Boogie Naipe, homens negros e a Teologia do descanso

João Marcos Bigon
4 min readOct 1, 2019

há meses atrás num culto, ouvi o pr. Júlio Oliveira, homem negro, pai de uma família preta e pastor na Comunidade Batista de S. Gonçalo falar sobre a urgência da criação de uma Teologia do descanso. ele dizia isso em sua breve oportunidade num culto de despedida de um grande amigo nosso, o Ras André, q estava saindo do RJ para pastorear uma comunidade metodista na Bahia.

aquela palavra veio igual uma marreta em meu coração pq se existe algo q hoje eu busco e priorizo é o descanso. um negro consciente da sua racialidade no mundo colonial é um perigo, para o colono e para ele mesmo enquanto colonizado. nossa mente nos atormenta, cansa e engana, o mundo colonial ñ nos dá descanso, viver em estado de constante alerta é angustiante.

mas se vc é homem a coisa pesa ainda mais

homem ñ chora

homem ñ fala de sentimentos

homem ñ olha nos olhos

homem “sempre mente"

homem é violento

o homem branco abraça tranquilamente essas sentenças.

mas e o homem negro? essas sentenças expressam uma realidade só, ñ dão conta nem da metade do q é a complexidade de ser um homem negro.

as vezes ñ há tempo pra chorar

as vezes ñ temos outros olhos pra encontrar

as vezes ñ temos com quem falar dos sentimentos

homens negros caminham todo dia tentando sobreviver no inferno, pq a vida é loka.

Eu durmo pronto pra guerra e eu não era assim, eu tenho ódio e sei, que é mal pra mim.

Mano Brown é há 30 anos provavelmente o maior símbolo de um tipo de música q dá nome aos bois. Mano Brown há 30 anos carrega sobre si a imagem de representante não de uma banda, mas de um movimento poético político de contestação e enfrentamento. em vídeo, ele conta junto dos outros 3 racionais, os casos onde houve troca de tiros, gente morta, ameaça de morte e experiências onde a violência, a turbulência e a existência no limite foram a regra.

《https://youtu.be/aqx8TyV85Ic

nessa mesma entrevista, de 2015 se ñ me engano, Brown fala sobre estar em um bom momento atualmente. para ele, hj é o sucesso. “compro as roupa q eu quero, tenho carro, duas banda, tô portano"

ñ exatamente assim, mas Brown já cantava sobre o sonho do descanso:

O cheiro é de pólvora
E eu prefiro rosas
E eu que, e eu que
Sempre quis com um lugar,
Gramado e limpo, assim, verde como o mar
Cercas brancas, uma seringueira com balança
Disbicando pipa, cercado de criança

é interessante pensar q se a vida é uma sobrevivência no inferno, um tipo de purgatório, um constante processo de “não vida" (FANON, 2008), em vida loka mano brown expressa a sua ideia de céu, de descanso.

o que o homem negro busca é descanso.

em entrevista ao Le Monde intitulada “mano brown, um sobrevivente do inferno", Pedro Paulo expressa sua nova perspectiva enquanto um pós morto, ou melhor, um sobrevivente desse mundo sem vida. um homem negro vivo.

eu vejo muitos negros falando de muitas coisas. na verdade, os negros querem falar de outras coisas. esse é o ponto.

na entrevista vemos um Brown diferente do costumeiro. Brown ri, fala de amor, de futuro, renega inclusive o estigma de ter q falar sobre as mesmas coisas como violência, sofrimento e luta racial. segundo brown, falar de amor tem tanta importância quanto essas outras coisas.

https://youtu.be/U_OsF4y4zuY

Boogie Naipe, o descanso

O Pedro Paulo sempre sonhou com tocar com banda, mas foi o Brown que concretizou

https://youtu.be/Ejp7BF7du1c

em apresentação da boogie naipe no programa manos e minas mano brown parece feliz. mano brown sorri, dança, brinca… brown parece em paz e diz q está realizando um sonho.

fica óbvio q a boogie naipe é não só uma big band de funk e soul pra dançar e falar de amor mas também é claramente uma referência temporal da música negra.

brown q em várias músicas do racionais demonstrou seu apreço por Tim Maia e Marvin Gaye aparece agora como vocalista de uma banda q contém vários dos elementos sonoros característicos dos seus ídolos.

é como se após sobreviver ao inferno, brown agora pudesse dançar. o sonho do menino preto Pedro Paulo agora se faz real com luz, alegria leveza e dança.

é o momento onde ñ existe uma expectativa, uma obrigação, um peso declaradamente político ou de conflito. existe apenas um homem negro, pai de dois filhos, que ama uma mulher e que quer dançar com seus amigos em um palco.

a teologia do descanso é fundamentalmente parte de uma espiritualidade negra e deve ser tomada como tal em quaisquer religiões. onde há um corpo negro é necessário q o descanso faça parte da realidade.

a comunidade negra não pode sucumbir ao poço do enlouquecimento. precisamos ter nosso tempo de desenvolver políticas de vida, sejam elas quais forem. precisamos caminhar por caminhos menos tortuosos possíveis, precisamos descansar nos braços de Deus. seja ele qual Deus for.

que possamos amar, dançar, nos divertir e acima de tudo, descansar.

Saúde pro nosso povo!

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João Marcos Bigon

Prof de História | Mestre em Relações Étnico Raciais, PPRER-CEFET | Analista de Projetos de Educação no ID_BR | Escritor