. Às vezes, quando a gente anda descrente do tempo que virá, quando o que se anuncia é salvo-conduto pra matar, quando nosso fundo do poço parece só ter bilhete de ida, quando a Esperança está na UTI, com aparelhos pra respirar, às vezes a gente só tem a saudade pra afagar. Na arquitetura da saudade, a gente dispensa tempo-espaco, selecionamos melhores momentos, como uma versão do diretor, manipula, inconscientemente, que dores terão destaque, quais aparecerão na cena pós-créditos, e qual delas terão descarte. Se a gente só tem saudade daquilo que a gente viveu, a saudade é, também, uma caixa de ferramentas, uma engenhoca, de transformar o que se sucedeu: pensar em finais alternativos, elaborar uma parte II, desejar que o filme vire seriado, imaginar que a novela toda foi um erro, e agora seu enredo foi cancelado. A gente inventa amor, a gente inventa curas no presente para as aflições antigas, diante da inevitabilidade da dor de hoje. O notebook, que continua fazendo às vezes de TV, encerra o episódio sobre saudades, e exibe agora algo sobre a “invenção” das fronteiras. Penso na imagem de cercas, e de como elas farpam sonhos e dores. E a gente fica com saudade do tempo antes da cerca, sem o arame farpado, quer seja por esperança de derrubada de muros, quer seja por desistência de futuros e o cantinho da saudade ser o último refúgio. Meu caminho, há um bom tempo, é acompanhado de saudades, mas ontem mais uma vez sonhei com as angústias do trabalho. Não estamos livres, Clarice, e se 107 facadas não me atravessaram hoje, certamente há, nos pronto atendimentos, uns tantos outros esfaqueados. E isso é um inferno. Saudade desafia a morte, mas nunca a vence. Saudade mato. Saudade mata. Não ter saudades, por outro lado, também é uma forma de morrer. Na cama-maca forjada no chão que encosta minha coluna, sinto saudade de meu corpo sem essa compressão na lombar, limitando minha mobilidade. Egulo mais um remédio, postergo prontuários médicos, esperançosamente desejo a morte da dor. Em hospitais de guerra, não há esperanças, nem nostalgias. Feridos de explosões, bombas, escombros e balas desejam a morte do mundo. Por ali, não há porque se ter saudade.