“Mas, e os ciganos?”

Isadora Bombonatti
5 min readFeb 17, 2017

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Essa foi a pergunta que eu mais ouvi quando comuniquei aos círculos sociais dos quais faço parte de que passaria um tempo morando na Romênia.

Suave. Papo de dois meses ou quiçá menos que isso, até. Não tinha muito pelo que ficar preocupada, porém eu fui questionada tantas vezes sobre esse assunto que comecei a ficar com a pulga atrás da orelha. “Po, realmente! Mas, e os ciganos?”, indaguei comigo mesma. Decidi me informar sobre esse assunto que, confesso, surgiu na minha cabeça antes mesmo de decidir me mudar para Pitești, uma cidade industrial localizada a duas horas de trem da capital, Bucareste.

Tudo começou em 29 de dezembro de 2016, quando visitei o Memorial do Holocausto (sim, aquele composto por blocos de cimento de diversos tamanhos dispostos em um terreno irregular em que vários turistas desrespeitosos tiram fotos como se estivessem na Disney. Por favor, não seja esse tipo de ser humano) em Berlim. Ah, Berlim! ❤

O local é uma verdadeira aula reflexiva sobre história, vida e humanidade (ou a falta dela, se pensarmos por um lado). Uma experiência extremamente intensa e muito difícil de ser encarada de forma “ok”. Enquanto eu ia assimilando a voz do meu áudio guia (opção disponível em português, obrigada aos envolvidos) com as imagens dispostas nos painéis, percebi que a expressão “…as etnias Roma e Sinti…” era repetida com frequência ao longo do percurso.

“Roma” e “Sinti” são as designações de duas das principais etnias do povo nômade que conhecemos como “cigano”. Além dos judeus, obviamente, ciganos e homossexuais também foram agressivamente perseguidos no período da Segunda Grande Guerra. Em Sachsenhausen, campo de extermínio do regime nazista localizado nos arredores de Berlim (outra experiência que, no mínimo, deixa um aperto no coração), na ala “hospitalar”, são narrados os experimentos médicos aos quais os Roma e Sinti eram submetidos. Já na torre principal de vigilância, uma sala conta especificamente as atrocidades cometidas contra aqueles marcados com a estrela cor de rosa no uniforme. Não esqueçamos também das Testemunhas de Jeová e dos opositores do regime nazista que também sofreram atrocidades nos campos.

Desde que se é documentado, os ciganos estão sempre em constante migração, o que torna muito difícil especificar a sua origem, principalmente, porque a cultura desse povo é majoritariamente oral, transmitida de geração em geração entre eles mesmos. Conversando com algumas pessoas e buscando dados em pesquisas, existe um “consenso” de que os “Roma” (termo comum entre os habitantes da União Europeia para designá-los) sejam provenientes da Índia. Algumas fontes ainda são mais precisas: região do Punjab.

O que faz bastante sentido, se levarmos em conta a similaridade na aparência dos Roma e dos indianos dessa região. Quando digo “aparência”, não me refiro nem ao fenótipo, mas sim aos adereços e roupas que ambas as culturas compartilham. Nesse ponto, reparei em algo que achei muito interessante aqui no país. Os ciganos são um povo de pura resistência.

Apesar de existir um preconceito e discriminação enorme em relação aos Roma (é perceptível, você sente que um grupo de ciganos, dificilmente eles andam sozinhos, está em um ambiente pelos olhares e pelo desconforto das pessoas ao redor), eles não abrem mão de forma alguma dos seus costumes. Só de ver, você sabe que uma pessoa é cigana. As mulheres, principalmente, são muito características: saias longas, lenços coloridos no cabelo, brincos de argola, dente de ouro (em alguns casos). Talvez, se eles aderissem aos costumes ocidentais (digamos assim), não sofressem toda a represália a qual são sujeitos, mas não. Eles tem uma postura altiva de serem o que são. Isso é extremamente inspirador.

“Tá, mas essa descrição sua é a do estereótipo clássico de um cigano. Então, eles são iguais ao que a gente vê no desenho animado mesmo?”, você pode estar pensado. PELA ÁGUA DE JESUS, NÃO! Se fosse assim, eu já saberia toda a minha vida pela leitura de mão ou teria sido mordida por um vampiro, já que a Romênia também é conhecida por ser a terra do Conde Drácula. Nenhum dos dois aconteceu e nem vai acontecer.

Você está fazendo isso errado

Aqui, na cidade de Pitești, os ciganos que eu vi são assim. Mas isso não significa que a comunidade Roma de Bucareste (aqui do lado) siga os mesmos padrões, muito menos a da Bulgária, outro país da União Europeia que conta com uma presença cigana muito forte. Aliás, esse é outro ponto interessante de levarmos em conta.

Romênia e Bulgária nem sempre fizeram parte do bloco econômico, político e social que hoje integram. Depois de muitas negociações (muitas mesmo), os dois países tornaram-se membros da união em primeiro de Janeiro de 2007, apesar das várias restrições à livre circulação como, por exemplo, a proibição de romenos e búlgaros trabalharem em outros países da UE. Na época, Portugal foi um dos países que aderiu a essa medida.

E, mesmo passados dez anos desse marco, nem Romênia nem Bulgária fazem parte do Acordo de Schengen, seguem aguardando a sua implementação. Um dos motivos? A hostilidade imensa presente em países europeus ao termo “migração”, seja ela qual for, que vem se arrastando há anos (assunto que dá pano para muita manga e fica para outro momento).

Isso nos leva ao ponto inicial da história, quando eu não sabia de nada disso que falei anteriormente. A curiosidade já estava em mim e a oportunidade de vir para a Romênia surgiu. Logo, “mas, e os ciganos?” veio à tona e minhas buscas começaram. Minha primeira reação foi conversar com pessoas que já tinham passado pela mesma experiência na qual estou agora. “E aí? É tudo isso que falam? É perigoso mesmo?” e a resposta veio de formas distintas, mas com o mesmo conteúdo: “não”.

É verdade que existem alguns ciganos que praticam furtos. Outros, pedem esmola. Nada que uma pessoa criada em Fortaleza ou que more no Rio de Janeiro, meu caso, não lide na sua rotina. Veja bem, eu acredito que as pessoas tem o direito de tentar sobreviver, cada um tenta da maneira que pode, mas são casos pontuais. No dia a dia, o que prevalece é que eles vivem a vida deles e você, a sua. Raramente (quase nunca), escuta-se relatos de violência vindo de um Roma. Muito difícil mesmo.

O que predomina nesse caso é o preconceito e, com ele, a generalização. É inerente ao ser humano ter um pé atrás, ou os dois, com o que lhe é diferente. Acho que nunca vamos conseguir mudar algo que está impregnado na nossa existência. O que podemos fazer é não nos fecharmos totalmente para outras percepções além da nossa e, passo a passo, tentar entender realidades alheias a nossa. Esses são os ciganos, seres humanos, como eu e como você.

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