Alimentação contemporânea e a dinâmica do afeto

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5 min readApr 17, 2017

Atitudes alinhadas ao consumo consciente têm sido investigadas como parte de uma macrotendência comportamental pautada pela redução do excesso, pelo entendimento do ato de comprar como posicionamento político e por uma busca profunda do indivíduo por conexão consigo, com a sociedade e com o planeta.

Os diferentes impactos deste mindset nos mostram, por exemplo, que a farmácia caseira se fortaleceu e que estão em alta as dietas que valorizam a integração de corpo, mente e alma com a natureza. Nesta esteira, hábitos alimentares emergentes começam a impactar a indústria alimentícia e obrigam o mercado, especialmente grandes companhias de alimentos industrializados, a repensar estratégias.

Na alimentação contemporânea, vivemos um momento de redescoberta da relação emocional que temos com a comida.

Daniel Spoerri

Uma maior responsabilidade na ampla relação entre o ser humano e a comida inspiram cada dia mais adeptos. O olhar mais atencioso ao que comemos está além de uma questão de paladar — a gastronomia afetiva potencializa o interesse em todas as etapas da alimentação: origem, produção, criação de animais, comercialização e consumo.

Vivemos uma era em que o sentimento sobrepõe o pensamento lógico. Para o sociólogo francês Michel Maffesoli, a pós-modernidade é a era do afeto. A vida em modo automático típica dos centros urbanos nos faz perder, aos poucos, nossa espontaneidade, as raízes de nossa história e, muitas vezes, o sentimento de pertencimento. A busca por sentir estimula o desejo de reviver sensações e impõe uma necessidade de conexão — com nossas origens e identidade.

A preferência por alimentos verdadeiros é defendida por Michael Pollan, que tornou-se referência em vida saudável depois de publicar inúmeros livros sobre o assunto. Em sua série Cooked, o jornalista explora a culinária relacionada a tradições em diferentes culturas, além da relação com animais, alimentos industrializados, formas de preparar o alimento e de comer.

A origem

É crescente o questionamento sobre a origem dos alimentos: cada vez mais, procura-se encurtar o caminho entre o campo e a mesa em trocas mais justas e diretas com o produtor.

A gastronomia afetiva convida à ampliação de repertório cultural e ao diálogo aberto entre comida e emotividade. Afinal, os alimentos equilibram o corpo com seu valor nutricional, mas também a alma com seu valor emocional.

Exemplo disso são feiras de alimentos orgânicos, como a Feira Ecológica da Redenção, em Porto Alegre, a Feira do Produtor Orgânico, em São Paulo e a itinerante Junta Local, no Rio de Janeiro.

Junta Local

A Expedição Fartura é um projeto de mapeamento da culinária brasileira, que registra receitas passadas de geração para geração e simbologias ligadas a pratos nacionais. Mais que resgatar o passado, essa postura aponta caminhos para pensar o futuro, em um momento em que questionamos o sistema de consumo atual.

A plataforma Foodpass é um market place experiências gastronômicas em São Paulo, curadas por sua equipe, além de realizar ações customizadas para marcas — sempre em torno da comida; sempre com engajamento afetivo.

Da série de autorretratos “Women & Food Stories”, por Lee Price

Comida como ato político

O momento é também de iniciativas contra o desperdício. Trata-se de um comportamento que está além do “desembale menos, descasque mais”: entramos em uma dimensão de cunho social, para além de escolhas pessoais. A fome é um grande problema global e, ainda assim, um terço dos alimentos produzidos no mundo é descartado.

“Cozinhar sua própria comida é um ato político muito importante. Tem a ver com independência e autonomia. Abrimos mão de muito poder ao deixar as grandes corporações cozinharem para nós porque elas decidem quais fazendas vão apoiar e, normalmente, são bem aquelas que fazem um tipo de agricultura que certamente você desaprovaria.” — Michael Pollan

A campanha “Inglorious Fruits and Vegetables”, da rede de supermercados francesa Intermarché, propõe uma mudança de comportamento contra o desperdício. Frutas e legumes imperfeitos, mas totalmente aptos para consumo, passaram a ser vendidos com desconto e valorizados pela abordagem na propaganda.

No Reino Unido, foi inaugurado em 2016 o primeiro supermercado de comida descartada, com alimentos que seriam desperdiçada por restaurantes e outros mercados. A iniciativa do projeto Real Junk Food também tem cunho social, já que o sistema de pagamento funciona no estilo “pay as you feel” — ou seja, o cliente paga o quanto puder ou quiser, em dinheiro ou até mesmo com trabalho voluntário.

No Brasil, a ONG Banco de Alimentos coleta alimentos excedentes e os leva a instituições de caridade, além de promover palestras e oficinas de conscientização ao desperdício. A Gastromotiva, movimento que capacita jovens da periferia e objetiva transformação social através da comida, inaugurou um restaurante em que aproveitará sobras de alimentos para cozinhar pratos de alta gastronomia.

“Nas escolas ainda se ensina gastronomia como se fazia há 100 anos. Esse tempo acabou, agora precisamos fazer molhos clássicos sem jogar ingredientes fora.” — David Hertz, fundador do Gastromotiva

Escultura em mármore de Robin Antar

A sensorialidade intrínseca à gastronomia é porta de entrada para experimentar diferentes sensações e construir narrativas individuais e coletivas: olhar para dentro e escutar o nosso corpo; olhar para fora e repensar nossas escolhas. Comida é afeto, cultura e memória. É, também, agente de transformação social.

Capa: Monica Ramos

por Julie Vieira

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