The Boys depois de duas temporadas

Bruno de Oliveira
4 min readJul 19, 2024

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1. Fiz minha segunda tentativa de assistir The Boys e, com muito custo, fui até a segunda temporada.

Na tentativa anterior, eu desisti antes dos dez primeiros minutos nos quais a série nos apresenta, em poucas cenas, dois personagens e uma tragédia sobre um deles. Aparentemente, era para eu me importar com o que lhes ocorre, mesmo sem saber direito quem eles são, que história compartilham ou o que a relação deles significa. Na época, não aguentei um roteiro tão ruim e desisti.

Agora, a segunda vez, insisti e segui até o fim da segunda temporada, mas foi preciso parar de me importar com qualidade do que eu estava assistindo.

2. The boys é (muito) ruim em quase tudo: roteiro, história, resoluções, personagens… A própria tragédia que dá início à série perde sentido gradativamente, sendo que mesmo as coisas que a série possui de interessante não ganham profundidade e, com o tempo, entediam.

Para explificar, tomemos o caso dos personagens: a série tem um (e só um) personagem, o Homelander. Ele apresenta um comportamento particular, uma moral própria, conflitos e outros bons elementos que o tornam realmente interessante. Porém, na maior parte do tempo, serão outros indivíduos a ocuparem o tempo em tela. E esses outros mal são personagens, estando mais para recursos de roteiro, bonecos de carne e sangue cujo comportamento depende das necessidades da história.

3. A despeito disso, a crítica política contida em The Boys é interessante, por mais local que seja. A série não esconde em nenhum momento ser uma espécie de Independence Day às avessas: existe o povo estadunidense, situado no centro do mundo, da História e da série; e existem outros povos, cujas particularidades não importam. Com isso, os objetos de crítica são sempre os grandes players da política estadunidense: as igrejas protestantes, as grandes corporações, a extrema direita xucra, a indústria do entretenimento, a ciência de dados servindo à política, as celebridades etc. É possível internacionalizar um pouco essas críticas, é claro, e penso que seja exatamente o que a série sugere que seja feito, isto é, que até “outros povos” consigam se reconhecer nas questões atuais do “mundo“.

Como disse, essa crítica tem, de fato, bons momentos, mas ela raramente se aprofunda e, por conta disso, ganha um tom involuntário de caricatura que faz essa crítica perder qualquer tom mais universal e se tornar somente mais uma perspectiva política entre outras.

Tomemos alguns exemplos. Aqui vai um: ao criticar as grandes corporações, a série as caracteriza como grupos formados por pessoas absolutamente vis, com planos malvados e sem qualquer sinuosidade moral; um verdadeiro QG de vilões. Bem, creio que esse tipo de caracterização funcione bem como uma sátira ou algo do tipo, contudo, a série adota essa caracterização como um desvelamento da realidade. É como se estivéssemos tendo um acesso privilegiado aos bastidores dos poderes que controlam o mundo e, entretanto, tudo o que existisse lá fosse um conjunto de vilões em torno de uma mesa. Outro exemplo: embora a série seja certeira quando trata de apropriação de bandeiras sociais pelas empresas, ela simplifica a sociedade a tal ponto que essa crítica perde o sentido. As bandeiras sociais estão lá, mas a série as desvincula das lutas populares, como se fosse possível existirem pautas sociais sem que, ao mesmo tempo, existissem problemas sociais e pessoas colocando-os em pauta. De um lado, é mostrado o quanto o marketing ganha ou perde com palavras e slogans como feminismo ou “vidas negras importam”, de outro, nenhum espaço é dado para as pessoas e problemas que ensejam tais coisas. É como se a luta LGBT ou a pauta negra fossem basicamente uma marca em que as pessoas se reconhecem e que as empresas manipulam, e só. Luta real por direitos civis? Tais coisas não existem nesse universo, apenas reclamações sem qualquer raíz histórica.

No fundo dessa simplicidade toda reside uma perspectiva bastante rasa das coisas: o povo é gado, a mídia é corrupta, os líderes são mentirosos, a crítica política é iludida, as corporações são más e… É só. Não há um capítulo dois a ser desenvolvido sobre nenhum desses temas, nenhum aprofundamento a ser feito ou tom de cinza a ser acrescentado. Tudo o que nos resta é viver como gado, ceder às corporações ou pegar em armas, como os protagonistas da série fazem. Bem, mas nem no que diz respeito aos EUA esse tipo de perspectiva é válida, quanto mais no que diz respeito ao resto do mundo.

Graças a isso, depois de duas temporadas, eu não aguentei mais. Mesmo ignorando os problemas de roteiro e desenvolvimento que continuavam se ramificando, a crítica de The Boys nunca excedia limites bastante específicos que, tão logo identificados, tornam-na trivial.

Penso que se a série fosse uma sátira, ela poderia assumir a caricatura que faz dos EUA e rir de si mesma simultaneamente; todavia, parece-me que ela se leva bastante a sério e, pelo que li, o público também. Neste caso, acho que o próprio cinema americano produziu coisas bem melhores recentemente, como Não olhe para cima ou House of Cards, produções com que fiquei bem feliz de usar meu tempo. The Boys tem seus momentos, mas até no que acerta está bastante errado.

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Bruno de Oliveira

Sou programador, mas ocasionalmente escrevo sobre as humanidades. Também já arrisquei algo no mundo dos podcasts: https://anchor.fm/aletraquefalta