Meme Pobre, Meme Rico

biarritzzz
18 min readMay 24, 2024

Se o meme reitera as desigualdades entre criadores negros e apropriadores brancos, poderia ele nos levar a uma nova coletividade negra também?

Aria Dean. Traduzido por biarritzzz¹

25 de julho de 2016/
traduzido em 24 de maio de 2024

Imagem: “1897.1987.8917” por Christine Ayo.

“Não há outro sentido que o sentido da circulação” — Jean-Luc Nancy

Pessoas negras amam as mídias sociais, e as mídias sociais amam as pessoas negras. De acordo com uma enquete da Pew de 2015, quase metade dos usuários negros da internet usa Instagram, em oposição a menos de um quarto dos usuários brancos. O Twitter é mais igualmente distribuído, mas ainda assim é mais usado/impulsionado por minorias. Junto à ascensão do meme na cultura da internet, temos testemunhado o conteúdo produzido-pelo-usuário-negro caminhar para um estágio/palco central. Não só a negritude é amplamente atraída pela internet, pela tecnologia e pelo futuro em geral — algo exemplificado pelas ricas tradições da literatura Afrofuturista, da house music, dos vídeos de hip-hop e mais — mas a internet é uma condição primordial para a cultura negra prosperar.

O que faz o caminho dessa condição? Alguns, como Kodwo Eshun e John Akomfrah, dizem que a diáspora africana prefigura as redes digitais [networks] em seus efeitos nos corpos e subjetividades. Nós, como pessoas negras, não somos estranhas à alienação de uma individualidade [selfhood] mediada . Nós temos ampla experiência em vigilância em massa, uma condição que o branco avant-garde nos faria acreditar que é um recente desenvolvimento do controle estatal. A diáspora é “uma precursora do pulso pós-industrial em direção a fluxos e desterritorialização”, como o Afrofuturismo britânico reivindica, dizendo que a negritude sempre esteve à frente do seu tempo, já sendo uma cultura em rede e sempre desmaterializada, graças ao atravessamento transatlântico. Em Marxismo Negro, Cedric Robinson⁵ escreveu sobre a “totalidade ontológica” ou o ser-coletivo da negritude — cuja preservação, ele argumenta, é a primeira alegação da tradição Negra Radical.

Esse ser-coletivo vai além de uma “consciência coletiva”. Ele se relaciona, e potencialmente excede, a inabilidade do sujeito negro de agir por si próprio. Maior parte — se não toda — dos negros americanos é familiar a esse sentimento. São seus pais dizendo para você se comportar em público, não só pela imagem da família, mas porque implicitamente você representa toda uma raça. É a mídia tratando o atirador de Dallas como um representante de todos os negros estadunidenses², forçando a organização do Black Lives Matter a ora defendê-lo ou condená-lo (finalmente condená-lo), e ao resto de nós a moderar nosso desdém público perante o sistema judiciário. É essa necessidade de não ser visto como errado que faz com que você nunca seja simplesmente você mesmo.

Historicamente, nosso ser-coletivo tem sempre sido disperso, extirpado através de continentes e corpos de água. Mas devido à maneira como formações tais quais o Black Twitter hoje fomenta conexões, e oferece oportunidades para momentos intensos de identificação, podemos dizer que, a este ponto, o lugar mais concreto que podemos encontrar para esse ser-coletivo da negritude é o digital, nas plataformas de mídias sociais em forma de conteúdo viral — e talvez no mais importante deles: os memes.

Enquanto quero defender um entrelaçamento da negritude e dos memes, eu seria negligente — irresponsável, até — de adentrar essa seara sem mencionar a outra maneira em que a negritude continua a circular, talvez com menos frequência mas com o mesmo (se não maior) alcance: através da circulação agressiva de vídeos que documentam mortes negras, ou a violência em geral contra pessoas negras. Esses vídeos proliferam ao lado dos memes, esbarrando-se uns nos outros, nas mesmas plataformas. Além disso, a morte negra e o prazer negro são associados um ao outro pelo olhar branco, e se vemos essa intersecção em algum lugar, é nas lutas neo-mandingas⁴ do WorldstarHipHop [um portal de vídeos extremos, comumente agressivos ou sexuais]. Enquanto essas formas se sobrepõem tanto em seu modo de transmissão quanto em como envolvem corpos negros, tais vídeos violentos não são vistos mais como “memes”. O termo se desenvolveu: uma vez usado para descrever ideias ou comportamentos que são passados de uma pessoa para outra, o “meme” agora se refere metonimicamente aos memes de internet, que são tanto formados por tropes [trocadilhos, jogos de linguagem] e fáceis de fazer, utilizando imagens encontradas na internet, quanto amadores e intencionalmente engraçados, muitas vezes com textos absurdos flutuando sobre uma imagem de baixa resolução.

Quando dizemos que a internet expande e exacerba as mesmas velhas relações do mundo offline, falamos sério

Para além do óbvio, o meme tem trazido uma conotação mais complicada e especulativa: a da #identificabilidade, habilidade de provocar um sentimento de identificação no espectador. Que é conceitualmente associado à palavra francesa même, que significa “mesmo” [igual]. A história recente do meme mantém esse conceito vivo através da contínua presença de formatos como “literalmente eu” ou “como me sinto quando”. A identificabilidade ajuda os memes a sustentar um tipo de coesão baseada no ser-coletivo, uma memória coletiva que não pode nunca ser totalmente circunscrita; ninguém pode se distanciar suficientemente para ver por inteiro a rede que é formada.

Uma das maiores tarefas da negritude enquanto ser-coletivo tem sido a de se manter unida, coesa, para exibir algum caráter legível. Essa coesão só se torna necessária, talvez, quando o ser-coletivo se torna visível para a sociedade não-negra. Quando existindo por conta própria, naquilo que para alguns são as sombras, para esse ser-coletivo é permitido se expandir e se contrair ao seu bel prazer. Mas quando a sociedade joga aí um holofote em cima, tudo que é expansivo e múltiplo se endurece para o Preto.

Nessas sombras, no subsolo [underground], a negritude trabalhou a sua magia. Pense nos porões onde os toca-discos foram reaproveitados para dar vida ao hip-hop. Agora, se como diz Laur M. Jackson, “a negritude é o tecido vivo dos memes”, então os memes, tão negros de tantas maneiras, negros pra caralho, constituem algo semelhante à “totalidade ontológica” de Robinson, um ser-negro-coletivo.

Na internet contemporânea as coisas têm virado ao avesso. Trocas que historicamente tomaram lugar no underground de espaços sociais negros agora estão vulneráveis à exposição, quando já não foram expostos. A criatividade de chamada-e-resposta do Twitter Negro [Black Twitter]³ é ouvida e ecoada pelo Twitter Branco, e fenômenos de dancinhas virais como o whip são apropriados por figuras como Hillary [Clinton] e Ellen [DeGeneres]. Juntos, esses objetos — e incontáveis outros semelhantes a estes em circulação, literalmente incontáveis — criam uma ampla visibilidade online da negritude. A negritude mais uma vez assume seu papel de longa data enquanto o motor da cultura popular estadunidense, tanto que nos encontramos no mesmo ponto que nos anos 1920 com o jazz, que nos anos 1950 com o rock ’n’ roll, que nos anos ’80 tanto com o house como com o hip-hop — num loop temporal onde pessoas negras inovam apenas para verem suas criações serem sugadas e terem seus valores desviados por mãos brancas.

Deixando de lado todo o trabalho criativo do ser-negro-coletivo, há uma negritude palpável em grande parte desse conteúdo viral — especialmente memes — que circula independentemente das pessoas negras reais. Essa despersonalização da negritude é manhosa e difícil de identificar — assim como o é a negritude de qualquer objeto ou sujeito, na verdade. Ela se faz identificável pela linguagem, por um uso agressivo de gírias associadas a uma linguagem vernacular negra, explicada pelo “Inglês Negro Imaginado Online” de Manuel Arturo Abreu. Podemos achar legendas repletas de “bruh,” “fam,” “lit,” [abreviações e gírias negras], e, é claro, “nigga”. Essa negritude também está vagamente assinalada pela presença de personalidades negras. Atletas como Michael Jordan, rappers como Lil Mama e Birdman, e atrizes como Skai Jackson já se tornaram veículos para reações que estão para além de seus atributos individuais. É provável que muitos de nós não conheçamos a Jackson como uma estrela do Disney Channel, mas sim como a menina de vestido azul cuja imagem foi repetidamente usada com um texto sempre familiar e num contexto absurdo que excede a linguagem.

A negritude dos memes vai mais a fundo que seus próprios conteúdos, e é por isso que eles não podem ser vistos individualmente. Lauren M. Jackson aponta que os memes também são negros em suas táticas de sobrevivência, e que a forma como eles sofrem mutação, se desdobram, se espalham, vão e voltam, encorpora as tendências já estabelecidas da produção cultural negra e sua circulação. “Os memes não apenas contêm componentes da linguagem negra e gravitam em torno de um jeito negro de falar,” Jackson escreve, “mas a sua sobrevivência se agarra a modos de improvisação cultural negros para movimentar através do espaço e subsistir em um ambiente visual-verbal ultra competitivo”.

O que é sobrevivência para alguns, é simplesmente competição para outros. Nós temos visto o conteúdo de memes populares “diversificar” nos últimos meses. Em contas do Instagram administradas em grande parte por millenials descolados e não-negros, esses memes imitam o inglês vernacular afro-estadunidense, mas geralmente para descrever fenômenos culturais associados a uma classe mais endinheirada de formadores de opinião. (Veja: o “vai a Berlin uma vez” starter pack, ou a infinidade de memes #woke e “feministas” tardios.) Também temos visto a estranha chegada do conjunto de imagens do Bob Esponja usando o desenho animado em vez de sujeitos humanos para comunicar uma gama de emoções “embriagadas”. Enquanto o Seu Sirigueijo pode ser uma referência amplamente ressonante para a nossa geração, ou agradavelmente absurda, a sua aparição quase inexplicável na cena dos memes cheira a uma ansiedade em torno da figura humana racializada, e a um impulso subconsciente de maximizar a #identificabilidade em direção a um “turvo” universalismo⁷. O ponto levantado por Jackson sobre a negritude do movimento dos memes é ainda mais importante à medida em que a negritude é extirpada do seu conteúdo.

[a tradução desse meme alteraria seus significados semânticos, mas aqui se lê no primeiro período da frase várias grafias vernaculares negras postas de uma forma bem organizada e encaixada, enquanto que no segundo período se lê um inglês que facilmente poderia ser compreendido como branco, o que fez a autora deduzir que esse meme foi produzido por pessoas não negras que tentam parecer descoladas ao utilizar esse vocabulário]

A negritude dos memes não está apenas em seus modos sobrevivenciais; ela vai além e se estende ao seu movimento involuntário dentro de redes [networks] não-negras também. Os memes se movimentam como a própria negritude, e a semelhança prática dos memes com formatos culturais historicamente negros faz deles — previsivelmente — vulneráveis à apropriação e à captura. O meme é um formato que permite um senso de propriedade coletiva para quem tem contato com ele — seja negro ou não-negro. O meme parece aberto à apropriação e à interpretação de quem quer que possua ele por um momento, fato que ecoa a definição de Fred Moten da negritude sendo apenas aquilo que seguramos com nossas mãos estendidas.

Quando dizemos que a internet expande e exacerba as mesmas velhas relações do mundo offline, falamos sério. Pois ela continua um legado histórico em que o trabalho cultural e afetivo de indivíduos negros online é aplamente subreconhecido e subvalorizado. Compare os retornos financeiros inexistentes recebidos pelos adolescentes negros que introduziram o passinho viral do whip, ao fornecimento vitalício de tênis da Vans cedido ao menino do Danm Daniel⁸, ou aos quase meio milhão de dólares em brindes que a “Mãe Chewbacca” recebeu por sua simples demonstração de delírio consumista.

[ok esse é engraçado kkk https://www.youtube.com/watch?v=y3yRv5Jg5TI]

Essa dinâmica faz com que seja tentador entrar em conversas sobre apropriação cultural e propriedade, sobre representação positiva e negativa, herdando alguns conceitos da antiga teoria cinematográfica negra. Podemos dizer que isso aqui é sobre quem possui uma imagem: um admin [aquele que administra uma página] de memes branco tem algum problema em postar uma imagem de uma pessoa negra? Eles estão rindo com a gente, ou rindo da gente? E eles são capazes de rir com a gente? Será que a minha página inicial do Explorar [no Instagram] foi gentrificada?

Na economia da atenção online, esse desequilíbrio é mais complicado do que a relação familiar semi-linear entre produção negra e apropriação não-negra. O trabalho da produção de conteúdo online é feito com um público em mente; memes são criados para o próprio propósito da viralização e, por extensão, da apropriação. Os memes se movimentam em ciclos de produção, apropriação, consumo e reapropriação, o que torna difícil definir qualquer ideia de um ser-coletivo autêntico original. “Mais do que o capital ‘incorporando’ a partir de fora os frutos autênticos da imaginação coletiva,” Tiziana Terranova argumenta em “Trabalho Não Remunerado: Produzindo Cultura Para a Economia Digital”, “parece mais razoável pensar em fluxos culturais sendo originados num campo que é sempre o do capitalismo.” Da mesma forma, memes — mesmo quando produzidos por usuários negros — não podem ser vistos apenas como objetos que circulam livre e autenticamente em meios negros para o usufruto da coletividade negra; mas sim como estando, os memes, sempre compromissados à presença iminente do corporativo, do capitalista.

Assim, o meme provavelmente nunca manifestará a negritude de um jeito rastreável a ponto de ser plenamente reivindicado pelo corpo cultural negro. A internet, que foi vendida como um jeito de nos libertar de nossos corpos, só confundiu nossos limites e identificações, proporcionando apenas flexibilidade suficiente para, nas palavras da artista Keith Townsend Obadinke, fazer a mesma velha rotina de blackface estilo burnt cork mais fácil⁹”. É certo que, por outro lado, é difícil mobilizar a negritude dos memes em direção a qualquer tipo de política libertadora — considerando ensaios como este que apenas provocam tais relações. A estrutura do meme é, de uma vez só, a sua energia potencial, sua possibilidade, e seu limite. Ou seja, as próprias propriedades que tornam o meme negro, tornam aparentemente impossível para os negros de protegê-lo, muito menos de beneficiarem-se dele.

Quando dizemos “precisamos”, lamentamos”, “esperamos”, “exigimos” e assim por diante, falamos de algo que está para além de uma comunidade

Se os memes reiteram as desigualdades da apropriação cultural, onde deve estar a sua energia, e seu potencial? O meme resiste às tradicionais configurações de autoria e de propriedade intelectual, corporificando o modelo “pós-produtivista” que deixou Nicolas Bourriaud tão empolgado 20 anos atrás, quando ele declarou que essa era a ameaça final à “ideologia da propriedade/autoria” implícita nas críticas à apropriação. Os memes reconfiguram a “ideologia da propriedade/autoria” com outra forma de valor, uma que Hito Steyerl argumenta que é definida por “velocidade, intensidade e propagação”. No “Em Defesa da Imagem Pobre”, de Steyerl — um texto que poderia muito bem ser um tratado sobre o meme — ela descreve a “imagem pobre” como “um instantâneo fotográfico [snapshot] da condição emocional da multidão… A condição das imagens pobres remete não apenas a incontáveis transferências e reformatações, mas igualmente a inúmeras pessoas que se importaram o suficiente com elas de modo a convertê-las reiteradamente, adicionar-lhes legendas, reeditá-las ou carregá-las”. Em outras palavras, como me sinto quando Hito Steyerl define “o como me sinto quando”.

Como a imagem pobre, o meme encontra sua casa apenas em sua circulação — seu verdadeiro conteúdo são as várias esbarradas, ronxas e hematomas que ocorrem ao longo do caminho. É uma cópia sem original — uma cópia da cópia da cópia da cópia, e por aí vai. Para o bem ou para o mal, um meme pede, na verdade, para ser considerado pela sua total presença só através da sua circulação.

Mas mais importante é como a imagem pobre, de acordo com Steyerl, “constroi redes globais anônimas à medida que cria uma história compartilhada”. Os memes, também, funcionam dessa maneira, fundindo-se em um arquivo coletivo em torno de um evento ou marco cultural. Um recente exemplo é a performance de Desiigner no BET awards¹⁰. No entanto, as “redes globais anônimas” de Steyerl ressoam de outra forma, mais estranhamente; sua imagem pobre compartilha a própria definição da negritude. O que é a diáspora africana senão uma “rede global anônima”?

E daí se, numa operação grosseira, imaginarmos a negritude como um meme, como uma imagem pobre? Ou seja, a imaginando que a imagem pobre também pode ser a imagem negra.

A maneira como Steyerl fala da circulação da imagem pobre, sobre ela ter sido empurrada para fora do mainstream e para dentro de novas circulações alternativas, soa verdadeiro para o caso da negritude. A imagem pobre vibra na frequência de Fanon: em seu gesto em direção à irrealidade e à não-ontologia da própria imagem, ela também aponta para o (não)sujeito negro extra-ontológico. O negro, o meme, a imagem pobre é um sujeito ou um objeto cuja definição ultrapassa o seu corpo, cuja instantaneidade depende da sua história, e da “história compartilhada” com todos os outros sujeitos/objetos como ele, mesmo quando nas mãos de outros.

Edouard Glissant e Fred Moten também escrevem sobre a negritude como, nas palavras de Moten, um contínuo “consentimento em não ser um único ser”. Em grande parte, historicamente falando, poderíamos caracterizar a atitude do ser coletivo em relação a esse consentimento como relutante, em oposição ao desejo de nos constituirmos como sujeitos complexos e individuais. Este “consentimento em não ser um único ser” reflete a mesma permutabilidade em que a violência contra um corpo negro não pode ser isolada e entendida como sendo apenas contra esse corpo, mas sim onde eu sou você, e você sou eu, onde “somos todos [inserir #nomedapessoamortapelapolicia aqui]¹¹. Como Kanye trouxe no recentemente lançado “Saint Pablo”: “Quando liguei o noticiário…eles tavam enterrando eu”.

Reivindicar esta permeabilidade contraria a herança das políticas identitárias do século XX antagonizando-a em sua essência. O século XX nos ensinou que um dos nossos direitos é o da representação, não só política, mas pessoal — que temos o direito de sermos representados como somos, mantendo assim nossas imagens verdadeiras. Mas e se alguém taca o foda-se pra isso? A negritude, como imagem pobre, como meme, é uma cópia sem original. Não existe uma ontologia articulável da negritude, nenhuma negritude essencial, porque o único lar da negritude está em suas representações em circulação: uma rede que inclui todos os corpos, que carregam seus marcadores, as palavras produzidas por tais corpos, as palavras que parecem ter sido produzidas por tais corpos, as imagens chapadas [e sem profundidade] que pretendem documentá-las, e assim por diante.

O meme como imagem pobre, negra, opera contra a imagem rica: essa representação encorpada da alta resolução que a política identitária e a teoria visual nos ensinaram a engajar. O meme está sempre se inscrevendo e se reescrevendo, operando, como escreve Steyerl, “contra o valor fetichista da alta resolução”. Ao assumir esta postura, resiste aos co-conspiradores da vigilância e do neoliberalismo e à sua adestração dos corpos e desejos. Talvez possamos sim nos tornar opacos através da nossa própria interação em série e em excesso.

Todas essas conexões e equivalências são operações desajeitadas que desenham uma linha que vai dos memes, à negritude, e à imagem pobre, circundando-os todos juntos numa linha perfurada chamada “circulação”. No fundo, o que eles têm em comum é a incapacidade de se manterem sozinhos. Eles se tornam o que são pelas circunstâncias desse corpo maior. Talvez essas estranhas ressonâncias entre o meme, Steyerl, Fanon, Moten e outros, possam ser usadas para enfatizar a circulação da negritude, online e offline, como sendo uma característica sempre definidora, e não como sendo puramente digital ou que dependa disso [da digitalidade].

O sucesso do meme é isso: seu alcance e sua singularidade; sua habilidade em serpentear pelo subsolo e surgir em cena para desaparecer, ressurgir, metamorfosear

Isso ecoa algo que a artista Hannah Black disse alguns anos atrás num painel de discussão organizado pelo Rhizome: “Usamos palavras como moderno e contemporâneo para sinalizar mudanças na disposição do significado das imagens. Mas eu me pergunto se poderíamos colocar mais pressão em cima destas supostas novidades, e situarmos o presente nesta longa história de corpos em circulação”. O meme poderia ser considerado o desenvolvimento mais recente desta história. Do tráfico negreiro em diante, temos estado em circulação — sendo enviados como mercadorias para o novo mundo, circulado pelas Américas como mão-de-obra, circulando nós mesmos enquanto fugitivos.

Não estou pensando nos memes em si como objetos reais, como libertadores por um esforço da imaginação. Se houver de fato uma libertação, ela não acontecerá em plataformas privadas, onde Mark Zuckerberg lucra diretamente com a reprodução das nossas mortes, repetidas de forma horrível por usuários “de bem” e inconscientemente alegres com aquilo. Em vez disso, pode ser que há algum poder naquele meme que é prontamente criado, prontamente desfeito, sempre mutável e sempre distribuído — um poder a partir de uma “imagem pobre” que atravessa fronteiras para aqueles de nós que são fortemente policiados, a quem o Estado e outras forças gostam de manter presos [fixed].

Pode parecer superficial, em tempos como os nossos, focar em objetos cuja banalidade é indiscutível. No entanto, também acho que tal coisa nunca foi tão útil. Como pessoas negras, estamos em constante peleja com a questão da coletividade. Onde acaba você, e começa a próxima pessoa? Diante da imensa dor de ver outras pessoas negras morrerem diante das câmeras, nosso senso de autonomia é arrasado. Quando dizemos “precisamos”, lamentamos”, “esperamos”, “exigimos” e assim por diante, falamos de algo que está para além de uma comunidade. A história do pensamento ocidental nega este tipo de organização de corpos e subjetividades, ao invés disso nos configura a todos como estáticos, propondo mesmo que aspiremos a esta individuação fixa. À medida que o mundo desmorona à nossa volta, todos nós — e isto pareceria dramático se não fosse pelo fato de muitos de nós terem começado a contar os dias desde a última tragédia, e este raramente é um número de dois dígitos — vale a pena aqui questionar algumas coisas que foram ditas que desejamos. Nos Estados Unidos¹², à medida que nós — pessoas negras — nos encontramos frente a frente com o Estado, os desafios à individualidade se tornam relevantes não só para compreender nossa tristeza e luto, mas também para estimular o corpo coletivo em direção à ação política.

Pensando na circulação em vez do conteúdo, eu me pergunto se os memes podem nos guiar para uma política pós-representacional e pós-identitária, respondendo ao chamado de Fred Moten em “Otimismo Negro, Operação Negra” a uma análise que se move para dentro e para fora das sombras, “que move através da oposição entre o segredo intencional e a exposição forçada”. O que precisamos, ele diz, “é de alguma forma entender como o underground opera à luz do dia”. O meme move tão rápida e imprevisivelmente que cria um estado (ou ausência de estado), uma falta de fixidez que pode confrontar o nosso desejo de visibilidade e consciência da violência que isso acarreta simultaneamente. Ele sustenta uma aparência de individualidade (“literalmente eu”) ao mesmo tempo que é totalmente desindividuado (“igual”)¹³.

O sucesso do meme é isso: seu alcance e sua singularidade; sua habilidade em serpentear pelo subsolo e surgir em cena para desaparecer, ressurgir, metamorfosear; suas contínuas operações de se esconder, se incubar, e de expor elementos culturalmente negros. Como uma lição que temos do objeto, o meme ensina uma política de corpo queer, Afropessimista, uma abordagem aceleracionista negra¹⁴ em se processar, e reprocessar, e reprocessar, e reprocessar. (Uso a palavra “aceleracionista” com precaução.) Temos sido digitais há muito tempo, “comprimidos, reproduzidos, ripados, remixados” através do tempo e do espaço. Para a negritude, o meme poderia ser uma forma de imaginar ainda mais uma existência que extrapola os limites do corpo, um retorno à nossa casa a partir da nossa falta de casa [a homecoming into our homelessness].

Aria Dean é uma artista e escritora. Ela mora em Los Angeles.
biarritzzz é uma artista e pensadora. Mora em Recife.

¹ Os termos em [colchetes] são observações minhas em cima do texto original, ou a repetição da palavra original usada ao lado da traduzida. As palavras estrangeiras que foram mantidas sem tradução estão grafadas em itálico, e as palavras que estavam em itálico no texto original estão em negrito.

² Todas as aparições de “American” neste texto foram traduzidas para “estadunidense”.

³ Como os estadunidenses chamam a cultura negra própria existente dentro do Twitter, agora X.

Mandingo fights foram um tipo de entretenimento criado pelos senhores de escravos estadunidenses durante o período colonial que consistia em pôr dois negros para brigar até a morte.

⁵ Cedric Robinson foi um professor no Departamento de Estudos Negros e Departamento de Ciência Política na Universidade da Califórnia em Santa Bárbara. Ele chefiou ambos departamentos e foi também Diretor do Centro de Pesquisa para Estudos Negros. Wikipédia

⁶ Um clássico… https://www.youtube.com/watch?v=t7W8Xu8si3s

⁷ O que a Aria Dean diz aqui, nesse trecho de trocadilhos e tradução difícil, é que a utilização de um desenho, de um bixo de um desenho, nesse caso, parece atuar como um apelo na utilização da linguagem negra estadunidense porém “universalizada”, descaracterizada de um pertencimento cultural-racial, através do uso do personagem no lugar de uma figura humana.

⁸ Um meme muito besta de adolescentes brancos https://www.youtube.com/watch?v=kfFcyTuopbI

Blackface é uma tradição do teatro e audiovisual estadunidense que consiste em pintar de preto rostos de atores brancos para interpretarem personagens negros. Burnt Cork foi um personagem famoso associado a este estilo.

¹⁰ Mona… kkk https://www.youtube.com/watch?v=8hJEvmguhrg

¹¹ Colchetes presentes no texto original.

¹² “America” foi substituído por Estados Unidos.

¹³ “same” é um tipo de resposta a memes quando são repostados, que a autora dá o exemplo assim como o TFW (o nosso “como me sinto quando…”).

¹⁴ Black Accelerationism é um conceito de outro texto da Aria Dean de 2017, disponível em https://www.e-flux.com/journal/87/169402/notes-on-blacceleration/

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