Os Jogos, a Guerra Fria e a “raposa prateada”

Blog do Iv
3 min readAug 7, 2016

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No jogo dos espiões

O segundo da lista de meus heróis olímpicos também vem do basquete da extinta União Soviética e também sofreu as agruras do regime soviético como Semjonova, mas de modo bem mais pungente, por estar envolvido, sem ter nada com isso, numa batalha de espiões. O azar de Alexander Gomelsky, um dos dois maiores técnicos de basquete que vi (ao lado do multicampeão da NBA Phil Jackson), foi nascer judeu na Rússia e ter vivido durante a Guerra Fria.

O KGB estava mais paranoico do que o normal, naquele início de 1972 (e olha que a paranoia era o oxigênio do mundo em que vivia o serviço secreto soviético). Tudo porque, depois da Guerra dos Seis Dias, em 1967, Israel passara a oferecer casa e terra para os judeus russos que emigrassem, fosse porque meios fosse, para lá. A ideia era dar terra para estes emigrados na Cisjordânia, ocupada na guerra, diluindo a população palestina que lá vivia.

Como não podia deixar de ser, a oferta atraía um monte de judeus russos. O governo soviético não gostava nada, mas meio que fazia vista grossa para quem quisesse emigrar, desde que fosse algum mujique ou um trabalhador com baixa qualificação. Para a elite judia russa, porém, a história era bem outra e Alexander Gomelsky fazia parte desta elite. Cinco vezes vencedor da Euroliga (1958–60, pelo ASK Riga, e 1970–1971, pelo CSKA), dezenas de vezes campeão da liga da URSS, além de detentor de quatro títulos do campeonato europeu de seleções (1961, 63, 65 e 67) e de duas medalhas olímpicas de prata (64 e 68), Gomelsky era o melhor técnico da União Soviética e um dos melhores do mundo. Sua deserção seria um golpe para o regime soviético.

Pior ainda era outra possiblidade. Os contatos do KGB no mundo árabe tinham informado que a Fatah, de Yasser Arafat, rachara e um grupo ainda mais radical planejava algo para os Jogos de Munique como forma de apresentar-se ao mundo. Não sabiam bem o que era, mas era grande — talvez o sequestro de esportistas judeus importantes (sequestros estavam em moda no terrorismo no começo dos 70). E não havia judeu mais importante na delegação soviética do que o treinador do time de basquete. Foi demais para o KGB. Inteiramente surtado, o serviço mandou às favas as hesitações provocadas pela “détente” com os EUA e confiscou o passaporte da “raposa prateada”, como Gomelsky já era então conhecido, faltando duas semanas para o início dos Jogos.

Assim, após treinar seus garotos — como ele chamava os jogadores, quase todos oriundos do CSKA — por anos a fio, Alexander Gomelsky se viu obrigado a assistir pela TV seu auxiliar técnico, Vladimir Kondrashin, dirigir a equipe e, no finzinho da partida, utilizar a jogada que ele treinara por seis meses com os irmãos Belov — o habilidoso e inteligente armador Sergei e o fortíssimo pivô Alexander -, exatamente para aquele momento, e levar o ouro tão desejado. “Foi o momento mais feliz e mais decepcionante de minha vida”, confessou a raposa prateada, em 1995, durante a cerimônia em que entrou para o “hall” da fama do basquete dos EUA.

Ele seguiu sua carreira na seleção nacional, tendo, afinal, levado para casa sua medalha de ouro olímpica, em 1988, em Seul, depois de ganhar de novo dos EUA, desta vez na semifinal. Foi ainda presidente do CSKA (1995) e treinou equipes na Espanha e na França, falecendo em 2005, aos 77 anos. Três anos depois, o troféu entregue ao melhor treinador de basquete na Europa da temporada ganhou seu nome.

Para mim, ficou a imagem do senhor que vi algumas vezes em torneios realizados no Brasil e que, mal a bola era erguida no centro da quadra, levantava do banco e ficava andando de cá para lá, de vez em quando passando as mãos no cabelo cuja cor lhe deu o mais do que justo apelido.

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