Errou de novo, Netflix: "Insatiable" e compulsão alimentar

Beatriz Klimeck
4 min readJul 20, 2018

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Descrição visual: duas mulheres (uma delas, a atriz principal) de biquini, como se desfilassem em uma passarela. Atrás delas, podemos ver um estacionamento com alguns carros e, dividindo os espaços, uma placa azul claro escrito em rosa “Benefitting Northern Georgia Eating Disorder Recovery Clinic”, com desenhos de patinhas de cachorro e marcas de beijo.

TRANSTORNOS ALIMENTARES NÃO SÃO PIADA.

Eu acreditava de verdade que a Netflix tinha aprendido alguma coisa depois de lançar o filme "O Mínimo pra Viver". Diversos profissionais do mundo inteiro se uniram pra dizer o quanto ela era problemática, reforçava estereótipos e era um perfeito exemplo de como não falar sobre transtornos alimentares, como a antropóloga Daniela Araújo escreveu nesse texto.

Mas não.

Uma nova série de comédia da Netflix, "Insatiable" (Insaciável), mostra uma atriz magra — usando uma "fat suit" (roupa de enchimento) — representando uma menina gorda que sofre bullying pelo seu peso no colégio. Depois de levar um soco e quebrar a mandíbula, os médicos fecham a boca dela (literalmente), ela emagrece, entra no padrão estético e agora quer se vingar de todo mundo que a desmerecia por sua aparência.

As primeiras imagens da série mostram a atriz quebrando sacos de salgadinhos e refrigerantes num supermercado com uma espécie de machado, o que já é beeeeeem estereotipado. O título sugere um trocadilho entre ela comer muito (insaciável) e sua sede de vingança. Mas o trailer, que saiu ontem, levou as coisas a outro nível.

A atriz principal, Debby Ryan, está fazendo posts em sua conta no Twitter ressaltando que entende o quão problemática é a premissa mas reforçando que a série tem a ver com, de alguma forma:

conscientizar sobre o transtorno da compulsão alimentar.

Descrição visual: captura de tela de petição no site change.org pedindo para que não lancem a série Insatiable, com o título "Stop the Release of Netflix's Body-Shaming series 'Insatiable'".

Er, curioso.

Todas as ativistas que conheço estão assinando petições para que a série não seja lançada, propondo boicotes e espumando pela boca de raiva. Acho que algo deu errado aí, né.

Vamos lá.

1. Gordofobia não é "didática": rir do oprimido não tem a menor graça

Se a série é de comédia, era pra o trailer ser engraçado, certo?

Não vi nada de engraçado ali. Uma menina ser chamada de “fatty Patty” é engraçado? Trocadilho com ela não perder a virgindade e sim “encher outro buraco” é engraçado? Falarem "uh, Patty ficou gostosa!" é engraçado?

Muitas pessoas gordas estão se manifestando em relação à gordofobia da série. Além de que essa idéia de “revenge body” já é criticada há muito tempo por reforçar que é válido mudar sua própria imagem para provar algo a outra pessoa, visto a série com esse nome criada por uma das Kardashians.

O uso de enchimento, a representação de uma menina gorda como "infeliz" e virgem, que conquista tudo quando emagrece — já tá batido, já deu, estamos em 2018, tem centenas de narrativas alternativas melhores.

Mesmo que vocês me enganassem com essa de que é uma "crítica": conseguem imaginar a quantidade de meninas que vão ignorar a sutil "crítica" de vocês e vão sonhar com poderem se vingar também?

E quais as materializações possíveis de "costurar a boca"?

Cortar parte do estômago com cirurgia bariátrica. Comer e vomitar. Não comer.

Grande "conscientização" a de vocês.

2. Associar compulsão alimentar com pessoas gordas é um desserviço.

De novo, vou fingir que acredito nessa proposta de conscientização aí.

Uma série não é escrita do nada. Tem pesquisa, tem equipe. Se leram, sabem que nem toda pessoa gorda tem compulsão e nem toda pessoa com compulsão é gorda.

O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V) — que é problemático em vááários aspectos— , no trecho sobre Transtorno da Compulsão Alimentar, diz que ocorre em indivíduos de distintos pesos e, que apesar de comumente associado à “sobrepeso” e “obesidade”, a maior parte dos indivíduos considerados “obesos” não sofre de compulsão alimentar. Ou seja:

reproduzir

estereótipo

à

toa

não

ajuda

em

nada.

E ainda piora…

3. Emagrecer não cura compulsão alimentar — nem "fechar a boca"

E aí chegamos na parte que me dá mais raiva. Eu ia deixar minhas amigas gordas comentarem sobre a série, visto que muita gente está endereçando a gordofobia, e aí um frame curtinho me tirou de mim.

É a cena que ilustra esse post, lá em cima. A atriz entra de biquíni e, num cartaz no fundo, lê-se "Evento beneficente do Centro de Recuperação de Transtornos Alimentares do Norte da Georgia”.

Ou seja. A cena introduzida no trailer quer fazer graça do fato dela poder ser "modelo" de um centro de recuperação de transtorno alimentar, já que ela emagreceu, e, portanto, teria se curado do transtorno da compulsão alimentar.

Emagrecer não cura compulsão. Compulsão se cura com (muita!) terapia, com o endereçamento das questões, com uma nova relação com a comida. Não com costurarem sua boca.

Pelo contrário: muitas pessoas desenvolvem TAs restritivos tentando "lidar" com a compulsão e muitas pessoas com TAs restritivos têm episódios de compulsão.

Que conscientização é essa?

Eu não acho engraçado, Netflix. E junto a mim, muita gente também não acha. Tanto dinheiro envolvido e a possibilidade de produzir tanta coisa interessante. Quando o seu humor machuca um grupo oprimido e pode facilmente incentivar problemas de saúde… não é nada revolucionário.

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Beatriz Klimeck

na luta diária pela conscientização de que deixar de odiar o seu corpo é a maior revolução.