A distorção existe

Bianca Martim
5 min readAug 1, 2019

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A narrativa descrita no livro 1984, de George Orwell, sempre pareceu distante. O cenário político e social brasileiro de 2019, porém, se assemelha às circunstâncias fictícias da admirável obra de Orwell. Fatos, estudos, dados e outros elementos que deveriam ser inquestionáveis estão sendo colocadas em cheque a todo momento.

Pode-se dizer que o presidente Jair Bolsonaro se elegeu por meio de fatos alternativos, isto é, utilizando argumentos não comprovados para manipular o debate público e a decisão de milhões de eleitores. Ao analisar conceitos e problemas importantes do país, a razão e a análise crítica são deixadas de lado e a emoção passa a prevalecer. Soluções que parecem mais confortáveis ao cidadão de classe média são colocadas como as melhores.

Gratuitas aos usuários, ferramentas como WhatsApp e Facebook foram muito valiosas aos políticos que chegaram ao poder em 2018. E continuam sendo. Utilizando estratégias de comunicação de massa, Bolsonaro e seus filhos fizeram circular, desde 2014 — quando o político tomou a decisão de se candidatar à presidência na eleição seguinte –, informações inverídicas para estimular o debates entre eleitores do presidente e oposição. O então candidato à presidência se colocava como um “amigo” que entendia perfeitamente as necessidades e aflições do cidadão comum (como a segurança pública, por exemplo) e apresentava projetos baseados na emoção (armar a população).

As propostas rejeitam dados técnicos e outros estudos importantes para compreender a sociedade e levava em conta apenas o desespero da população. É notável, portanto, que a emoção superou a razão diversas vezes durante as Eleições de 2018.

Para controlar parte do eleitorado, o presidente se mantém fiel a eles. Conquistas importantes foram se retrocedendo de forma natural e informações absurdas precisaram ser desmentidas com muito custo. Em vez de caminhar, o Brasil parecia retroceder em aspectos muito básicos. Como? Com pessoas ao lado de quem está no governo. Afinal, a famosa reflexão de Simone de Beauvoir nunca fez tanto sentido: “o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos.” Sem a massa de apoiadores, é notável que o poder não se sustenta, já que o plano de governo do atual presidente nunca ficou nítido.

Pós-verdade, eleita palavra do ano pela Oxford em 2016, se refere às circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos importância que crenças pessoais. Não importa se, na verdade, certas narrativas são meramente mentiras inventadas pela oposição. O que importa é que a afirmação se parece verdadeira e, como os eleitores se sentem com seus valores ameaçados, é preciso repudiá-la e atacar o outro lado de maneira bruta e cheia de ódio. Estilos de vida e crenças pessoais são muito mais importantes do que dados estatísticos, checagem de fatos e entendimento amplo da sociedade em que vivemos.

O conceito de fato alternativo busca chamar atenção para palavras que ferem a democracia. Afinal, é impossível mantê-la com a chama acesa quando opiniões contrárias a até mesmo argumentos refutados estão duramente ameaçados. Em setembro de 2018, Bolsonaro afirmou: “vamos fuzilar a petralhada”. Essa afirmação mostra que não há preocupação em recuperar a credibilidade do país e caminhar rumo ao desenvolvimento nacional.

Em vez disso, o ódio reina e estranhos desejos vêm à tona.

A dúvida que aflige uma parcela da população se refere a volta da ditadura militar: esse tipo de intervenção caberia no contexto atual? Partindo do princípio em que todos estão conectados constantemente entre si em plena era digital, as pessoas dificilmente seriam silenciadas de uma hora para outra. O mundo todo mantém conexão, consome informações e troca ideias e, por isso, estabelecer estratégias de censura ou mesmo repressão física seria complicado aos simpatizantes de um regime antidemocrático.

Em 1964, controlar pessoas, comportamentos e movimentações era relativamente fácil, já que informações e novidades eram transmitidas apenas através da televisão e de outros jornais locais. Por isso, esconder situações e manipular a realidade era muito mais viável.

Hoje, o que acontece é ao contrário: uma enxurrada de informações e ideias estão sendo jogadas a todo o momento para milhões de brasileiros, sem filtros ou controle. Assim, o que se aproxima cada vez mais é o controle ideológico: o governo ataca a oposição e defende seus interesses de forma agressiva, sem espaço para opiniões contrárias. E claro, com apoio de uma massa de eleitores que se mantém fiel aos que estão no poder.

Com apoio, apoiadores do governo atual ajudam a disseminar valores impostos a todo custo e promovem uma espécie de fiscalização — para que todos que pensem de outra maneira sejam tachados, atacados, ameaçados e colocados fora do debate.

A “ditadura” pode ser considerada ideológica porque os principais locais de pesquisa, ciência e desenvolvimento humano estão sendo silenciadas e colocadas como inimigas da nação. É impossível provar o contrário para os fiéis apoiadores do governo que, raivosos, defendem o presidente e seus valores em qualquer ocasião — mesmo que a decisão seja muito absurda e inquestionavelmente ruim.

A redução do questionário do censo mostra que não há como detectar problemas no Brasil se não procurarmos por eles: exatamente o que o atual governo tanto almeja.

Se não há como encontrar dificuldades, não há como detectá-las e, consequentemente, não há nada o que precise ser feito.

Dados preciosos sobre saneamento básico, saúde pública, renda, geração de empregos, população e segurança pública serão enxugadas. Sendo assim, qual caminho o país está seguindo?

Cortes na educação pública — também baseados em motivos ideológicos — mostraram que investir em pesquisas não é prioridade ao governo. “Queremos uma garotada que comece a não se interessar por política”, lembrou Bolsonaro. Ora, é claro: estimular o interesse por debates democráticos e capacitar crianças e jovens para ter pensamento crítico é uma grande ameaça a um governo que não é aberto ao diálogo. Professores e profissionais da educação são, então, inimigos do Estado, assim como a sociologia e a filosofia, campos de estudo que estudam o comportamento das sociedades humanas e propõem reflexões gerais em busca da verdade.

De modo geral, todos que são contra essas medidas propostas pelo governo são duramente atacados pelo próprio presidente — em que chamou manifestantes contrários aos cortes de verbas das universidades de “idiotas úteis”, deslegitimando os protestos — e também por seguidores dele.

No último dia 30 de maio, uma nota assinada pela sociedade civil fez críticas ao número de decretos-lei assinados pelo presidente em apenas seis meses de mandato. O documento resume bem as decisões que estão sendo tomadas pelo governo: “não surpreende que quem celebra o Golpe de 64 aspire a governar desrespeitando o rito democrático e burlando os processos legislativos.”

Os membros também comparam o número de decretos-lei durante a ditadura militar, que foram usados “para que a vontade soberana do presidente se impusesse”. Tais acontecimentos realmente remetem à famosa obra de Orwell.

A história é recontada a partir do ponto de vista de quem quer se manter no poder a todo custo.

A manipulação ideológica é tão perigosa quanto uma possível volta da ditadura militar porque ela é abstrata, invisível, sutil e delirante. Na obra 1984, esse perigo é trazido à tona: “tudo o que fosse verdade agora fora verdade desde sempre, a vida toda.”

Escrito em maio/2019

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