A música prática.

A nova função da música e porque devemos rever nossa visão sobre como as pessoas se relacionam com ela.

Thiago R. Pinto
11 min readNov 4, 2015

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Então a indústria da música mudou. Se você não estava em uma caverna pelos últimos 15 anos deve ter percebido. Pra quem perdeu o bonde, resumo essa revolução digital em três pontos: acesso à informação, acesso aos meios de produção e democratização dos canais de distribuição.

Mas algumas coisas essa revolução digital não mudou. Distribuição de royalties, por exemplo. Embora a música tenha hoje uma vida praticamente desmaterializada após ser transformada em zeros e uns e viver no universo onde tudo pode ser rastreado, a correta distribuição de royalties referentes a direitos autorais continua sendo uma dor de cabeça para selos, compositores e músicos. Empresas como a Kobalt estão tentando mudar esse jogo, mas como diria Mr. Catra: o processo é lento, o barato é louco e o bagulho é sério. Sim, Mr. Catra. Muito sério. Tão sério que que vou parar por aqui e guardar essa discussão para outro texto.

Mas entre as “não mudanças”, hábitos que se mantiveram praticamente intactos ao longo desses 15 anos, meu destaque vai para um mantra que escuto em todas as conferências, palestras, artigos e conversas sobre música. Um discurso que soa mais ou menos assim: a relação emocional e comportamental das pessoas com a música não mudou. Continuamos amando a música como sempre amamos.

Há umas 3 semanas estava lendo um report recém publicado pela Vevo, onde na introdução o seu CEO Erick Huggers desfere o mantra mais uma vez:

Relatório da Vevo sobre millenials e seu comportamento de consumo musical.

“Music creates transformative experiences. It has the power to connect people in personal and meaningful ways unlike any other medium. For music fans, it’s an essential part of how they live their day-to-day lives. Finding the songs and melodies that speak to them directly and reflect their unique personas isn’t so much a desire, but a need.”

Olha, eu não sei para onde essa gente toda está olhando… Mas não posso acreditar que continuem não enxergando o que está na cara. Essa relação mudou! Mu-dou. M-U-D-O-U. Se conseguisse, escreveria de cabeça para baixo também.

Mas antes de dar sequência no assunto, vale ressaltar: sim, a música continua movendo multidões. Sim, ela é hoje mais consumida do que nunca. E sim, artistas ainda são influenciadores. Porém tudo isso não quer dizer que as pessoas ainda se relacionam com a música da mesma maneira.

Provavelmente não exista nenhuma outra atividade cultural que seja tão universal e que permeie, modele e muitas vezes controle tanto o comportamento humano como a música, disse Alan P. Merriam em The Antropology of Music. No entanto a própria definição de música evoca diversas questões filosóficas, culturais e até políticas. Musicólogos sugerem que a sua definição está diretamente ligada ao contexto social e a função de um determinado comportamento dentro de uma dada cultura. Na minha opinião, são essas duas palavras — contexto e função — que definem um ponto fundamental, mas muitas vezes esquecido, da discussão: a construção de nossa preferência musical. São as mudanças na maneira como formamos nossas preferências e gostos que devem ser analisadas para que possamos entender porque hoje a música tem uma nova função e também porque não mais devemos cegamente nos apoiar em discursos como o apresentado acima por Huggers, especialmente se ele é apresentado em um contexto de mercado. Para entender contexto, função, preferência musical e como esses pontos hoje alteram a relação das pessoas com a música, precisamos voltar no tempo.

A música sempre teve função e contexto. Nos primórdios, quando ainda éramos apenas tribos, a música tinha funções espirituais. Não existia variedade, muito menos era a música entretenimento. A música da sua tribo era tudo que havia para se escutar e ela estava diretamente relacionada à celebrações das crenças do seu grupo, ou seja, a música estava ligada a rituais religiosos. Nesse contexto, esqueça preferência musical. Você escutava o que o pagé mandava.

Evoluímos para sociedades mais complexas onde passamos a ser divididos em classes. Existiam os nobres, os burgueses e a igreja. Depois vinha o resto. Nessa época a cultura à que cada um desses grupos tinha acesso era uma importante ferramenta de diferenciação social. Para o grupo dos ricos existiam bons instrumentos, bons músicos e salas de concerto. Existia a música erudita. Para o resto existiam instrumentos rudimentares, músicos auto-didátas e tabernas. Existia a música folclórica. Nesse contexto, a preferência musical era um símbolo de status e apontava a qual classe a pessoa pertencia.

A música teve um papel fundamental na formação da cultura hippie sendo uma ferramenta de identidade coletiva para muitos jovens na época.

No século XX o desenvolvimento no mundo ocidental das sociedades de consumo deram novos significados aos bens produzidos. Especialmente após a Segunda Guerra, passamos a viver em uma sociedade onde a oferta pela primeira vez era maior do que a demanda. Nesse momento passaram a existir muito mais empresas oferecendo o mesmo serviço ou produto. A diferenciação técnica deu espaço a construção de personalidade de marca e assim começamos a consumir produtos não apenas pela sua qualidade, mas porque nos identificávamos com eles. Começamos a utilizar o consumo de bens como uma maneira de construir nossa identidade individual e coletiva. Nesse processo, os bens culturais — e mais especificamente a música — foram extremamente importantes. A preferência musical era uma peça central na definição da personalidade, principalmente dos jovens. Ela definia a qual grupo uma pessoa pertencia, a qual ideologia ela se alinhava e quais valores ela seguia, independente de qual classe sócio-econômica ela veio. Nesse contexto, preferência musical era uma questão de identidade.

Chegamos ao início do século XXI e todas essas funções — espiritual, social e de identidade — continuam a existir. A diferença é que agora elas perderam a força e não mais são os pilares que definem nossa preferência musical. Os três elementos chave da revolução digital (acesso à informação, acesso aos meios de produção e democratização dos canais de distribuição) criaram um novo contexto para o consumo da música tendo impacto direto na construção da preferência musical das novas gerações.

Nunca em nenhum outro momento da história tivemos acesso a tanta música, por um custo tão baixo e com uma velocidade tão alta. A dificuldade de acesso, que na minha opinião era um dos grandes pontos que mantinha nossas preferências limitadas, foi eliminada da equação. Com 15 anos (em 1998) eu tinha uma orgulhosa coleção de aproximadamente 100 cds resultado das escolhas musicais que fiz. Hoje um adolescente com a mesma idade cresceu sabendo que toda a discoteca da humanidade está a poucos cliques de distância.

Mudaram também as plataformas de consumo. A introdução do iPod foi o início da transformação do consumo de música em um experiência individual, o que permitiu as pessoas serem mais ousadas e experimentarem diferente gêneros sem se preocupar com a sua imagem social.

O consumo de música através de dispositivos portáteis e headphones teve um grande impacto nos hábitos de consumo de música das pessoas.

A partir da facilidade de acesso e das novas plataformas de consumo a música passou a ser ubicua. Abriram-se as fronteiras para a experimentação que trouxeram novos gostos e permissão para que os ouvintes se desprendessem das amarras de identidade social de cada gênero permitindo o livre trânsito entre os mais variados estilos de música. Iniciou-se assim o processo de libertação da música como ferramenta de identidade. Nesse momento surge uma nova função para ela: a função prática.

A música passou a ser utilizada de acordo com as atividades e tarefas que os ouvintes realizam ao longo do dia. Assim, a preferência musical que antes era uma paixão quase imutável formada a partir de contextos, hoje parece mais um camaleão transformando-se a cada momento. Vivemos no tempo do “amo essa música, mas na hora certa”, vemos hoje a criação de uma geração de ecléticos que usam a música de maneira prática, uma geração onde mood ligado à uma atividade é mais importante que gênero. Vai estudar? Downtempo ou música clássica. Vai malhar? EDM ou hip-hop. Vai cozinhar? Indie-folk ou jazz. Vai pra balada? Techno ou funk carioca. A música não é apreciada por esse novo ouvinte como arte, mas sim como uma ferramenta com aplicações práticas claramente definidas. Ou seja, a experiência não está na música em si, mas no que fazemos enquanto escutamos ela. Nesse contexto, é interessante perceber como podemos olhar para serviços de música hoje com outros olhos. O Last.fm é um bom exemplo.

Uma das primeiras redes sociais a buscar estabelecer relações entre usuários baseados na suas preferências musicais, o Last.fm identifica todas as músicas e seus respectivos artistas tocados pelos seus usuários e utiliza esses dados para construir um histórico musical de cada um. O objetivo inicial era que os artistas mais executados resultariam na definição da preferência musical de cada usuário. Se a pessoa escuta muito Bethoven, Mozart e Bach, música erudita deve ser certamente a sua preferência. Mas seguindo o argumento apresentado aqui, de que a música hoje exerce uma função prática na vida das pessoas, não podemos aceitar essa conclusão tão rapidamente. A música erudita é hoje muito consumida por pessoas enquanto elas trabalham e, nesse caso, temos que pensar também na possibilidade de que música erudita não é a preferência musical desse usuário, mas apenas a música que acompanha ele durante sua principal atividade do dia: seu trabalho. Se as ações que executamos ao longo do dia são o que definem o que iremos escutar e não a preferência musical por um determinado estilo ou gênero, podemos dizer que hoje o Last.fm não apresenta as preferências dos seus usuários, mas sim uma lista das atividades que eles mais praticam.

Enquanto no caso do Last.fm podemos considerar essa informação gerada “acidentalmente” como um subproduto não esperado do serviço, para o Spotify essa percepção da nova função prática da música foi fundamental para a construção da sua UX.

O Spotify foi o primeiro grande serviço a entender que, para essa nova geração de ouvintes, as estrelas em uma plataforma de streaming não são discos e artistas, mas sim playlists e moods. A UX do Spotify é toda construída em torno desses últimos dois elementos pois a empresa entendeu que seus usuários não recorrem ao serviço para a contemplação da obra de artistas, mas para usar a música como combustível para outra atividade. Pela primeira vez na vida vejo um serviço colocar moods e gêneros juntos, apresentando um perfeito reflexo dessa profunda mudança de comportamento de consumo. Ao focar em playlists e moods o Spotify ajuda o seu usuário a achar rapidamente uma seleção de música que se adequará perfeitamente a sua atividade, seja ele qual for, sem que ele tenha que passar pela dor de cabeça de descobrir em meio a 30 milhões de músicas quais são as perfeitas para aquele momento.

Spotify: uma imensidão de playlists direcionados por atividade.

Feita então toda essa volta para explicar essa nova função prática da música, como ela mudou a formação de nossa preferência musical, como mudamos nossa relação com a música e, finalmente, como ter um novo olhar sobre serviços e estratégias de negócio, quero voltar para o ponto central do artigo que é o mantra “continuamos amando música como sempre amamos”. Vou mais uma vez trazer o trecho de Erick Huggers, CEO da Vevo, para fazer os contrapontos:

- “Music creates transformative experiences. It has the power to connect people in personal and meaningful ways unlike any other medium.”

Não, não é a música que cria a experiência. Ela é o que background que ajuda a dar o mood do momento. A atividade sim é o que conecta as pessoas (com outras ou com elas mesmas). É o almoço de sábado com os amigos, o pic nic no parque com a namorada, o festival de música com 30 mil pessoas no meio do deserto.

- “For music fans, it’s an essential part of how they live their day-to-day lives.”

Considero essa afirmação verdadeira desde que se compreenda que a música é uma parte essencial do dia a dia dessa geração de novos ouvintes pois ela dá o tom das atividades realizadas por eles e não porque, como no passado, eles a usavam para construir identidades pessoais e coletivas.

- “Finding the songs and melodies that speak to them directly and reflect their unique personas isn’t so much a desire, but a need.”

Aqui está o grande problema. A música para as novas gerações não se trata do reflexo da sua “unique persona”, mas sim algo que reflete a atividade que ele está realizando. A música já foi uma questão de lealdade, de identidade. Hoje ela é uma questão de consumo ligada a momentos. Dessa maneira, a preferência musical desses novos ouvintes é muito mais flexível e não mais o perfeito reflexo da sua personalidade.

Gráfico do Spotify apresentando quais os gêneros tem os fãs mais leais. Conhecendo um pouco do perfil dos metaleiros, não é supresa que o estilo esteja liderando a lista. O que chama a atenção é como todos os outros estilos se igualam, mostrando que as pessoas transitam muito entre todos eles.

Se essa nova percepção é algo bom ou ruim para a música como uma forma de arte, não cabe a mim (ou mais especificamente a este artigo) dizer. O que é importante aqui é compreendermos que essa revolução não pode ser parada. Ela é um processo contínuo e de transformação gradual onde o indivíduo é quem está no poder. Ela é uma revolução que se auto-regula, não cabendo aos mercados o desejo de controlá-la, mas sim de tentar entender a sua cultura, valores, regras e participantes. Não devemos enxergar esse novo ouvinte sob um ponto-de-vista conservador, muito menos como um inimígo do music establishmet. Devemos analisá-lo através de uma ótica evolutiva onde ele é o agente de transformação de uma mudança radical nas relações sociais de consumo.

O futurismo é uma ciência que muitas vezes erra suas previsões porque é feito em grande parte por pessoas que olham para números e tecnologia. Mas números podem muitas vezes ser traiçoeiros. Ao olhar apenas para os grandes números podemos perder aqueles pequenos que são os reais indicadores da transformação que está por vir. Já a tecnologia deve surgir no tempo e contexto certo. Só assim ela é abraçada pelas pessoas e capaz de mudar seus comportamentos. Assim, o real desafio do futurismo é prever como o nosso comportamento irá mudar. Nas palavras de Tom Vanderbilt:

When technology changes people, it is often not in the ways one might expect.

A tecnologia mudou a maneira como escutamos música e como resultado nós mudamos a maneira como nos sentimos em relação a ela. Talvez devamos começar a considerar o fato de que as pessoas não mais amam música, mas sim que elas apenas gostam. Ou até mesmo que elas à usam. Só assim, entendendo essas mudanças, é que a indústria da música irá conseguir criar serviços, produtos e modelos de negócio em sintonia com esse novo ouvinte.

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Thiago R. Pinto

Head of Strategy & Research @ Loop Reclame — Connecting the dots between media, tech and behavior.