O mundo interno vem à tona: expressionismo alemão à luz de Melanie Klein

Isabela Sancho
7 min readOct 3, 2021

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Levei quatro anos na faculdade até encontrar uma professora que se interessasse pelo tema que eu desejava pesquisar em minha iniciação científica: os espaços cenográficos, a arquitetura imaginária. Havia uma professora que ensinava história da arquitetura, e juntas encontramos um recorte possível para um tema tão abrangente. Essa professora me impressionava pela extensão de seu conhecimento, me assustava em seu rigor e me divertia em sua imagem diminuta e enérgica — deixei-a me conduzir em sua sugestão: selecionaríamos dez filmes pertencentes à produção alemã do entreguerras, e analisaríamos os conteúdos humanos observáveis em seus cenários.

As bases teóricas que eu tinha à disposição, naquela época, eram as ciências sociais e o campo estético da filosofia, oferecidas pelo repertório da minha professora — na sua casa, ela me pedia um instante e voltava dez minutos depois com uma pilha de livros de sua biblioteca. Utilizaríamos autores contemporâneos àquele momento ou pouco anteriores à virada do século para investigar que tipo de subjetividade se insinuava naquela socidedade, durante um período tão conturbado, e que se materializava na arte expressionista em sua vertente cinematográfica.

Realizar essa pesquisa foi um processo que me sobressaltou repetidamente: inúmeras vezes me vi incrédula diante do sentido, em plena expansão, que apreendia. Eu não podia imaginar, ao aceitar um pouco às cegas o palpite dessa professora, que aquele tema, no interesse de uma observação sensível, me devolveria tanto de mim mesma: o que exatamente estava investigando naquela expressividade que materializava espacialmente os sentimentos de opressão e perseguição?

Pois os cenários de filmes como O Gabinete do Doutor Caligari (1919), O Golem (1920), Nosferatu (1922), As mãos de Orlac (1924), ora mais estilizados, ora um pouco mais realistas, apresentavam elementos de uma ameaça permanente e exacerbada: paredes e tetos afunilados, corredores que encurralvam quem passava, portas que tentavam engolir, janelas abertas para a entrada de um perigo intrusivo, grades em eminência de perfuração, mãos gigantes vindas do teto, árvores cujos galhos se arqueavam como garras em direção ao protagonista… O mundo, como um todo, parecia se comportar como uma verdadeira armadilha, que atrairia a personagem para si afim de absorvê-la e, por fim, destruí-la.

Cena de O Gabinete do Doutor Caligari, de Robert Weine (1919)
Cena de O Gabinete do Doutor Caligari, de Robert Weine (1919)
Cena de As Mãos de Orlac, de Robert Weine (1924)
Cena de O Gabinete do Doutor Caligari, de Robert Weine (1919)
Cena de O Gabinete do Doutor Caligari, de Robert Weine (1919)

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Pensando a constituição do sujeito pela psicanálise, ocorreu-me revisitar os cenários dos filmes expressionistas pelas lentes da teoria psicanalítica. Pois no meu primeiro contato com os escritos de Melanie Klein, assaltou-me uma euforia bastante similar à que senti ao me debruçar sobre o expressionismo alemão. Na disposição em relacionar forma ao conteúdo, o que a psicanálise teria a dizer sobre uma arte específica que dá a ver, na concretude do espaço externo, os abstratos sentimentos do sujeito que se apresenta?

Os conceitos kleinianos me impactaram em diferentes níveis. Primeiramente, a qualidade escrita de Klein — definida por um senso comum como truncada, repetitiva, confusa ou sem linearidade — não me trouxe estranhamento mas, ao contrário, tomou-me de um fôlego só. Além disso, suas ideias me atingiram em cheio em minha história pessoal: como se estivessem comprovadas nas vivências que tenho de mundo, “na pele”, o esforço de raciocínio estava facilitado como uma descrição daquilo que tinha podido, pouco a pouco, acessar e conhecer em minha própria análise.

Se na adolescência abandonei uma terapia cuja vertente sequer sei classificar, por a ter sentido, naquele momento, como um processo superficial no qual eu podia apenas patinar, a descoberta da psicanálise me permitiu, anos mais tarde, certos mergulhos que eu pressentia precisar; e, ainda nesse aprofundamento, parece-me que as teorias de Klein tentam adentrar falhas geográficas ainda mais inóspitas da alma humana.

Suas considerações sobre as experiências arcaicas do bebê — isso é, aquelas que ocorrem em um tempo inacessível à memória, praticamente insondáveis, pois acontecidas anteriormente à aquisição da linguagem verbal -, me parecem essenciais para compreender aquilo que se inscreve desde o princípio na estrutura psíquica do sujeito, configurando seu modo de se relacionar com o mundo, reverberando vida afora.

Klein não elabora sua teoria sobre a formação do sujeito a partir de uma sucessão de fases pouco a pouco superadas, mas contribui para o campo freudiano com a hipótese de uma oscilação permanente, quando no caso das neuroses, entre as posições esquizoparanoide e depressiva. Essas envolvem uma dualidade entre amor e ódio no relacionar-se com o seio materno e, em seguida, com a própria mãe.

Poema que consta no livro Monstera (Editora Urutau, 2019), de Isabela Sancho

Na posição esquizoparanoide, quando não atendido na prontidão de sua necessidade e seu desejo, o bebê, que em seu desamparo está constantemente próximo à experiência da morte, fantasia sua perseguição, temendo ser aniquilado e se desintegrando psiquicamente. Já na posição depressiva, quer punir ferozmente aquilo que, também em sua fantasia, o lesou — intenção essa que é sucedida pelo medo da perda e a culpa. Cada posição gera suas respectivas ansiedades e angústias, sendo a depressiva aquela que permite reconhecer a existência do outro como sujeito separado de si, se diferenciar dele e, assim, também se constituir de modo mais integrado.

Do intenso mal-estar que o toma, ocorre um fenômeno psíquico de deslocamento da hostilidade que o habita para dentro do outro: trata-se da identificação projetiva. Nessa situação, o sujeito, incapaz de suportar e de reconhecer em si seus ímpetos disruptivos, a sua própria agressividade — e, aqui, Klein leva adiante o conceito freudiano de pulsão de morte -, passa a supô-las naquele com quem se relaciona e delas tenta se defender. Nublando uma possível objetividade no olhar para o outro e enxergando suas próprias tendências emocionais naquilo que não é regido pelo seu modo singular de funcionamento, o sujeito, com significativa constância, encontrará externamente aquilo internalizou.

Esse objeto interno marca profundamente o sujeito, dando o tom de como receberá os estímulos que vêm lhe acometer de fora. Assim, o sujeito se reavê consigo mesmo nas suas investidas de lidar com o mundo, o que não deixa de conferir um traço algo narcísico a essas relações.

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Que espécie de intuição me levou à psicanálise sem que eu ainda soubesse seu nome? Essa é uma pergunta que me faço quando olho em retrospecto para alguns dos objetos nos quais investi anteriormente, sendo um deles a pesquisa sobre o cinema expressionista alemão. Análise era justamente a palavra que utilizava com minha professora para definir aquilo que nos propúnhamos a fazer: a partir do que podia ser expresso, no caso, pela via da elaboração artística dos cenários, tentar atingir alguma dimensão do sujeito — sujeito esse plenamente imerso no mal-estar da modernidade e, no caso do estudo em questão, amplificado a nível social.

Os filmes que me prupus a observar privilegiam quem os assiste ao conceder vislumbres de uma espacialidade fisicamente impossível: o mundo interior de um sujeito. Imerso em suas angústias, impossibilitado de localizar sua própria ferocidade, ele a remove de si e a recoloca nos objetos que estão à disposição, ao seu redor. Esses, assim, são experimentados como se amplificados, tornados extremos: abarcam na própria imagem a desmesurada intensidade dos afetos primitivos.

É característico desse cinema conferir vida ao inanimado, bem como encontrar nos cômodos da casa, nas ruas, nas paisagens, os espelhamentos múltiplos e infernais de seus protagonistas malogrados. Seria esse recurso expressivo um mero flerte com a qualidade do mágico, cuja irrealidade se faz cabível na arte? Poderia ser, diferentemente, o consistente retrato da condição daquele que, no predomínio e fixação da posição esquizoparanoide, vem a se estruturar psiquicamente pela via de uma psicose?

Penso que, para além dos sujeitos inventados para esse cinema, é possível neles reconhecer algo de hostil que é sentido em escala social, e que se impõe às vivências humanas singulares daquela época. O que acontece quando o limiar da destruição fantasiada — inerente ao humano, para Klein -, é atravessado pela concretude de uma destruição inegável e massiva em determinado contexto histórico? Estar vivo no entreguerras ou na pandemia do coronavírus: quanto do trauma a céu aberto reaviva as mais insondáveis angústias de aniquilamento, comprova-as em seus mortos ao chão e torna superlativa a força arcaica das perseguições sentidas?

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Referências bibliográficas

A cidade no cinema alemão entre 1910 e 1930: representação do espaço urbano e problemáticas da modernidade / Isabela Soriano Sancho; orientação Anat Falbel. Iniciação científica FAPESP.

Algumas Conclusões Teóricas Relativas à Vida Emocional do Bebê — Obras Completas de Melanie Klein — Vol. III / Melanie Klein. Editora Imago;

Melanie Klein: Estilo e Pensamento / Elisa de Ulhôa Cintra e Luís Cláudio Figueiredo. Editora Escuta;

Por quê Klein? / Elisa de Ulhôa Cintra, Marina F. R. Ribeiro; coordenação Daniel Kupermann. Editora Zagodoni.

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Isabela Sancho

Escritora, ilustradora e psicanalista. Autora de "As flores se recusam", "A depressão tem sete andares e um elevador", “Monstera”, “Olho d’água, espelho d’alma”