Um vale-tudo pelo poder
Uma reflexão sobre como o regime militar chegou ao poder em 1964
Segundo pesquisa divulgada pelo Datafolha em 6 de abril de 2019, 57% dos brasileiros desprezam comemorações sobre o início do Regime Militar, ocorrido em 31 de março de 1964. E não é para menos. Na verdade, a rejeição deveria ser bem maior. A lembrança dos anos sombrios fomentaram uma discussão 55 anos após o início de um regime liderado por poderosos que não estavam nem um pouco preocupados com o bem-estar e a prosperidade dos brasileiros.
Para o dicionário Michaelis, “golpe” significa movimento brusco ou violento, de ataque ou defesa, que acerta uma pessoa.
De fato, os interessados em ocupar o posto mais alto do Poder Executivo pareciam querer se defender de forças sociais e mudanças políticas que ocorriam no Brasil. Mas, em 1964, a agressividade não atingiu apenas um indivíduo. O estrago foi tanto que mais de 434 pessoas foram mortas ou foram dadas como desaparecidas durante o Regime Militar, de acordo com a Comissão Nacional da Verdade (CNV).
Em março de 1964, uma marcha à favor da família se posicionava contra as reformas políticas propostas pelo então presidente João Goulart, o Jango. Com o lema de se sacrificarem para “restaurar a ordem no Brasil”, militares se propuseram a livrar o país da corrupção e impedir que as reformas (a Reforma Agrária, a aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural e a articulação entre movimentos dos trabalhadores com a burguesia nacional) fossem instauradas.
Se posicionar contra esses projetos de governo é um direito tanto dos parlamentares quanto da população em geral. O que estava em jogo, no entanto, foi a resposta radical — e um tanto quanto imatura — às ideias de cunho político e social da equipe de Jango.
Ao argumentar que o Brasil estava prestes a “se tornar uma nova Cuba”, por conta das propostas do governo vigente na época, e sob influência dos Estados Unidos — que possuía conhecimento em diversas técnicas de tortura contra ameaças comunistas na América Latina -, a oposição se movimentou para organizar manifestações e financiar campanhas que rejeitavam Jango.
Com a falta de apoio do Congresso, o presidente em questão foi em busca de defesa das tropas militares no Rio Grande do Sul, estado onde nasceu. Nessa viagem, o presidente do Congresso, senador Auto de Moura Andrade, aproveitou a situação e anunciou que o cargo de Presidente da República “estava vago”. Embora todas as autoridades tivessem ciência de que Jango estava no sul do país em busca de apoio, a oposição resolveu afirmar que o político havia fugido do Brasil.
O simples fato de impedir que um presidente cumpra seu mandato através de mentiras já é assustador. O que viria a seguir, porém, reforça a evidência de que a oposição, na verdade, não queria o melhor para o país. A falta de diálogo com a população e o medo da ascensão de ideias divergentes levou os militares a tomar medidas drásticas para silenciar a nova oposição.
Para o sociólogo alemão Max Weber, o Estado é a instituição que busca o monopólio do uso legítimo da força física em um território. As autoridades políticas, portanto, utilizam a coerção como forma de intervenção para impor obediência ao sistema político. O que os militares fizeram foi usar e abusar de homens treinados para situações de conflitos de modo a conseguir recolher e punir possíveis ameaças contra o governo, sem possibilidade de legítima defesa, mesmo não cometendo crime algum. Dessa forma, o Regime Militar se caracteriza como um golpe não só por afirmar que o cargo de Jango estaria vago, mas também por continuar reforçando essa ideia tomando medidas drásticas e nem um pouco harmoniosas para a população.
A busca pelo bem comum através da política, conforme idealizado pelo filósofo grego Aristóteles, não era prioridade no Brasil em 1964. Em vez disso, os poderosos buscavam incansavelmente o poder como forma de controlar ideias, opiniões, comportamentos e qualquer situação que representasse discordância ao governo. Então, os militares precisavam continuar fortalecendo a noção de que o melhor caminho para o país era aquele — e nada mais. Ninguém poderia cogitar em pensar diferente. As autoridades da época voltaram a se movimentar para conquistar mais poder, retirando aos poucos a liberdade dos cidadãos.
O primeiro Ato Institucional lançado pela junta militar cassava os direitos políticos de todos os cidadãos contrários ao governo. A Constituição foi suspensa por seis meses e os novos presidentes seriam eleitos por votações no próprio congresso — ou seja, de forma indireta. Mais tarde, partidos políticos se tornaram ilegais e governadores e prefeitos também assumiam seus cargos sem eleições diretas.
Com cada vez mais influência, os militares impediam movimentações políticas e sociais e tratavam todas as pessoas como suspeitas de serem ameaças ao governo.
Só em 1970, foram contabilizadas mais de 1.200 denúncias de tortura. Dois anos depois, 38 pessoas foram mortas e 22 estavam desaparecidas.
Um pouco mais tarde, o 5º Ato Institucional passou a liberar a polícia e outros agentes militares a levar indivíduos para a cadeia sem precisar de um mandato de prisão. Ou seja, qualquer suspeito — mesmo que não fosse um militante — podia ser levado a força pelo exército sem saber se votaria vivo para a casa.
Os encarcerados não tinham direito a habeas corpus ou advogado e eram duramente torturados com choques elétricos, agressões físicas e psicológicas, estupros e refrigerações com temperaturas que intercalavam entre congelantes e superquentes, além de alto-falantes que emitiam sons irritantes. As possibilidades de sofrimentos eram inúmeras. Nem mesmo mulheres grávidas escapavam das torturas realizadas com ratos e baratas.
E, além disso, nem todos os brasileiros sabiam quem esse tipo de monstruosidade poderiam existir. Em cidades mais afastadas no centro de conflitos, era comum ouvir que havia segurança ao andar nas ruas ou que o país realmente se desenvolvia. Nesses casos, o Regime Militar eram até mesmo visto com bons olhos, já que o acesso à informação dessas pessoas eram canalizadas em jornais que eram censurados e não tinham liberdade de denunciar esquemas de corrupção e outras fragilidades do governo, por exemplo.
Livros, filmes, jornais, músicas e as próprias escolas precisaram ser caladas se demonstrassem repulsa ao governo vigente da época. As redações de jornais deveriam obrigatoriamente possuir um agente federal que autorizava ou não as publicações de notícias. Caso o material fosse barrado, os veículos de comunicação publicavam poemas antigos ou receitas de bolo. Então, é compreensível que fatos horripilantes sobre a Ditadura Militar não chegassem a todos os brasileiros. Mas argumentar que naquele período a segurança era eficiente não é justificativa válida para um indivíduo que pertencia ou pertence a um grupo de pessoas que não foram atingidas pelas crueldades da época.
Militantes que saíam às ruas para protestar contra o Regime Militar eram mortos a sangue frio, sendo que muitos nem sequem foram encontrados. A União Nacional dos Estudantes (UNE) também era fortemente perseguida.
O jornalista Vladimir Herzog, presidente da TV Cultura na época, foi cruelmente assassinado pelos agentes militares do governo por apresentar supostas ligações ao Partido Comunista Brasileiro. O profissional concordou em prestar depoimento para esclarecer o caso, mas foi torturado e morto em 25 de outubro de 1975. Os responsáveis pela execução de Herzog forjaram uma cena de suicídio do jornalista para se livrar do crime. Todos esses fatos comprovaram que tomar o poder não era o suficiente para os militares. Era preciso apresentar-se como tal.
Em novembro de 2013, o Congresso Nacional anulou simbolicamente a sessão legislativa que tirou Jango da presidência em 1964. Apesar de ser impossível de reparar todo o estrago feito, o projeto de resolução aprovado reconheceu que João Goulart havia sido tirado de forma ilegal pelo então presidente do Congresso. A decisão, ocorrida há pouco mais de cinco anos, torna evidente a vergonha nacional que instituiu o Golpe Militar.
Dados, fatos e estudos não podem ser ignorados ao expressar admiração por uma época em que autoridades tanto calaram, tanto silenciaram, tanto torturaram e tanto mataram apenas para se manter no poder. Como já dito pelo historiador Leandro Karnal, “é muito importante lembrar que não se deve nunca questionar a democracia. Deve-se aperfeiçoa-la”. Isso significa que, mesmo com tantos dilemas e problemas, um sistema político baseado na participação popular é sempre o mais favorável na construção de uma sociedade mais desenvolvida e justa. Nessa linha de pensamento, a verdadeira revolução aconteceu em 1984, quando os brasileiros se voltaram contra a ditadura e gritaram, incansavelmente: “diretas já”.
Escrito por Bianca Martim em abril/2019. Gostou? Clique nos aplausos ao lado!