Resenha: Capitu — Luiz Fernando de Carvalho

Bruno de Oliveira
10 min readMay 28, 2022

--

Reler infielmente um clássico infiel

Lançada em 2005 pela Rede Globo com a assinatura do diretor Luiz Fernando de Carvalho, a série Capitu adapta o romance de Machado para a televisão. Tal obra despertou minha atenção desde seu lançamento por dois bons motivos: Dom Casmurro foi o livro que mais vezes reli, além disso, gosto muitíssimo do velho Machado e de seu modo de pensar e escrever.

Sendo assim, escrevi esta resenha para expressar algumas reflexões a respeito da série que aproveitam o fato de eu ter o livro sempre em mente.

Como se trata de uma obra famosa (afinal, passou na Globo) que adapta um livro que está na educação básica dos brasileiros, evitarei abordar aqueles elementos que não constituem novidades e apenas reapresentam uma história que já conhecemos. A bem dizer, pretendo delinear de que maneira Luiz de Carvalho encena Dom Casmurro e cria sua própria obra a partir do livro, pois nisso está a originalidade da série. É o seu olhar interpretando uma obra clássica e escolhendo como reencená-la que importará para a resenha.

“Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos.”

Capítulo LIX: Convivas de boa memória

Ao procurar mais informações a respeito da série pela internet, fiquei surpreso por encontrar diversas críticas à ela que apresentavam, quase sempre, um mesmo argumento: Capitu é infiel à Dom Casmurro, logo, indigna dele. Esse argumento surgiu em diferentes formatos e textos, alguns até divulgados em canais de ampla circulação.

A princípio, sendo direcionado contra quem é, seria simples devolver que Dom Casmurro não é dado à fidelidades literárias e suponho que isso encerraria o assunto, entretanto, não me agrada a ideia de retrucar uma amenidade com outra, então argumentarei melhor nos próximos parágrafos. Vá para eles.

Se toda leitura de um livro clássico é já uma releitura e uma reinterpretação, pois os leitores estão a interpretar uma história que já foi lida e interpretada anteriormente por quem a fez e pela tradição que a consagrou, então posso compreender que haja quem não goste de determinadas leituras ou mesmo de determinadas obras, mas não posso compreender por que há quem se posicione contrariamente à ideia de releitura.

Livro não nascem clássicos; tornam-se. Clássico é aquilo apresentado em classe, ou seja, aquilo que foi lido e escolhido para compor nossa educação em classe. As pessoas contrárias à releituras argumentam que Machado é isso ou aquilo, Shakespeare é isso ou aquilo, quer dizer, que são uma mesma coisa sempre e nisso estaria o seu caráter atemporal, portanto, obras que retrabalhem o que tais autores produziram apenas os deturpariam de maneira infiel.

Pensar assim, no entanto, é ignorar o que constitui um clássico.

Tais pessoas não entendem que porque tais autores podem ser reinventados, retrabalhados em novos contextos e ideias, é que são considerados clássicos. Uma vez que foram relidos, criticados, traídos, reinterpretados, enfim, mantidos vivos, é que sobreviveram. Eles tem algo a dizer para um futuro que nem nasceu justamente porque ninguém pode determinar, a partir de uma única perspectiva, tudo o que eles são. O que os críticos da releitura entendem por clássico não vem da classe em que existe ensino, debate e consideração pelas pluralidade de ideias, mas da classe em que existe a vara: a imposição de uma imagem fixa da cultura — e nessa classe quem ousa pensar deve ser corrigido, nela só importa a visão de quem manda.

Pois bem. Creio que não é preciso argumentar ainda mais que não há problema algum em desmontar Machado e remontá-lo como quisermos. Passemos então às infidelidades.

“O resto é saber se a Capitu da Praia da Glória já estava dentro da de Mata-cavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente”

Capítulo CXLVIII: E bem, e o resto?

A série carrega uma condição curiosa: o diretor espera que seu espectador já conheça o livro e que tenha também uma interpretação a seu respeito que será projetada na tela. A partir disso, Luiz de Carvalho realiza algumas escolhas compositivas que diferenciam significativamente a série da obra escrita. Darei dois exemplos.

Primeiro. Aquele que lê Dom Casmurro pela primeira vez não levanta muitas suspeitas em relação às aparições iniciais do ciúmes de Bento, quer dizer, quem vê Bentinho em suas agruras adolescentes não suspeita que, nessa época, o ciúmes seja parte de uma armadilha literária ou de uma compulsão maior do autor que o levará à cometer ações drásticas. É banal, até divertido, que um menino sinta ciúmes de sua namorada e imagine diversas situações ridículas por conta disso. Machado constrói a ideia de ciúmes de maneira tão sutil e gradual que, quando nos damos conta da dimensão que ele tem, já fomos longe demais em aceitar o que o autor diz.

Na série, por sua vez, somos apresentados a um Bento singularmente ciumento desde a juventude. Sentimos desde o princípio que aquele sentimento é poderoso e potencialmente perigoso.

Tal peso dado ao sentimento leva em consideração não o livro mas os olhos do espectador, que sabem que o ciúmes é parte da arapuca machadiana, e projetam os diversos momentos de ciúmes de Bento nos seus repentes adolescente. Entretanto, bem como o autor se pergunta se a Capitu adulta (e adúltera) já estaria na jovem Capitolina, podemos nos perguntar igualmente se o ciúmes do Bento adulto já estaria naquela criança, ou se isso seria apenas uma projeção dos leitores, seduzidos pela possibilidade de atar o jovem ao velho.

O que Capitu faz é enfatizar certas passagens a partir de coisas que acontecerão em momentos posteriores, o que não é especialmente problemático, porém, alguma desconfiança em relação ao narrador permite que entendamos a maneira como a série o interpreta. Escobar, por exemplo, é apresentado de maneira espalhafatosa e marcante ao som do Black Sabath, algo que só faz sentido na perspectiva de quem sabe o peso que o seminarista representará na vida de Bentinho, o que nem o protagonista nem o leitor sabem naquele momento.

Segundo. Uma consequência do apelo sentimental colocado na série é a subtração de alguns capítulos que (no livro) contribuem na montagem do enredo principal, e sua substituição por outros que tem valor apenas para melhor compor o personagem principal (como “Um soneto”). O ato de projetar no jovem as facetas do velho faz com que antecipemos aquilo que virá porque o futuro já está marcado no jovem, consequentemente, com que não seja necessário dizer certos casos, bastando expressá-los sentimentalmente.

A meu ver, não é ruim que o livro seja representado desta maneira, entretanto, cabe pensar em que medida essa representação determina uma interpretação específica da obra como “correta”.

A vida é uma opera e uma grande ópera”

Capítulo IX: A ópera

Reza a lenda que antes de ser romancista Machado pretendia ser dramaturgo, porém foi dissuadido por um amigo. Sendo verdadeira ou não a história, ocorre que a ideia de teatro (ou de ópera) impregna toda sua obra e que a metáfora da vida como sendo uma peça onde há atores, contra-regras, palhaços tristes e outros, é vastamente utilizada nos textos de Machado, inclusive em Dom Casmurro.

A série leva tal ideia ao extremo e valoriza muito o aspecto visual — cênico — da história. Capitu é apresentada como uma peça conduzida por um narrador que, curiosamente, também está em cena, também espreita e dita os rumos daquilo que acontece no palco. Por sinal, a maior parte da obra foi gravada num único galpão, montado e remontado de diversas maneiras, de acordo com a necessidade, sem nunca dissimular seu caráter de palco, sendo que, por vezes, os cenários se misturam confusamente e mesmo personagens que não estão presentes numa mesma cena aparecem fisicamente nela, expressando os sentimentos e pensamentos de Bento povoados por pessoas que, embora eles não estejam ali, não lhe saem da mente.

Esse caráter ficcional e ilusório do teatro é sempre ressaltado e jamais perdemos a consciência de que assistimos um encenação. Para levar isso ainda mais longe e nos forçar a sair da sensação de imersão em relação à obra, o diretor insere nela vários elementos que lhes são estranhos, como aparelhos tecnológicos, uma tatuagem em Capitu, recursos audiovisuais, canções pop e referências que tem pouca relação com o livro, mas que caem facilmente no gosto do público e preenchem as cenas (até de forma exagerada) fazendo com que fiquemos cientes das ilusões que a série tece para nos enredar.

A recorrência desse recurso ressalta ainda o quanto estamos vendo não só uma montagem de Dom Casmurro, mas do Dom Casmurro sobre sua vida pregressa. O espaço do galpão, remontado, remexido, confuso, é, de alguma maneira, o próprio espaço imaginativo do narrador, de suas memórias misturadas incoerentemente.

A persistência desse cenário único produz no espectador alguma claustrofobia, pois jamais somos apresentados ao que há realmente fora dele, embora sejam feitas alusões. Sentir-se acuado pelas paredes do galpão, contudo, é apenas um sinal de que gostaríamos de conhecer algo diferente da história que é apresentada nele e determinada por ele. Bem dizendo, em Capitu não assistimos, propriamente, a história de dona Glória, de Escobar e outros, mas uma encenação dela narrada por Bento em sua própria peça (ele deu até o seu nome para ela). Talvez, além da perspectiva do advogado, além do espaço de seu galpão, exista uma outra Glória, outro Escobar… E eles podem não ser bem como nos disseram. A série recria deste modo a ambiguidade do livro e o sorriso de Machado que, lá do além, zomba de nós: pode ser que haja mesmo outra Capitu e que ela e os demais não sejam aqueles que foram descritos, mas não há outro livro, não há outra obra, na verdade, nem aqueles personagens existem; Bento e Capitolina são apenas ficções; por isso, a perspectiva inédita que procuramos adivinhar, a traição a qual queremos decidir, também são apenas ficções alimentadas pelas próprias ilusões que o livro criou. É preciso que nos enganemos muito para que possamos pensar em desconfiar de quem nos enganou, usando como recursos as próprias ilusões que nos alimentaram.

O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui.

Capítulo III: Do livro

Transformar o romance numa espécie de teatro ou ópera permite tornar a história menos dependente da narrativa, e que seja exercida certa liberdade criativa a qual valoriza o visual e se desprende do livro para contar, à sua maneira, a história que está contida nele.

Na obra escrita lemos o que o narrador nos diz e, sem ver seu rosto, suas expressões, retiramos conclusões a seu propósito considerando somente seu discurso; todavia, na televisão há um elemento visual que não pode ser ignorado, e do qual o diretor se apropriou para expor o próprio narrador como um personagem em cena. Isso produz uma consequência importante: se o velho Bento aparece em cena, então não é preciso adivinhar o que ele sente; bastará vê-lo.

Com isso, se o Casmurro do livro é distante em contraposição ao seu “eu” jovem, o Casmurro da série, todavia, não é distante, mas é afetado e ressentido em relação à criança que foi. Enxergamos isso em seu rosto.

Mais que ser mera interpretação da obra, dizendo quais são os sentimentos exatos do narrador ao narrar, a escolha de usar o narrador como personagem visível permite que se pense (e veja), em alguma medida, a diferença entre o velho rabugento, cheio de complexos, e o menino bobo e empolgado que é o jovem Bento, recriando visualmente a distância entre os dois tal como era apresentada no romance. Trata-se de uma maneira de lidar com tensão entre o narrador e o personagem que é criada no romance através da narrativa.

Por fim, pela ideia de teatro foi possível substituir o texto por encenações sem fala que servem uma representação de certos capítulos ou sentimentos e encenam certos capítulos, seja de maneiras não-narrativas, seja materializando metáforas, ou mesmo de maneiras visualmente incoerentes que transmitam sensações e ideias que concordem simbolicamente com o sentido da passagem textual. Bento e Capitu dançando ou se olhando amavelmente expressa muito bem a vida feliz que levam — não é preciso dizer mais nada. Há até mesmo a cena que ilustra este texto, em que o casal está separado por uma fina parede desenhada com giz: que importa o muro se ele separa tão mal os sentimentos de Bento e Capitu?

Um diretor menos competente que Luiz de Carvalho representaria somente aquilo que pudesse ser transformado em fatos e, de modo catastrófico, tornaria Dom Casmurro uma obra impessoal, em que importam as ações e a realidade das coisas… Aliás, desconfio que isso já foi tentado… Não só no cinema…

“O resto deste capítulo é só para pedir que, se alguém tiver de ler o meu livro com alguma atenção mais da que lhe exigir o preço do exemplar, não deixe de concluir que o Diabo não é tão feio como se pinta.”

Capítulo XCII: O Diabo não é tão feio como se pinta

Pessoalmente, considerei Capitu uma boa releitura de Dom Casmurro.

Ao exagerar o lado sentimental do livro a série produz algum enfado, mas cria um espetáculo visualmente lindo que facilmente conquista o espectador. Ademais, seu caráter teatral recria ao seu modo algumas das tensões principais do livro, algo difícil de ser concebido para uma produção audiovisual.

Creio que não cumpra pensar Capitu como uma adaptação definitiva ou esperar que ela seja algo mais que uma boa obra, portanto, sugiro que quem deseje assisti-la não projete expectativas muito fortes nela. Sentem-se confortavelmente sobre o sofá e a encarem como uma boa releitura; garanto que desfrutarão felizes daquilo que um trabalho bem feito e uma montanha de dinheiro podem fazer pelo bem dos apreciadores de arte.

--

--

Bruno de Oliveira

Sou programador, mas ocasionalmente escrevo sobre as humanidades. Também já arrisquei algo no mundo dos podcasts: https://anchor.fm/aletraquefalta