A última verdade

Allana Dilene
21 min readApr 4, 2020

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No que parece ser há muito tempo atrás, especialmente em tempos de quarentena, joguei uma mesa, Luar da Lâmina Lúgubre. Transmitida via streaming pelo RPG Notícias, narrada por Thiago Rosa, e contando com as ilustres presenças de André Soares, Bruna Nora e Stephan Martins. Na primeira sessão, foi pedido que nós improvisássemos, cada um de nós, uma “verdade”: um evento que teria acontecido anteriormente ao grupo e que teria ajudado a construir os laços que os uniam até então. Pega de surpresa, não pensei nada, mas prometi que traria isso em momento posterior.

E aqui se segue a história.

Notas suaves dedilhadas sem uma melodia específica ecoavam no aposento compartilhado na Escudo Dourado. Com as fivelas das botas afrouxadas, Tani’lah se recostava no sofá, esperando a sua vez de tomar banho. Invariavelmente, seria a última da fila, tudo por conta do seu péssimo hábito de apostar — e perder.

Revirando os olhos, a meio-elfa de pele amarronzada praguejou mentalmente a má sorte que os acompanhou nos últimos dias. Vieram a Beregost supostamente encontrar um outro parente de Lauriel, o jovem prodígio que jurou proteger, mas que em geral se virava muito bem sozinho. E por um único dia de atraso, um único maldito dia, o tal parente misterioso fora vaporizado por uma pessoa desconhecida e agora jazia na forma de pó, em uma latinha de metal com ornamentos vagabundos. No caminho haviam sido atacados, resultando na morte de um cocheiro que, por acaso, é parente da chefe da guarda na cidade. Porque Tani’lah e os seus sempre tinham uma relação muito positiva com representantes da lei…

- Será que se fizer um chá das cinzas é possível ter uma revelação mística do que ele iria nos dizer? — pensou alto enquanto dedilhava o alaúde desordenadamente.

- Tani, desse jeito você vai fazer meus tímpanos sangrarem. Não dá pra tocar alguma coisa que nos ajude a descansar? — Lauriel, meio-elfo como ela, mas portador do sangue nobre Dracoseir. Loiro, sorriso brilhante, porte altivo, e ela já conhecera crianças de cinco anos menos ingênuas que o rapaz. Provavelmente o último da linhagem, um bastardo outrora exilado da família, promovido à última esperança. Ela, uma sobrevivente situacional da queda da casa que jurou proteger, a responsável por mantê-lo vivo. Não poderia pensar em uma combinação pior de fatores.

- Primeiro, eu era paga para proteger sua família, e não para cantar canções de ninar. Mas meus honorários estão atrasados há tanto tempo que até meu alaúde tá rangendo de desafino.

- Ah, mas bem que você podia tocar alguma coisa para nos distrair, não é? — a voz angelical vinha da moça de pele azulada, que nesse momento fazia a água fervilhar na tina pelo uso de seus feitiços. Jay gostada da água quente, pois dizia que a ajudava a relaxar. Do outro lado do biombo, Tani’lah podia ouvir o borbulhar. — Como aquela música da briga na taverna…

- Ou aquela que você não terminou, sobre quando deixamos Yartar. É uma boa história.

Se não fossem os cabelos esbranquiçados, curtos muito rentes à pele cor de ônix, Tani’lah poderia ter dito que a voz vinha de uma forma incorpórea. Nullae, eternamente incomodada pelas fontes de luz do aposento, mantinha-se recostada a um canto, quase imperceptível. Ela pouco falava, mas quando o fazia, tinha o tom de quem vivera vidas demais no período de uma única existência.

Era um pedido difícil de negar.

- Bem, nem de perto ela está pronta, mas a história, porém, todos vocês conhecem…

- Então, o plano é simples: fomos contratados para recuperar informações sensíveis, de posse do mercador de tecidos, que está extorquindo o seu concorrente, que também é o nosso contratante. Jay e Nullae, vocês são silenciosas e discretas, podem entrar na casa do sujeito, mas pelo amanhecer alaranjado de Lathander, não batam em ninguém, sim? Se forem vistas ou descobertas, voltem correndo.

Nullae assentiu, levantando o capuz sobre o rosto e fazendo seus traços sumirem sob as sombras. Apenas quem olhasse muito atentamente poderia notar o breve lampejo de olhos vermelhos. Jay fez uma moeda deslizar para cima e para baixo nos seus dedos, mantendo no rosto um ar pensativo. Os chifres, que brotavam pouco acima das sobrancelhas bem marcadas pela maquiagem, emolduravam-lhe o rosto e pareciam complementar a expressão desconfiada.

- Tani, você sabe que há guildas em Yantar, e esse é um destino comum para aventureiros e companhias mercenárias. Por que esse sujeito contratou a gente, recém-chegado? Se ele vem sendo extorquido…

- Porque certamente essas informações sensíveis são muito… sensíveis? — arriscou Lauriel, que de repente arregalou os olhos, como alguém que acabasse de fazer uma grande descoberta. — Será que são cartas de amor? O mercador pode estar tendo um caso e-

- Ou ele só quer nos contratar porque sabe que vamos embora, e provavelmente nunca voltaremos para este buraco repleto de guardas de capa vermelha — interrompeu Tani’lah, recusando-se a reconhecer a verdade nas palavras de Jay. — Ele obviamente quer discrição, e isso nós podemos prover. Se ele contrata alguém da guilda, como ele poderia se sentir seguro? Como garantir que isso não vai voltar para morder o rabo dele?

Jay deu de ombros com a elegância e indiferença de um gato e levantou o capuz de seu manto, aceitando o plano. Com um olhar, Tani’lah indicou a posição que Lauriel deveria tomar: sutil e discreto como um tarrasque despertando, ele seria um bom vigia, e se necessário fosse, uma excelente distração. Tani’lah ficaria um pouco mais afastada, de olho da outra entrada, posando de bêbada após fim de festa, papel que não exigia nada de sua capacidade interpretativa. Convenientemente, um banquete era celebrado no Salão da Baronesa de Yatar, o que deveria servir como a janela perfeita para o pequeno furto.

Semanas depois, nenhum dos quatro poderia imaginar as verdadeiras proporções daqueles eventos.

Enquanto Tani’lah tentava enrolar uma dupla de Escudos Vermelhos, ela pôde ouvir alguma confusão vindo da casa a ser furtada. Desvencilhou-se sem muita dificuldade e se colocou a correr, aproveitando que nenhum dos guardas tinha desembainhado suas espadas, mas foi surpreendida por grunhidos e sons de batalha no caminho, vindos de onde Lauriel deveria estar. Claro que ele iria dar combate, ao invés de ajudar os outros.

Praguejando em todos os idiomas que conhecia, a meio-elfa desviou o caminho, sacando a arma enquanto isso. Chegou bem a tempo de aparar um dos golpes vindos na direção do ombro de Lauriel, e costas a costas, os dois ficaram trocando golpes com membros da guarda.

Havia algo de estranho no porte daqueles homens: as armaduras eram leves demais; a postura, a movimentação, e as posições que eles tentavam assumir. Um sempre observava o outro, tentando ganhar qualquer vantagem sobre o outro. Eram rápidos e muito bem treinados para guardas citadinos. E não ajudava o fato de que Tani e Lauriel não buscavam ativamente matar seus oponentes, embora o contrário não parecesse verdade.

Aos dois primeiros que abordavam Lauriel se juntaram os que seguiam Tani’lah, e a desvantagem numérica logo começou a pesar contra os dois. Lauriel brandiu a espada, e invocando o poder dos justos na linguagem dos dragões, desferiu um golpe imbuído de poder, que derrubou um dos que o cercava. Tani’lah aproveitou o choque de um dos que vinha em sua direção. Estendeu o braço em uma estocada, e assim, conseguiu antecipar a movimentação do segundo, que não queria acertá-la, mas sim o rapaz. Era um ataque carregado de malícia, e isso chamou-lhe a atenção. Adotou uma postura defensiva e bradou:

- Lauriel, mais um na sua esquerda! Escudo!

Bem a tempo, o meio-elfo posicionou a espada, aparando o golpe e devolveu o ataque, fazendo a lâmina voltar brilhando de sangue. Mal teve tempo de se esquivar de uma outra investida quando viu, com o canto dos olhos, uma forma escura sair flutuando de uma janela. Os dois, aliviados, receberam as companheiras com breves sorrisos. Jay, com graciosidade, saltou da janela e veio na direção dos companheiros.

- Animem-se, companheiros! Não sabem que o Sorriso da Senhora se derrama sobre nós? Que ela torne nosso aço mais forte que as armas de nossos inimigos!

Inebriada pela companhia e pelas bênçãos de Tymora, a meio-elfa avançou, estendendo o braço em um golpe que deveria ter sido certeiro. Seu oponente, porém, conseguiu aparar o ataque, e então Tani’lah vislumbrou seu erro: com a guarda aberta, não teve tempo de impedir o golpe de uma segunda lâmina, menor e reta, abriu um talho na altura do abdômen.

Nullae rapidamente se posicionou ao lado do guarda, brandindo a lâmina quebrada. Sem conseguir antecipar a movimentação da drow, o homem grunhiu em dor, e a força pareceu esvair junto com o sangue. Tani’lah aproveitou a distração e gritou para Lauriel:

- Ô loirinho, à minha direita!

Assumindo a posição muitas vezes ensaiada, o herdeiro de cabelos alourados moveu-se com fluidez, usando o escudo para encobrir sua saída, enquanto a meio-elfa recuava, garantindo-se na cobertura do companheiro. O cerco, porém, não durou muito; com os ataques sincronizados entre Nullae e Lauriel, os homens de capa vermelha caíram um a um.

- Não podemos demorar por aqui — clamou Nullae, o tom imperioso. — A cidade pode estar adormecida e as figuras de poder, distraídas, mas havia outros lá dentro. Eles estavam nos esperando.

- Eu odeio ser a pessoa que diz isso, mas… que eu avisei, avisei.

Os olhares de Jay e Tani’lah se encontraram, e a espadachim baixou os olhos castanhos, reconhecendo a derrota. Com o orgulho e o corpo feridos, embora o maior dano tenha sido no seu ego, quis desconversar:

- Afinal, o que tem de tão importante nessa informação, que tem gente disposta a matar por isso?

À pouca luz, os quatro encaravam o envelope. O conteúdo destrinchava, nos códigos da ladinagem que Jay conhecia muito bem, um contrato de assassinato: Kaidrod Palyr, também conhecido como o amante da Baronesa das Águas. No fim, de maneira muito distinta, o relevo em cera moldada por um sinete revelava o selo da Mão de Yartar, a guilda de ladinos.

- Bem, mas você não disse que na verdade estava pedindo pela minha ajuda e que eu impedi que seu nariz fosse quebrado pela segunda vez! — protestou Lauriel, os longos cabelos enrolados em uma toalha; afinal, sua mãe havia há muito ensinado que dormir de cabelo ensopado poderia deixá-lo resfriado.

- Se quiser, pode vir contar a história, minha garganta já está seca.

- Shh, eu adorei a frase que ela me deu! Cala a boca e deixa ela terminar! Nullae, pode pegar um pouco de vinho para nós?

Naquela noite, os quatro se enfurnaram no mesmo quarto de estalagem. Não que apreciassem tanto a companhia uns dos outros tão animadamente, mas sim porque não dariam a chance de serem de novo emboscados em separado. Se a Mão de Yartar estava envolvida, eles certamente iriam tentar terminar o serviço.

- Sabemos que paira sobre a Baronesa a suspeita do assassinato de seu amante. E bem, a mulher não faz um bom trabalho a seu favor: metade dos líderes de guilda a detesta, enquanto a outra metade não morre de amores por sua pessoa.

Jay compartilhava as informações conseguidas com o clero de Tymora, que o fez de bom grado, mesmo que isso pudesse colocá-los em maus lençóis com a Baronesa. Há de se convir que, a não ser em situações muito específicas, nobres detestam ver seus nomes associados a tentativas de assassinato. A tiefling de pele azulada tinha a capacidade ímpar de se mesclar ao núcleo criminoso de qualquer lugar pelo qual passasse. Sentada em cima de um baú de madeira, ela embaralhava nervosamente um baralho de cartas, fazendo, quase como um reflexo, com que algumas desaparecessem entre sua manga.

- E por que não elegem outra pessoa? Aqui eles escolhem seu governante, não? — perguntou Lauriel, esparramado em uma cadeira sem braços.

- Porque eles não querem ir contra as próprias leis. Os barões são eleitos, mas é um cargo que vale para a vida toda. Se eles simplesmente a depuserem, isso será usado contra um deles no futuro, entendeu? — depois de uma pausa, a clériga acrescentou. — Eu sei que você às vezes é meio lento, então se quiser eu posso falar mais devagar.

- Mas não podemos simplesmente sentar em cima dessa informação. Se ela está sendo acusada injustamente, e a guilda sabe disso, eles têm interesse em tirá-la do poder. Precisamos trazer essa história à tona. Querida ou não, ela é inocente desse crime.

Nullae falava, os olhos brilhando de excitação. A drow era uma companheira leal e confiável, mas seu temperamento passional já os colocaram em problemas mais de uma vez. Especialmente quando ela julgava que alguma causa era válida de sua atenção: se havia a remota possibilidade de algo ser feito, ela levaria todas as consequências adiante.

- Mas isso vai colocar um alvo enorme nas nossas costas, Nullae — arrazoou Jay. — Eles são, se não ficou claro, a guilda de ladrões, e agora, de assassinos. Não está claro que estaremos nos colocando em grande risco?

Enquanto seus companheiros discutiam, Tani’lah só pensava que queria encher a cara de cerveja barata — que é tudo o que poderia pagar no momento — deitar, dormir e acordar com uma ressaca lamentável. Mas não podia deixar que os ânimos se aflorassem, porque eventualmente cada um deles ia agir por conta própria, com as melhores das intenções em mente. E sua lista de obituários com “boas intenções” na causa mortis já era longa o bastante.

- Vamos entregar esse material diretamente à interessada, nossa cara baronesa. Tudo o que precisamos é sobreviver ao dia de amanhã, pois estejam certos de que eles virão atrás de nós novamente.

- E como vamos chegar até ela? Não acha que a guilda terá pessoas infiltradas nos criados dela a essa altura?

- Bem, haverá um baile de máscaras amanhã, não é mesmo? — a meio-elfa sorriu, os dentes brancos se destacando na pouca luz do quarto. — Vamos agir bem debaixo do nariz deles.

O amanhecer veio, indiferente às palavras que aquele grupo de pessoas tão notáveis sussurraram no resto da noite. As Lágrimas de Selûne acompanharam a lua em seu cortejo, dando lugar aos dedos rosados do amanhecer, como um palco que se descortina para o próximo ato. Todos dormiram pouco e em turnos alternados, e cuidaram dos preparativos necessários.

Ainda durante a manhã, um rapaz esbelto, de cabelos longos e ondulados, procurou o templo de Tymora para deixar uma generosa doação, e fazer um pedido: documentos valiosíssimos deveriam ser mantidos sob a guarda do templo, pois vidas importantes dependiam disso. No peito, o jovem carregava o brilho dourado do rosto da Senhora Sorte, e aquilo serviu como credencial poderosa o bastante para que o acólito do templo não fizesse mais perguntas.

Do outro lado da cidade, Lauriel usava da extensão do seu sorriso, convencendo o alfaiate a improvisar roupas de gala para esta noite. Não se sabe se o sucesso foi produto puro do charme do jovem meio-elfo, um uso bem disfarçado de encantamentos, uma combinação sagaz dos dois ou se o alfaiate só desistiu de argumentar contra a insistência do jovem. Em sua defesa, o herdeiro de uma família dizimada não se fez de rogado em cobrir o homem de sugestões e combinações de tecido.

Movendo-se por Yartar como uma sombra, Nullae se alternava entre seguir a movimentação de Jay em diferentes disfarces, todos combinados previamente, e vigiar Lauriel. Suas instruções eram simples, embora o trabalho fosse difícil — garantir a sobrevivência sua e dos dois amigos. Após entregar uma cópia falsa do contrato no templo de Tymora, a tiefling assumiu outra aparência, a de uma senhora meio corcunda com uma bengala, e se misturou à feira. A andança tinha dois motivos: implantar rumores sobre o que aconteceria à noite mas, principalmente, ouvir o que o mercado tinha a dizer sobre o ataque dos guardas.

De maneira pouco surpreendente, não se falou nada sobre os “guardas”: nada sobre um grupo de aventureiros desordeiros que teriam sido colocados no seu lugar, ou sobre os homens que teriam sido mandados para um curandeiro. Assim, a clériga teve a certeza de que eles estavam tentando fazer a coisa parecer “assunto oficial”, e desistiram. Pelo menos, dessa vez, não teriam a lei diretamente contra eles.

Enquanto isso, Tani’lah se dirigia ao Palácio das Águas, um suntuoso prédio construído no centro da cidade. Contando com três andares acima do térreo, janelas altas davam para o Afluente Risonho, permitindo uma boa vista de quase toda Yartar. O térreo contava com o salão de audiências, agora fechado para decoração do baile, e várias salas laterais, onde os negócios importantes eram discutidos entre diferentes mercadores. Os andares superiores abrigavam convidados pessoais da Baronesa Nestra Ruthiol, e o mais alto, sua residência particular. Para uma cidade afundada em tantas intrigas e desavenças internas, era uma construção impressionante.

Com desenvoltura, a meio-elfa falou com os secretários, subornou-os e lhes passou um envelope fechado. Garantiu que era um assunto de extrema importância, e apenas os olhos da Baronesa poderiam saber as entranhas do envelope. Tani’lah não tinha ilusões de que o envelope chegaria intacto à governante, e tinha honestas dúvidas se ele sequer seria entregue. Mas tanto valia a tentativa quanto sua vinda ao lugar serviria como um reconhecimento do terreno, além de outros propósitos práticos. E era um claro desafio à Mão: estou me assegurando de que as pessoas importantes saibam o que vocês fizeram.

Quanto ao contrato original, se tudo desse certo e os quatro sobrevivessem, seria entregue hoje à noite. Mas cada um deles iria à festa munido de, pelo menos, uma falsificação praticamente indistinguível a olho nu. Cortesia da Senhora Sorridente.

Trajadas com os vestidos de gala que seus rendimentos de aventureiras podiam pagar, além do melhor sorriso de Lauriel, as três mulheres se espalharam no baile. O meio-elfo trajava orgulhoso uma camisa longa, vermelho-rubro, com brocados nas mangas e gola que brilhavam em tons de dourado que pareciam brilhar em diferentes tons conforme ele se movia pelo salão. No rosto, o jovem imberbe usava uma vistosa máscara de dragão, com longos bigodes armados.

Aquele era seu primeiro baile de máscaras, e, embora ele tivesse dificuldade de admitir até para si mesmo, ele não estava exatamente familiarizado com todos os protocolos. No entanto, se havia algo no qual ele era especialista, era inspirar confiança nas pessoas. Em parte, porque acreditava piamente no que dizia — o jovem Dracoseir era um otimista incorrigível. Quando soube da parte que lhe cabia no plano, aceitou por inteiro, especialmente porque não seria um papel difícil de cumprir: chegar ao baile, conversar com as pessoas, aproximar-se da Baronesa, entregar-lhe sua cópia e chamar a atenção para si.

Jay lhe entregara uma das falsificações do contrato, que ele guardava em um bolso oculto interno à camisa de seda fina. Colocando-se como um alvo claro, a sacerdotisa esperava que ele seria um dos primeiros alvos dos infiltrados da guilda, fato para o qual ele acreditava estar pronto o bastante para revidar. Enquanto caminhava a passos largos, cumprimentou todos que lhe passaram pelo caminho, sorridente e confiante, certo de que suas companheiras iriam imiscuir-se e cumprir sua parte do plano. Ou assim ele esperava.

Nullae não era exatamente estranha a rituais sociais, mas havia abandonado aquelas convencionalidades há tanto tempo que entrar no salão foi um choque sensorial. As muitas luzes decorativas, entre lustres, velas, lanternas e candelabros a desnortearam momentaneamente. Pelos cabelos prateados de Eilistraee, se humanos não conseguiam enxergar no escuro, por que diabos davam festas à noite? As luzes, somadas à maior quantidade de pessoas que ela deve ter visto juntas em um único lugar fechado nas últimas dezenas de anos, à profusão de cheiros que vinham de fontes diferentes — perfumes, tecidos novos, chão encerado, pratos sendo servidos — deixaram-na por uns instantes travada na porta de entrada. Foi quando Jay deu-lhe o braço com um gesto suave que ela voltou a si.

- As pessoas da superfície podem ser meio assustadoras às vezes, mas não se preocupe. Você está indo muito bem.

A drow acenou em silêncio, fazendo as dobras do seu vestido farfalharem. De novo, por que as pessoas deveriam vestir roupas que faziam barulho? Ao menos Lauriel conseguiu montar algo que a deixasse confortável: longas mangas que vinham justas nos braços, abrindo-se no final, permitiram seus movimentos marciais, se necessário fosse. Discretos brocados prateados desciam pela saia que arrastava levemente no chão, brilhando suavemente no tecido branco-gelo, assemelhando-se a longos cabelos dançando ao sabor do vento. Sem anáguas ou espartilho, a forma geral de Nullae era elegante e discreta, e se havia qualquer excesso, era na máscara de jaguar, decorada com pequenas lantejoulas prateadas.

- Vocês têm certeza de que eu devo carregar o original? — sussurrou a drow conforme entravam no lugar. — Eu não sei se vou conseguir chegar à mesa da baronesa sem ser interceptada.

- Essa é a minha preocupação, Nullae — tranquilizou-a Jay. — Não se preocupe, durante a dança, eu irei até você e farei a troca.

- Aliás, se me permite dizer, você está linda.

Despedindo-se com um sorriso, a tiefling se afastou da amiga, sentindo-se levemente culpada por segurar a mentira por tanto tempo. Apenas ela e Tani’lah sabiam onde estava o documento original, e era essencial que, para as coisas funcionarem, os envolvidos acreditassem no que estavam dizendo e fazendo. No seu íntimo, porém, sabia que os grandes golpes só funcionariam se poucas pessoas soubessem do todo do plano. Dando uma leve rodopiada para se esquivar de um garçom, Jay teve que concordar com a amiga: estava linda.

A máscara era sólida, presa na testa por uma finíssima tiara prateada. Vinha como uma peça única até a altura do nariz, onde descia em duas pontas que lhe emolduravam o rosto de pele azulada. Ela, claro, conseguia ver muito bem ao seu redor, pois o efeito opaco era produto de um leve truque concedido por Tymora a seus devotos. Seus chifres subiam em curvas suaves, deixando o cabelo escuro cair livremente nos ombros.

Enquanto caminhava com graciosidade, as diferentes camadas do vestido se moviam, acompanhando-a. Uma gola aberta, com detalhes bordados e decorados com pequenas pedras sem valor comercial, descia-lhe até quase a cintura, deixando ver os diferentes tons de azul do tecido que revestia a parte interna do vestido. As mangas se alongavam em cortes abertos e cheios de movimento, assim como a saia, que tinha pregas estratégicas que davam volume e disfarçavam a cauda pontiaguda, oculta em meio aos cortes de tecido.

Com os olhos, a tiefling procurava Tani’lah, e não tardou a encontrá-la próximo à mesa do bar, aparentando beber animadamente com um dos convidados, um homem de aparência completamente esquecível. Parte de si quis repreender a amiga — Jay sabia muito bem que Tani se entregava facilmente aos excessos da bebida — mas tinha que confiar que ela iria cumprir a sua parte. Acenou discretamente para ela e seguiu para a sacada designada.

Tani’lah respondeu ao aceno empunhando uma taça, o que seu recém-conhecido tomou como um encorajamento para um brinde. Diferente de Lauriel, ela achava difícil cumprir alguns papéis, como aquele em que ela fingia se importar com as vantagens que aquele sujeito deveria estar listando sobre si. Mas a meio-elfa viveu tempo o bastante entre mercenários e afins para calcular que, em geral, ele seria inofensivo. Se fosse um agente da guilda, estaria lá para segui-la e garantir que ela não conseguisse se aproximar dos outros, talvez atacá-la. Se fosse um convidado ordinário, ela o dispensaria quando fosse conveniente e seguiria seu caminho.

Metida em um vestido de algum tecido brilhante verde, Tani’lah não conseguia deixar de pensar que preferia estar amarrada em outras circunstâncias mais agradáveis, pois amarrada contra sua vontade é como ela se sentia com aquele espartilho. Do pescoço, para dispensar as mangas, vinha um longo lenço no mesmo tom de verde, dobrando-se sobre os braços, mas em algum tecido mais transparente, preso com um grande broche dourado, com motivos de asas de dragão entrelaçando-se. Onde diabos Lauriel tinha arrumado aquilo, que apesar dos excessos, era tão bonito?

Da cintura, uma outra faixa de um verde escuro marcava a saia, selada com um outro broche com motivos de asas dracônicas. Todos os limites traziam brocados dourados, que contrastavam com a pele marrom da meio-elfa. Apesar do espartilho, as pernas e braços tinham pleno movimento, de forma que, se precisasse correr, Tani’lah não teria dificuldade. Dificilmente ela faria aquilo em voz alta, mas tinha que admitir: o herdeiro tinha bom gosto.

Fazia muito tempo que ela não pisava em um baile formal, e a verdade é que tudo aquilo fazia subir um gosto agridoce. Com o canto dos olhos, viu alguns guardas posicionados, e se imaginou no lugar deles, usando a tabarda do dragão dourado e um chapéu emplumado. Sentiu uma imensa falta das pessoas que perdeu, e o peso imaginário da responsabilidade de manter o herdeiro Dracoseir vivo fez seus ombros derrearem levemente para frente.

- Perdão, milady, está tudo bem? Minha companhia é tão tediosa assim?

- Oh, não se preocupe, já estive em companhias mais tediosas — a meio-elfa sorriu, os dentes brancos aparecendo por baixo da longa máscara de borboleta. — Que tal me acompanhar até a sacada, onde podemos conversar com mais… privacidade?

Não tardou para que a anfitriã Nestra Ruthiol aparecesse, descendo as escadas de seus aposentos pessoais. Agradecendo a presença de todos, proferiu um breve discurso em sua voz levemente rouca, dando início às festividades formalmente. Uma mulher alta e magra, tinha o rosto anguloso e marcado. Trajava um longo vestido violeta, com bordados prateados e joias incrustradas. O cabelo com traços grisalhos vinha em um complexo penteado, decorado com um par de finíssimas correntes com pedras nas pontas. Apesar do sorriso educado, os olhos tinham um quê de ferinos e inquisidores, e foi com o alívio de muitos que o silêncio se rompeu e a música recomeçou.

Cumprindo sua parte do acordo, Lauriel aguardou que os bajuladores de plantão fossem dispensados e se apresentou à baronesa, convidando-a para uma dança. Olhando-o de cima a baixo, curiosa mas sem se dar ao trabalho de fingir surpresa, a baronesa consentiu. Aquele era o sinal que tanto os músicos quanto os quatro amigos precisaram: teria início a dança formal com troca de pares.

Como um grande truque de prestidigitação, aquele em que você tem que acertar sob que copo está a bolinha, a troca de documentos teve início. Com cortesia, Lauriel fez escorregar sua cópia para uma das mangas do vestido da baronesa, enquanto Jay se afastava do seu par, — uma jovem que parecia completamente ignorante do que estava acontecendo — se aproximava de uma surpreendentemente desenvolta Nullae e trocava seus documentos. Muitos passos foram e voltaram, com pedaços de papel sendo discretamente surrupiados, ora por agentes infiltrados, ora pelos aventureiros. Certamente nem o mais atento espectador, que soubesse qual era o copo que inicialmente escondia a bolinha, teria conseguido acompanhar as tantas idas e vindas. Tani’lah, de maneira pouco surpreendente, percebeu que terminava a dança com o tedioso de aparência esquecível, com muito cuidado retirou a cópia que ela trazia dentre as pregas do vestido.

- Sabe, em outra ocasião, eu até teria gostado de você.

- Que pena, eu não — respondeu a meio-elfa.

Aquela deve ter sido a resposta errada. Quando tentou se desvenciliar, o homem a apertou na cintura, e ela sentiu uma pontada fina e aguda. Filho de uma banshee raivosa, veneno? Que merda era aquela? Que não fosse sangue de wyvern, Lathander misericordioso, que não fosse… Uma dor aguda irradiou do ponto de contato — uma agulha, talvez? — e ela sentiu um peso enorme nas pernas e braços, que queriam fraquejar. O homem, fingindo espanto, quis segurá-la, como alguém que acode uma dama desfalecida, mas Tani’lah mordeu a língua, praguejou e o empurrou, resistindo à inconsciência do veneno.

- Saiba que já pegamos a cópia que foi confiada ao templo de Tymora.

- Então já deve saber que aquela era falsa. GUARDAS! — gritou a meio-elfa, sentindo a voz embotada, lutando para se manter acordada. — Esse homem me atacou, e… e ainda estragou meu vestido!

A movimentação não passou despercebida pelos colegas, que agiram conforme acordo. Jay fez a última troca de documentos, assegurando-se que a baronesa continuasse com o verdadeiro, conforme o burburinho começava a aumentar. O agente não deveria contar com tamanha atenção, e tentou amainar a situação desacreditando a acusação. Apenas com os lábios, Tani’lah pediu que Lauriel permanecesse junto da baronesa, o que ele estranhou mas obedeceu sem questionar. Quando um dos guardas chegou mais perto, a meio-elfa fingiu um desmaio de maneira tão teatral que convenceu pouca gente, mas teve o efeito pretendido: distrai-lo enquanto ela pegava a arma do guarda.

Pequenas acusações e imprecações começaram a ser proferidas, e uma confusão começou a se instaurar no lugar. Um grupo de homens de capa vermelha se aglomerou em volta da baronesa Nestra e de seus convidados mais próximos, protegendo-os. Uma mulher gritou no fundo do salão, quando alguém passou por ela apressado. Nullae sentiu o esbarrão de alguém, e mais por reflexo do que por intenção, revidou com uma cotovelada no nariz, o que levou um homem ao chão, sangrando. Jay, falsamente distraída, moveu-se de lado e deixou o pé para um dos guardas cair, fazendo o estardalhaço de armadura de metal no chão. Golpes começaram a ser trocados e vestidos a serem estragados, até que, cortante, a voz de Nestra Ruthiol cortou o salão.

- Chega! Parem já com essa palhaçada! Esta, que era para ser uma noite de celebração e confraternização, chegou ao fim. O baile acabou, vão embora. Você — ordenou para o guarda, que só então percebeu onde estava a sua arma — contenha esta mulher e leve-a para as salas laterais. Eu não vou admitir tamanha insolência sem punição.

Resignados, vários convidados começaram a sair, reclamando baixinho sobre o estado das suas roupas, ou sobre a comida, que nem estava assim tão boa para terem saído de casa. Outros tremiam de excitação, imaginando o que de fato teria acontecido. Tani’lah se deixou levar pelo guarda, ainda trocando um último olhar com o agente que a atacou. Deu uma piscadela e, ao chegar na sala onde ficaria o resto da noite presa, desabou.

- Então o original estava comigo o tempo todo? — perguntou um Lauriel levemente ofendido. — E por que eu não poderia saber?

- Porque você ia agir como se soubesse, e aí nosso plano iria por água abaixo — explicou Jay, retirando a máscara e bebendo uma taça de vinho em goles generosos.

- Então… vocês duas esconderam o contrato à plena vista, me fazendo acreditar que eu estava com o original? — indagou Nullae.

- Sim, porque se eles notassem algo de estranho em você, você poderia segurar sozinha até que chegássemos para ajudar. Mas eu não contei que o feladap-

- Modos, Tani! — repreendeu Lauriel. — Estamos diante da maior autoridade de Yartar.

- Perdão, senhora — respondeu de maneira afetada, fingindo uma mesura exagerada, provocação que não passou despercebida pela Baronesa. — Fiquei demasiadamente surpresa com a aproximação sorrateira e o uso de substâncias tóxicas e-

- Você não esperava que os bastardos usassem veneno, eu já entendi — respondeu a mulher secamente. — Embora tenha sido um plano… corajoso, foi inconsequente. E pouco inteligente. Muita coisa podia ter dado errado.

- Foi o que deu pra pensar em uma noite insone, majestade — replicou Jay, tomando as ofensas para si. — E o que importa, afinal, é que você tem a sua prova, e nós só queremos sair daqui vivos. E com os bolsos cheios.

- Vocês tiveram sorte que não terminaram com os bolsos cheios de pedra no fundo do rio Risonho, isso sim. Mas eu vou cumprir com a minha parte do acordo, e recomendo que não pisem em Yartar nessa vida, ou na próxima. A Mão não está nada feliz com vocês.

Os quatro se entreolharam, cientes do que aquilo deveria dizer: mais um lugar nos quais eles eram personas non gratas, ao menos com os criminosos, que certamente eram piores do que os agentes da lei. Mas, devidamente recompensados, misturados a uma caravana de mercadores, os quatro deixaram Yartar, aumentando sua lista de inimizades.

- Mas eu não me lembro que tenha sido exatamente assim…

- Lauriel, só cala a boca, por favor?

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Allana Dilene

Mulher da altura de uma espada larga, leitora ávida, aspirante a muitas coisas.