Eu, feminista e com um transtorno alimentar

Beatriz Klimeck
9 min readAug 17, 2015

Naturalizar dietas está destruindo vidas a cada instante e nós precisamos falar sobre isso.

“There is nothing more feminist than owning your truth and sharing it. That’s how lives are changed.” Melissa A. Fabello

95% das pessoas afetadas por transtornos alimentares são mulheres entre 12 e 25 anos*

51% das garotas entre 9 e 10 anos se sentem melhores sobre si mesmas quando estão de dieta

35% das pessoas que costumam estar em dietas “normais” progridem para uma alimentação patológica

Resolvi escrever hoje pelo mesmo motivo que me faz escrever todas as vezes: anseio por organizar as questões sobre as quais sempre falo por aí. Cada dia mais tenho certeza de que é urgente falar sobre isso; no entanto, dessa vez é infinitamente mais difícil.

Neguei por um certo tempo; é difícil admitir que as coisas saíram do seu controle. Há alguns meses, passei uma semana na casa de um amigo e, depois de dias perfeitamente confortável, feliz e ansiosa por conseguir realizar duas pequenas refeições no dia, sussurrei, pela primeira vez, em prantos, sobre o que enfrentava.

Ao assumir para mim mesma, debrucei-me sobre artigos, relatos e livros sobre transtornos alimentares, o que me permitiu não cair da maneira que poderia. Comecei a entender os processos, delimitar possíveis causas, estudar meu passado, escrever, escrever, escrever. Nessa pesquisa, duas coisas ficaram muito evidentes: 1) mesmo a literatura especializada é cheia de mitos, olhares patologizantes e pouca compreensão das dimensões sociais do processo 2) a grande maioria das pessoas não faz a menor idéia do que realmente seja um transtorno alimentar.

Mesmo.

Como isso não é um texto pedindo por compaixão nem uma superexposição mal calculada — medi muito os prós e os contras antes de escrever — , quero usar esse espaço pra falar um pouco sobre tudo o que eu venho aprendendo.

(vou me dedicar, nesse texto, a falar sobre distúrbios alimentares de restrição — os mais famosos são anorexia e bulimia — mas esses nem sempre andam sozinhos.)

Já é quase perfeitamente natural que mulheres estejam sempre de dieta.

Por isso, praticamente ninguém ao meu redor percebeu. É difícil que alguém note enquanto não perdemos dez quilos. Se estamos comendo 800 calorias por dia, “ela só está (de novo) em uma dieta louca”. As pessoas não sabem quantas refeições pulamos; quantas vezes negamos comida ao nosso estômago, que ronca e dói; quantas vezes vamos dormir mais cedo para evitar outra refeição; quantas vezes comemos escondidas, tomadas por culpa; quantas vezes enfiamos colheres repetidamente em nossas bocas sem sequer mastigar a anterior, tomadas por ansiedade.

O senso comum entende meninas com transtornos alimentares restritivos como pálidas, sem expressão, com todos os ossos saltados. Enquanto a aparência não se mortifica o suficiente, o desconforto com o corpo e o que fazemos por isso não têm a menor importância: “mulher é assim mesmo”.

O maior elogio que costumamos fazer umas as outras — salvo exceções — é “como você está magra”. O que é a dor (física e mental) de pular um almoço diante das pessoas me validando? Por que não menos só uma refeição?

Minha relação não-saudável com a comida não é de hoje. Não me lembro quando os comentários começaram, mas sempre vieram de todos os lados: família, amigos, colegas, crianças, adultos; carrego muitos comigo há cerca de dez anos, com a clareza de tê-los ouvido ontem.

Isso talvez explique porque eu tenha optado por tantas dietas radicais desde, talvez, os treze anos, mas não explica integralmente meu transtorno alimentar.

Resolvi, então, enumerar algumas constatações a que cheguei enquanto estudava e ao mesmo tempo experienciava muito do que lia.

I. Não é “desespero por atenção”, frescura ou futilidade que gera distúrbios alimentares de restrição em pessoas.

Podemos dizer que, em todos os casos, há algum grau de insatisfação com os nossos corpos. O que não é nada demais. As capas de revista nos vendem corpos magros, brancos (mas perfeitamente bronzeados), sem estrias, manchas, celulites, com cabelos lisos (mas perfeitamente bagunçados), como plástico, moldados exaustivamente para que pareçam perfeitos. Ao lado das imagens, “perca 10kg em 4 dias”, “a dieta que conquistou South Beach”, “a fruta do momento do prato das famosas”, “o novo agachamento para definir o bumbum”.

Descobrimos que, para tentarmos nos adequar mais um pouquinho a isso tudo, podemos pular uma refeição. Diminuir metade do nosso prato. Dormir mais cedo para não jantar. Talvez pular duas refeições.

Trocar um almoço por um suco, então, costuma virar parte de um pequeno jogo. Quanto tempo consigo ficar sem comer? Quantas calorias consigo não ingerir hoje? Quanto controle tenho sobre meu corpo? Eu sou a dona de mim mesma. Eu me torno extremamente mais leve e agitada e intensa quando não como.

Eu não preciso de comida.

Dessa forma, insistir para que alguém com um transtorno simplesmente coma não resolve o problema. Pessoas com transtornos alimentares costumam sofrer de dismorfia corporal, enxergando seus corpos de maneira distorcida (não a todo instante, majoritariamente em momentos de crise). Repetidamente afirmar a alguém com TA de que ela/ele está magra/o não resolve o problema, pelo contrário: quando há conhecimento sobre a natureza do transtorno, costuma gerar culpa e mais ansiedade.

II. Caso fosse apenas sobre a obsessão atual com a magreza, não teríamos casos registrados de mulheres com TAs desde Idade Média.

Santa Catarina de Siena (1347–1380) é entendida hoje como a primeira mulher da história a sofrer de anorexia. E o que foi por muito tempo entendido como “jejum santo” atingiu diversas outras canonizadas: Santa Maria Madalena de Pazzi (1566–1607), Santa Rosa de Lima (1586–1617), Santa Veronica Giuliani (1660–1727) e tantas outras. Santa Margarida de Cortona (1247–1297) teve a fome registrada como a causa de sua morte, e seus relatos trazem frases e sentimentos muito similares aos encontrados em diários de meninas hoje em dia.

O primeiro caso diagnosticado como anorexia nervosa foi feito em 1691, e abriu espaço para a consideração das bases emocionais do transtorno alimentar.

III. Também não ajuda em nada resumir TAs a transtornos psiquiátricos.

“Distúrbios alimentares são “sobre”: sim, controle, e história, filosofia, sociedade, estranhamento pessoal, problemas familiares, autoerotismo, mitos, espelhos, amor e morte e sadomasoquismo, revistas e religião, a cega caminhada a passos trêmulos de um indivíduo por um mundo sempre desconhecido. A questão realmente não é se distúrbios alimentares são “neuroses” ou uma falha na mente — mesmo eu teria dificuldade em justificar, racionalmente, a prática de passar fome até morrer ou me fartar de comida só para vomitar depois — mas porquê; por que essa falha, o que virou essa chave, por que tantos de nós? Por que é uma decisão tão fácil, essa? Por que agora? Alguma toxina no ar?” (Hornbacher, 2006)

Assumir que são transtornos mentais podem ajudar a encarar o problema e entender que não “é frescura” , mas afasta muitas/os do diagnóstico. Afinal, em um transtorno que é muito sobre controle, aceitar que não o tem é um processo tão temido que leva adolescentes a morrerem antes de contar a alguém. Por isso, TAs costumam culminar em — ou, em outros casos, ser consequência de — depressão, por exemplo, pois a pessoa acaba se fechando e se consumindo no processo.

Separar pessoas que sofrem de problemas com a alimentação e a autoimagem entre “pacientes com transtornos mentais” e “não-pacientes” pode, também, servir como um incentivo: muitas garotas relatam cair mais profundamente na lógica quando ouviram que “o caso dela é grave o suficiente, o seu não”, “ela parece anoréxica, você está no peso ~ideal~” ou “você ainda é gorda”.

IV. Transtornos alimentares são uma questão de gênero porque atingem majoritariamente mulheres.

“Não comer, de algumas maneiras, significa que você tem uma vida tão cheia, que sua ocupação é tão importante, que a comida seria uma imposição a seu tempo tão precioso. Nós alegamos falta de apetite, uma tão-sagrada afisicalidade, supermulheres que dominaram o reino feminino do que é material e finalmente ganharam acesso ao reino masculino da mente. E, no entanto, essa máxima não é nova. Uma dama comerá como um pássaro. Uma dama se parecerá com um pássaro, com ossos frágeis e poderosa quando voa, elevando-se sem peso pelo ar.” (Hornbacher, 2006)

Espera-se que mulheres estejam sempre de dieta, então cá estamos. A linha entre um transtorno alimentar e “dieta radical” é pouco visível de fora, principalmente porque premiamos pessoas que emagreceram por sua “força de vontade”. Sempre.

Aproximadamente 5% dos casos de anorexia e bulimia são de homens*. Claro que um homem sofre com imposições estéticas, mas mulheres são cobradas infinitamente mais para estarem inseridas no padrão considerado adequado.

Produtos “light” geralmente apresentam mulheres em seus rótulos. Espera-se que mulheres contem calorias. Cardápios de salada são feitos para mulheres. É aceito que o homem se case e mantenha uma “barriga de cerveja”, enquanto as mulheres são ridicularizadas por engordar após o casamento (mesmo logo após terem filhos, o que altera seus corpos e frequentemente diminui a auto-estima).

“A ideologia de voluntariamente negar comida a si desfaz o feminismo; o que acontece com os corpos das mulheres acontece com nossas mentes. Se os corpos das mulheres são e sempre foram errados enquanto os dos homens são certos, então mulheres são erradas e homens são certos. Enquanto o feminismo ensinou mulheres a dar mais valor a si mesmas, a fome nos ensina como corroer nossa auto-estima. Se pode-se fazer uma mulher dizer “eu odeio minhas coxas gordas”, é uma maneira na qual se fê-la odiar a feminilidade.” (Wolf, 1991).

V. Não é hipocrisia afirmar que todos os corpos são bonitos e válidos quando se tem um TA.

Uma leitura superficial das pessoas diagnosticadas levariam a entender que são só obcecadas por serem aceitas e validadas socialmente, que são apegadas a padrões estéticos inalcançáveis, que estão futilmente recusando comida enquanto “há tanta gente morrendo de fome no continente africano”. Como disse, questões muito mais profundas ocupam as mentes de pessoas com transtornos alimentares que um “culto à magreza” por ela só. Não à toa, são inúmeras as garotas com transtornos alimentares restritivos que têm como modelos de beleza mulheres cheias de curvas.

VI. Falar em magrofobia seria análogo a falar em racismo reverso.

Trazer a questão dos transtornos alimentares restritivos não é dizer, no entanto, que mulheres magras “sofrem tanto quanto” mulheres gordas. Pessoas gordas sofrem enorme preconceito (fundado também por desinformação sobre saúde), têm mais propensão a serem rejeitadas, são preteridas diante de pessoas magras ao disputarem uma vaga, são raros os lugares onde pessoas gordas podem comprar roupas, os assentos por todo lugar são feitos para pessoas magras, e por aí vai. Afirmar isso não é diminuir a sua vivência individual de sofrimento enquanto pessoa magra: é assumir que, estruturalmente, essas pessoas são postas em uma sociedade que rejeita corpos fora-do-padrão a todo instante.

81% das garotas de 10 anos tem medo de serem gordas*.

Eu sonho com um mundo menos cruel, e nesse âmbito não poderia ser diferente. A sociedade fala muito sobre “os perigos da obesidade”, mas prefere se calar diante dos absurdos dados sobre transtornos alimentares em crianças.

Tenho uma irmã de nove anos — idade na qual grande parte das pessoas com TAs desenvolveram relações complicadas com seus corpos. Tenho uma lembrança da comemoração desse meu aniversário que traz lágrimas aos meus olhos até hoje.

Quero que a história dela seja diferente, e é também para isso que eu escrevo esse texto: não posso mais ficar calada vendo-a ser engolida por essa lógica perversa que opera em silêncio e molda a vida e a personalidade das pessoas. Quero que ela seja como uma leoa, empodere seu corpo e se ponha no mundo ocupando os lugares com sua presença.

Aos poucos, eu estou voltando a ser a leoa de mim mesma. Não conseguirão me docilizar pra sempre. Nem a mim, nem a nenhuma outra.

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Beatriz Klimeck

na luta diária pela conscientização de que deixar de odiar o seu corpo é a maior revolução.