A reinvenção do corpo e do desejo na era do pós-pornô

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6 min readMay 19, 2016

Corpos, dildos, couro, sexo, natureza, tecnologia, câmeras e ação. Cenários inusitados e edições nada convencionais. As formas de fazer e circular a pornografia têm sido transformadas ao longo dos últimos anos pelos movimentos feministas e de diversidade sexual, criando produções pornôs subversivas e inovadoras. As denominações são várias: pós-pornô, pornografia feminista e também pornografia queer.

Essas são diferentes formas de nomear e fazer pornô que buscam criticar as tradicionais fórmulas da pornografia, denunciar as opressões dos corpos — principalmente das mulheres — e ainda contestar de forma ampla as normas de gênero e sexualidade da nossa sociedade, propondo outras percepções de desejo.

O movimento pós-pornô, especificamente, tem suas origens nos anos 90, principalmente nos Estados Unidos e na Espanha, e vem nessa esteira das correntes pós-identitárias, pós-feministas e pós-modernas dos movimentos que buscam dinamizar as concepções e vivências de gênero e sexualidade.

Annie Sprinkle, atriz pornô na performance “Public cervix announcement”. Anne abriu as pernas e deixou que sua vagina fosse vista através de um binóculo, criticando o excesso de zoom e de planos fechados nas genitais femininas nos filmes pornôs.

A pós-pornografia é, nas palavras do ator, performer e pesquisador Igor Leal, “um movimento de expressão da sexualidade, em que são ampliadas as sensações e possibilidades do corpo”. Essa ampliação é feita principalmente pelo deslocamento do prazer focado nas genitálias para um prazer a partir da totalidade dos corpos, levando em conta a fluidez dos prazeres.

Nesse movimento há um conjunto de textos, fotografias, vídeos e performances que colocam em cena corpos e experiências negligenciados ou extretamente fetichizados em outros contextos. Esse é o caso, por exemplo, dos vídeos feitos com pessoas portadoras de deficiência física, percebidas muitas vezes como pessoas sem sexualidade ou com corpos não excitáveis.

Já no pólo dos corpos comumente hipersexualizados, estão as travestis e as pessoas trans, principalmente mulheres trans, representadas na pornografia tradicional como objetos de desejo e alvos de uma intensa fetichização. Dessa forma, a pós-pornografia tender a criar um espaço de fluição da sexualidade em que todos os corpos podem ser emancipados, subversivos e potencialmente excitáveis de maneira autônoma e diversa.

Apostando na possibilidade de fluidez das performances de gênero e na potência de experiências libertadoras da sexualidade, o pós-pornô embaralha fronteiras sociais e culturais, tensionando a categorização dos indivíduos, como estamos tão acostumados (como homem e mulher, homossexual e heterossexual). Desestruturando, assim, fórmulas mercadológicas e construindo novos meios não só de consumir pornô como também de sentir prazer.

Amanda Charchian

Pluralidades estéticas

Como se trata de um movimento que busca desfazer mais que cristalizar, vale de tudo no pós-pornô. Por isso, existe uma plurailidade de estéticas.

Não há formulas prescritas, embora dê pra perceber, na opinião de Igor, a recorrência de uma “estética de guerrilha”, em que as performances tornam-se campos de batalha, de reivenção, experimentação e resistência.

Existem vídeos que apelam para um discurso imagético de uso da tecnologia. São cenários e edições que simulam ambientes high-tech, cheios de acessórios e elementos que dão um toque bastante original aos vídeos. No vídeo do coletivo Rosa Quimera, por exemplo, há toda uma cena de luzes, objetos metálicos e sons eletrônicos. São verdadeiros ciborgues, que mostram como o corpo humano é híbrido, uma mistura de organismo e máquina, de biologia e tecnologia.

Outra marca de muitas performances pós-pornográficas são as referências ao universo BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo), remetendo a um conjunto de práticas sexuais que são vistas muitas vezes como patológicas. Aparecem coleiras, chicotes e correntes, que recusam qualquer tipo de moralismo.

Da mesma forma que surgem os cenários futuristas e tecnológicos, há também as performances que optam por outros meios de apelo e de prazer. Neste vídeo do coletivo MUDSLUTS há uma performance de ecosex inspirada na atriz Annie Sprinkle. Os atores e atrizes estão em um ambiente aberto e natural, e as performances acontecem a partir da interação entre corpos e lama.

Novos meios de produção e outras formas de consumo pornográfico

O pós-pornô também é produzido com operações distintas da indústria pornográfica tradicional. A principal diferença está na disposição dos atores e atrizes. Enquanto nos filmes tradicionais é comum que estes sejam feitos por agenciamentos extremamente exploratórios e opressores de mulheres, na produção dos filmes pós-ponôs o elenco participa dos filmes espontaneamente. As intenções podem ser políticas, culturais e até mesmo por prazer. Não é necessário também ter o “corpo perfeito”, dentro dos padrões sociais. É preciso apenas iniciativa.

Outra diferença de produção está na preparação. Não importa seu corpo ou sua carreira pornográfica. Trata-se mais da realização de pesquisas e discussões em torno de estudos acadêmicos e de movimentos sociais que se baseiam em questionamentos derivados da Teoria Queer e de Estudos de Gênero. São de debates, oficinas e encontros (principalmente no ambiente universitário) que são idealizados e produzidos os filmes.

“Historia de 3”, do coletivo Quimera Rosa

Assim como a produção, estes materiais não circulam em qualquer site pornô, de fácil acesso na internet. Os vídeos só são encontrados nas páginas e sites dos coletivos que os produzem e, raramente, em alguma sessão inusitada de sites de pornografia. Além disso, como as performances pós-pornôs estendem-se para além da interface virtual, elas também podem ser vistas e experimentadas em festivais, mostras e encontros.

As mudanças na pornografia implicam mudanças na forma de consumo: não é só mais em casa, na frente do computador e da televisão, ou em espaços como saunas e casas de swing. O pornô vai para auditórios e corredores de universidades, e até para a rua.

Corpos e mundos de possibilidades

A partir das mudanças no pornô tradicional, surgem rupturas e descentralizações nas relações que envolvem sujeitos, mídia, tecnologia e comportamentos. Perguntas se multiplicam, muitas sem resposta: a pós-pornografia é arte, é sexo ou é política? Ela vai alcançar mais pessoas e aumentar a circulação? Vai mudar a ordem e funcionamento do mercado pornográfico? Ou, antes disso, o que é um pornô?

Nesse terreno movediço, sabemos que a pós-ponografia é híbrida, múltipla e avessa às classificações. Pelo engajamento e resistência expressas corporalmente, a pornografia tradicional vai sendo contestada. O gozo masturbatório cede espaço para o gozo da subversão e da criatividade. Isso não significa que o tesão some, mas que ele não é direcionado somente para o grupo de homens cisgêneros consumidores de pornografia. Todos e todas tornam-se público potencialmente excitáveis.

Cena do documentário “Yes, we fuck!”

Tais contestações e questionamentos ressoam também na experiência sexual e estética de cada um: o que eu vejo como pornô? O que me excita? Quais corpos desejo? Como vivo minha sexualidade?

“A pós-pornografia implode, ela está com você, em como você se sente bem, em como você se excita. Essas experiências possibilitam transformações que mexem na profundidade dos nossos desejos e sentidos.” Igor Leal

São, portanto, não só mudanças virtuais ou localizadas em pequenos grupos e espaços, mas transformações que ocorrem em consonância com movimentos que estão nos reorganizando enquanto sociedade e nos modificando enquanto sujeitos.

Capa: Amanda Charchian

por José Henrique Pires

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