Locavorismo e as três dimensões do desenvolvimento sustentável

Box1824
7 min readAug 7, 2017

Os 16 maiores navios de carga são capazes de, juntos, poluir mais do que todos os carros do mundo. Em seus percursos transoceânicos, carregam alimentos, eletrônicos, roupas, matérias primas e ainda lixo e materiais para reciclagem. São eles os responsáveis por transportar por longas distâncias os produtos que consumimos e também o resultado deste consumo, aquilo que não desejamos mais. Este dado chama atenção pelas consequências para o meio ambiente e para a saúde, mas o impacto do consumo globalizado também é social e econômico.

São cenários como este que o movimento de consumo local busca conter, favorecendo trocas inteligentes que produzem resiliência dentro das comunidades em vez de dependência em transporte e combustível. Também chamado de locavorismo, o movimento propõe encurtar distâncias e olhar atentamente para as cadeias de produção do que é consumido. Na prática, é o ato de privilegiar o consumo daquilo que é produzido perto de nós e comercializado por pessoas da comunidade. Por exemplo, em vez de comprar maçã, kiwi ou pera do Chile, um morador de São Paulo poderia optar por uma fruta da estação, vinda do cinturão verde paulista.

O economista Michael Shuman, autor de quatro livros sobre economia local, mostra em seu livro Local Dollars, Local Sense evidências de que este comportamento tem impacto positivo na geração de empregos, na redução da pobreza e na redução da pegada de carbono da comunidade. Ou seja, o consumo local está alinhado aos três pilares do desenvolvimento sustentável: ambiental, social e econômico.

Dimensão ambiental — o olhar responsável sobre os recursos

Um olhar ambientalmente responsável sobre o consumo local busca garantir que os recursos naturais (materiais, água, combustível etc.) sejam utilizados de forma sustentável. Dentro desta proposta, para que a sustentabilidade se desenvolva, é preciso incentivar os negócios de circuito curto, tanto de comercialização quanto de produção. A produção terá que acontecer mais perto de onde as pessoas moram e de onde as matérias primas estão. Existem grandes desafios para que isto aconteça em diversos setores, mas no caso da alimentação pode ser mais fácil.

Para além das hortas urbanas, podemos encontrar na agricultura familiar e nos pequenos produtores um contraponto à agroindústria. É para isto que trabalha David Ralitera, da Fazenda Santa Adelaide Orgânicos. Para ele, é preciso haver uma mudança na lógica da escolha. Para ter alimentos sem pesticidas, que cuidam tanto do solo quanto da saúde de quem trabalha na terra, faz-se necessário comer de acordo com as estações, de acordo com o ritmo próprio das plantas em seu meio natural:

“Receber o melhor da estação faz sentido em todas as frentes: sustentabilidade, saúde, transparência, proximidade, custo e qualidade.”

A Rota do Cambuci tem como objetivo resgatar a memória regional em torno do cultivo e consumo do cambuci. Eles levam o fruto, típico da mata atlântica, para eventos, como o Mesa Biodiversa, e para a mesa de restaurantes, como o Dalva e Dito. O incentivo é importante para recuperar matas nativas e gerar renda para produtores da região da Serra do Mar Paulista, que eles chamam de “guardiões do cambuci”.
A marca de moda carioca Movin, que aposta em tecidos naturais, orgânicos e reciclados, mostra em seu site onde é feita cada etapa da produção de suas peças, desde o fio de costura até a confecção, que acontece no Rio de Janeiro mesmo.

Dimensão social — a economia que se importa com as pessoas

O conceito de sustentabilidade social, no contexto do locavorismo, engloba o apoio e respeito a todos dentro de uma comunidade e a luta para a erradicação das desigualdades sociais. Direitos humanos e de trabalho não podem ser deixados de lado. Outros tópicos como a geração de empregos e a segurança alimentar estão relacionados também com os outros dois pilares, mas tudo se confunde, uma vez que é a sociedade que vai desenvolver tanto a economia quanto o cuidado com o meio ambiente.

A Quitandoca, um mercadinho pouco convencional em São Paulo, investe tempo em construir redes e facilitar o acesso a alimentos agroecológicos. Eles têm a oportunidade de se relacionar com o produtor de uma forma diferente das grandes distribuidoras de alimentos. Assim, o agricultor pode focar no seu negócio, que é plantar. A Quitandoca oferece apoio técnico e logístico, incentivando a organização dos produtores para a distribuição independente na cidade.

As pessoas que vivem na cidade muita vezes se sentem desconectadas do processo produtivo e têm curiosidade de entender o caminho do mato ao prato. Ir até o produtor pode ser uma forma de estreitar os laços e gerar colaboração entre quem faz e quem consome. Pelo modelo de intercâmbio WWOOF é possível passar um período combinado (de uma semana a vários meses) participando ativamente da vida de uma fazenda, trabalhando no campo ou nos mercados de produtores, por exemplo.

Fazenda Malabar

A Fazenda Malabar fomenta uma troca parecida. Atualmente, buscam um interessado para passar três semanas na fazenda e ajudá-los a responder duas perguntas chaves do negócio: “Como escalar o volume de vendas sem perder a conexão do consumidor com o agricultor? Como garantir que cada ciclo de produção da nossa horta sirva de aprendizado para os próximos ciclos?”

São dúvidas como estas que mostram o desejo destes pequenos negócios locais de se tornarem realmente sustentáveis, integrados na comunidade. Diferente dos empreendimentos geridos por um conselho de administração inalcançável, o canal com o pequeno negócio é direto. A Associação de Agricultura Orgânica lançou o livro Guardiões Orgânicos para falar do João, do Sebastião, do Antônio e de outros produtores presentes nas feiras de orgânicos da Água Branca e do Villa Lobos. Heloisa Bio, comunicadora do projeto, conta mais:

“Queremos orientar este trabalho para a escuta, registro e transmissão das histórias destas pessoas que são protagonistas de transformação em seu meio, mas que geralmente são anônimas para os meios de comunicação de massa.”

Na plataforma online Raízs é possível comprar alimentos orgânicos que ainda nem foram colhidos. Por isso os produtos chegam muito frescos ao consumidor, sem desperdício. Cada produto leva a história e a foto de quem o cultivou, o consumidor consegue imaginar a vida do produtor em uma relação que ultrapassa o mero produto final. Além disso, doações dos clientes e parte do resultado financeiro da empresa, formam o Fundo do Pequeno Produtor. Esse dinheiro é direcionado aos produtores, que decidem juntos onde ele será usado.

Na moda, onde a falta de respeito com os trabalhadores é tão evidente, a estilista Flavia Aranha faz diferente em sua marca homônima. Boa parte da confecção é feita no andar de cima da loja e o ateliê de tinturaria natural também fica no mesmo imóvel, na Vila Madalena, em São Paulo. Toda sua comunicação é voltada para empoderar o trabalho das mulheres que trabalham com ela, ou para valorizar o conhecimento antigo de onde ela tira inspiração para o seu trabalho. Ela tem documentado suas viagens de aprendizado no Instagram, onde compartilha este rico processo de valorização do que é local e nativo do Brasil.

Pano Social é uma pequena empresa que se compromete a aumentar seu impacto social, trazendo resultados positivos para o meio ambiente. Promovem a ressocialização de egressos do sistema prisional, dando oportunidade para estas pessoas em sua rede de produção.

Dimensão econômica — as riquezas que se multiplicam

Um estudo realizado pelo Centro de Políticas Econômicas de Maine buscou quantificar o impacto econômico de compras em negócios locais na cidade de Portland, nos Estados Unidos. Segundo o estudo, uma vez que os donos de negócios locais mantém seus ganhos dentro de suas comunidades, eles tendem a realizar negócios com seu entorno, multiplicando o efeito na economia local: cada 100 dólares gastos em um negócio local geram 58 dólares adicionais na economia local, ao passo que 100 dólares gastos em uma grande cadeia geram apenas 33 dólares de impacto local.

Existem grupos online que organizam compras coletivas direto com produtores. Comida da Gente é um dos que funciona em São Paulo de forma colaborativa. Por lá, pessoas se mobilizam para comprar queijos, geleias, frutas, comidas artesanais e até cogumelos.

Mas como incentivar estas trocas e torná-las ainda mais significativas? Especialistas apontam as moedas alternativas como solução para encorajar a economia local. Elas funcionam como um sistema de trocas, promovendo a circulação interna de recursos. O economista Bernard Lietaer, autor do livro Rethinking money: how new currencies turn scarcity into prosperity é um dos maiores defensores das moedas complementares. Ele sugere a substituição do monopólio monetário (e da concentração de riquezas) pelo ecossistema monetário.

A libra de Bristol foi criada em 2012 e os pagamentos com ela podem ser feitos com a moeda impressa ou por meios eletrônicos. Em apoio à ideia, o primeiro prefeito de Bristol, George Ferguson, aceitou que seu salário fosse pago com as libras de Bristol durante seu mandato (2012–2016). A moeda local é uma forma das pessoas mostrarem ativamente seu apoio à comunidade e aos negócios independentes.

No Brasil, as moedas locais também são chamadas de moedas sociais. É o caso da precursora Palmas, moeda social criada em 1998 em Fortaleza, da Cocal, que consegue conter a criminalidade em São João do Arraial (no Piauí) ou da Sampaio, que é aceita por cerca de 50 pequenos comércios no bairro Campo Limpo, em São Paulo.

O consumo local pode ser um dos maiores desafios de quem já entendeu o impacto das suas compras no mundo. Entre os atores deste movimento estão compradores, agricultores, estilistas, construtores, comunicadores. Não é uma medida protecionista, em que um governo proíbe, taxa ou dificulta trocas externas; são as pessoas incentivando o que é interno.

“Trocas entre nações ainda serão bem-vindas, mas devemos começar a desenvolver uma situação em que as nossas principais necessidades sejam supridas localmente. Comida é um dos pontos mais sensíveis para começar a reconstruir comunidades resilientes, mas materiais de construção, tecidos, madeira e energia estão logo atrás.” — Rob Hopkins, fundador do Transition Movement

Todos os motivos para levantar a bandeira do locavorismo são nobres — como vimos, está tudo interligado. Então quem prefere comprar local pela qualidade ou pelo envolvimento com a história dos empreendedores locais, ao mesmo tempo ajuda a preservar o meio ambiente e luta contra a escravidão moderna.

Capa: Catarina Bessell

por Fernanda Franco Cannalonga

pontoeletronico.me

--

--

Box1824

Pesquisa em tendências de consumo e comportamento jovem. Textos também disponíveis no Ponto Eletrônico > www.pontoeletronico.me