A prima pobre de Rory Gilmore

Bárbara Araújo
8 min readNov 29, 2016

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Nesse texto vou falar de personagens como se fossem pessoas reais, vou soltar a franga das minhas próprias neuroses misturadas com análises sociológicas e vou dar muitos spoilers de Gilmore Girls. Meu objetivo é tentar trazer novas nuances para as opiniões que tenho visto por aí, e não fazer realmente uma análise com A maiúsculo. Agradeço a Amy Sherman-Palladino pelas reflexões alcançadas. Vamos lá.

Minha perspectiva sobre a nova temporada de Gilmore Girls passa por uma questão específica: os paralelos entre minha história e da minha mãe e a história das Lorelais. Eu e minha mãe assistimos a série quando ela passou originalmente e depois revi a coisa toda quando as temporadas saíram na Netflix, igualmente a todo mundo. Brinquei que nós éramos as Gilmore Girls do Terceiro Mundo (Araújo Girls!): nunca tivemos casa própria (e não chegamos a morar só eu e ela), passamos por mil perrengues financeiros, meu pai desapareceu no mundo sem nunca pagar pensão, eu saí de uma escola privada para uma pública porque não tínhamos mais grana pra bancar (tipo Chilton, só que ao contrário), etc.

Mas o mote da mãe e da filha que são melhores amigas, com toda a dor e a delícia que isso pode trazer, me sensibiliza particularmente. Temos também a nossa própria Emily Gilmore — e os problemas entre mãe e filha (avó e mãe), quando aparecem na versão Terceiro Mundo, são beeem mais complicados, como dá pra imaginar.

Outra semelhança, que nossa latinidade transforma em algo mais gritante que no caso das Gilmore, é o fato de que minha mãe sempre foi muito expansiva e animada e eu sempre fui introvertida. A garota de fala mansa e cara enfiada nos livros enquanto a mãe estava toda locona de café com umas brusinha de borboleta conversando com todo mundo da cidade era algo bastante familiar pra mim (com a diferença que eu não sou adorável que nem a Rory, sou antissocial mesmo, risos).

Acontece que “ser” a Rory do Terceiro Mundo (a “prima pobre” da Rory) me fez ter com a do Primeiro Mundo uma relação de muito mais contraste do que proximidade. Os privilégios que Rory Gilmore teve fizeram absoluta diferença em quem ela se tornou: uma pessoa péssima, em minha humilde opinião. Assim como os perrengues que eu e minha mãe enfrentamos constituíram quem eu sou. Por isso, depois de muitas discussões nas redes sociais, no café cazamiga etc. e tal, fiquei com vontade de escrever um texto chamado “Porque Rory Gilmore desperta meu ressentimento de classe”. Acabei deixando um título mais light, risos.

Rory e a expectativa de sucesso

Uma das neuroses criadas pelas circunstâncias da minha história com a minha mãe tem a ver com a expectativa de que eu vou ter/ preciso ter sucesso sempre. Não que minha mãe tenha nunca me cobrado desempenho ou perfeição, mas a forma dela de me incentivar em todos os momentos críticos da vida foi dizer “eu sei que você vai conseguir”. Mas, mãe, eu posso não conseguir! “Bárbara, eu sei, eu não tenho nenhuma dúvida”. Nessa, eu passei no concurso pra escola pública federal, nos vestibulares mais disputados, na seleção do mestrado e do doutorado com bolsa. Mas algumas vezes eu também não consegui. E essas poucas vezes me tombaram que nem uma jaca podre. Porque de verdade, de verdade mesmo, eu sempre achei que iria conseguir. Por ser inteligente, sim, mas por precisar conseguir. Porque uma coisa é querer entrar em Harvard porque, pô, é super legal. Outra é precisar passar na seleção xis com bolsa auxílio porque, se não, não vai ter como se manter. De qualquer forma, as minhas não-vitórias (trabalhadas em alguns anos de análises) foram fundamentais pra mim, com o perdão do clichê. Mas isso são outros quinhentos.

- Ora, então você super tá em sintonia com a Rory! Ela também foi pega de surpresa pelas não vitórias!

Não. A Rory não pode ser responsabilizada pelas expectativas que os outros projetam sobre ela. Mas pode ser responsabilizada pelo que escolheu fazer com essas expectativas e a partir dessas expectativas. Ela se tornou uma pessoa que se acha superior às demais, extremamente autocentrada (e de autocentramento eu também entendo um pouco) e que não parece ter muita consideração pelas pessoas à sua volta. Evidência número 01: Paul. Quero morrer com o storyline do Paul, que não achei engraçada sob nenhum aspecto. Que coisa horrenda a forma como Rory o tratou. Evidência 02: Relação com o Logan (#TeamOdette). Evidência 03: Lorelai e o livro. Voltarei às duas últimas.

Rory e sua lona de plumas de gansos egípcios chamada privilégio de classe

Mas então, por que será que a Rory se tornou uma pessoa péssima?

Entre outras coisas, porque ela pode.

Rory foi o centro da vida da mãe, dos avós, da cidade de Stars Hollow em alguma medida. Muita gente já falou pelazinternet sobre o quanto ela foi protegida e mimada de tudo quanto era lado. Mas meu ponto não é esse: ela é uma garota rica. E não é pouco rica não, é rica pra cacete. Isso faz com que o insucesso dela na nova temporada não seja simplesmente “nossa, a Rory ficou numa pior”. Vi um monte de gente falando “coitada da Rory, se fodeu bonito” ou “bem feito pra Rory, se fodeu bonito”, referindo-se ao fato de que não a encontramos realizada profissionalmente ou na vida amorosa. O lance é que o que acontece com a Rory está LONGE de ser se foder bonito.

Ela pode andar numa corda bamba de guarda-chuvinha porque tem sobre si uma lona protetora de gansos egípcios chamada privilégio de classe. Não apenas ser amada, mimada, protegida. Rory pode “desistir do apê no Brooklyn” porque tem seu quarto na casa da mãe se quiser voltar, uma mansão vazia da avó pra escrever (cara! cara!!!). Ela pode procurar o emprego que acha ~digno~ de sua maravilhosidade sem se preocupar com conta pra pagar ou com comida pra pôr na mesa (ela não precisou nem saber cozinhar, pelo amor da deusa). Essa coisa que as pessoas estão vendo na história da Rory como uma representação da juventude contemporânea com dificuldades no mercado de trabalho, que acaba voltando desiludida pra casa (“a turma dos trinta e poucos anos”) tem um recorte de classe que é abissal no caso dela.

Queria eu estar sofrendo com meu potencial não realizada sendo herdeira de uma fortuna imensurável. Quer dizer, queria nada, não se for pra ser péssima com os outros como ela *ressentimento de classe*. Isso tem tudo a ver com a opção por ter aquela relação escrota com o Logan e continuar achando a Life and Death Brigade uma coisa mágica e foda a essa altura do campeonato da vida.

[sobre a Life and Death Brigade: pra não dizer que imagino Collin e Finn no paredão da revolução, vou lembrar só daquela cena antiga em que o Jess encontra a Rory quando ela tinha largado Yale e diz que o Logan e essa galera eram tudo que eles sempre desprezaram e sacanearam. Mas ela nunca conseguiu sacar isso. Ela é eles. E são todos uó.]

Que pulem todos juntos para a ponte que partiu.

Rory e o livro “Gilmore Girls” sem o The.

Um último ponto em que acho importante tocar, porque também me parece ter sido mal compreendido por aí, é por que o livro de Rory é uma vacilação máxima (embora possa ser interpretado como sendo a própria série, e nós gostamos da própria série, hehe).

“Por que será que a Lorelai ficou tão bolada com a perspectiva de ter um livro escrito sobre sua história? Ela é tão legal, podia ser ótimo”. Pra responder isso, volto à minha mamãe, somando outras experiências de mães solo que vejo por aí.

Coisa número 1) a forma como se constrói a própria vida privada (em especial a vida amorosa/sexual) quando se é mãe solo. É mega comum uma postura de não levar qualquer parceiro pra casa, como a regra que a Lorelai tinha nas primeiras temporadas. Pelo cuidado com os sentimentos da própria filha, o medo de trazer alguém para o seio da família que possa causar uma instabilidade (a filha se apegar a um cara que não vai ficar), etc. Isso não é uma coisa simples e consigo imaginar o quanto publicizar a vida de alguém que construiu sua intimidade sobre essas bases pode ser agressivo.

Coisa número 2) Lorelai, minha mãe e tantas mães solo passaram a vida inteira tendo que bancar suas escolhas em relação à forma de criar seus filhos enquanto o mundo inteiro dava pitaco. O povo não apenas se sentem no direito de dizer como devem agir em relação a seus filhos, mas em relação à vida delas em geral — como deve se portar uma ~mãe solteira~, que ela tem que achar alguém pra dividir as responsabilidades, etc. O próprio lance de ter a filha como melhor amiga, que pode parecer fofo pra nós, muitas vezes é visto com maus olhos socialmente, já que tropeça em algumas hierarquias familiares bem básicas.

Um livro contando a história das duas exporia todas as suas dificuldades e fragilidades para todos esses olhares julgadores. Literalmente seria ter a vida como um livro aberto para os críticos opinarem. E se você passa uma vida bancando sua relação com sua filha e suas escolhas de modo geral, tentando passar por cima de um monte de preconceitos sociais, parece extremamente agressiva, mais uma vez, a proposta de Rory.

Rory, esse serzinho abençoado que recebe o incômodo profundo da mãe diante a proposta do livro com um IGNORE gigante. Ela demanda da mãe a última coisa de que ela ainda não havia aberto mão, sem se preocupar de verdade com a forma como isso a afetará. E achei ruim pra cacete, embora totalmente verossímil (sei que minha mãe faria o mesmo por mim), Lorelai acabar aceitando o livro sem nem ler. Rory quer, Rory tem, no que depender de seu incrível sistema de suporte. E se o livro não for a obra prima de sucesso que ela espera? Tá lá a herança dos avós, o papi ausente porém muito rico e milionário cheio de remorso por não ter participado tanto quanto deveria de sua vida, tá lá a cidade fucking inteira, a batata frita do Luke. E é por isso que ela pode continuar demandando coisas dos outros, procurando o que melhor lhe convier. Porque não é a Rory do Terceiro Mundo que tem que lidar com a possibilidade real de não ter dinheiro pra habitação se as coisas não começarem a melhorar.

Eu falei que ela cutucava meu ressentimento de classe. Risos.

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Bárbara Araújo

professora de história, capoeirista, marxista e feminista interseccional.