A manifestação Vidas Negras Importam, ocorreu dia 07/06/20 no Rio de Janeiro. Foto Vik Birkbeck.

Fabulações políticas de um povo preto porvir, um devir-quilombista de uma manifestação em tempos de pandemia

Mídia Independente Coletiva
5 min readJun 14, 2020

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Por Jorge Vasconcellos/ professor de Teoria da Arte da UFF, teórico-ativista do Coletivo 28 de Maio.

O dia 7 de junho de 2020, um domingo, tornou-se poderosamente histórico.

Dois motivos fizeram desse, um dia memorável: o primeiro deles, justamente porque todos os dias que estamos a viver em meio à pandemia de Covid-19 serão dias a serem lembrados à História futura; o segundo, exatamente porque, na Cidade do Rio de Janeiro, se deu um Ato/Passeata/Ação Coletiva ímpar à história das lutas políticas contemporâneas no Brasil. Nesse dia, uma pequena multidão, de ampla maioria de jovens negrxs, caminhou constituindo-se em um uníssono dissonante de um vozerio de gritos antirracistas, clamando que: “Vidas Negras Importam”. Elxs, a multidão, partiram de um ponto central ao Centro da Cidade que reivindica sua negada, apesar de explícita, negritude: a estátua de Zumbi dos Palmares, na Avenida que leva o nome de um Presidente da República brasileira, Avenida Presidente Vargas.

Os manifestantes, em sua maioria jovens, saíram da estátua do Zumbi, percorreram a Presidente Vargas e depois voltaram ao local de partida. Foto: Vinícius Ribeiro/Coletivo Fotoguerrilha.

Esse Ato, que em certo sentido fazia parte de uma agenda de lutas minoritárias reverberadas a partir da necropolítica engendrada pelo necropoder do Estado em seus efeitos thanatológicos sobre pessoas pretas no Brasil, nos Estados Unidos e alhures, produziu, em meu entendimento, uma singularidade política que deve ser notada. Singularidade política poderosa que deve ser destacada: menos por se tratar da primeira manifestação popular massiva de rua/na rua, desde que a Pandemia de Covid-19 se abateu sobre nós; mais porque essa manifestação congraçou uma maioria de jovens negrxs da periferia da Cidade do Rio de Janeiro a tomar para si seu centro, agindo e não só reivindicando para constituir o direito à cidade.

Mas, qual de fato e de direito é a singularidade política inaugurada neste 7 de Junho? Nesse dia o povo preto carioca “pintou o sete” contra o Estado Necropolítico e seus poderes constituídos sobre nós: do governo federal fascista e eugênico, do governo estadual thanatológico e exterminador, do governo municipal permissivo e aliciador. Articulação, talvez, nunca d’antes vista aquelxs que vivemos no Rio de Janeiro, de forças políticas retrógradas que, mesmo eleitas, não só não representam a maioria minoritária dos Cariocas (negrxs-índixs/índixs-negrxs, faveladxs, mulheres, gays, trans, prostitutxs, pobres…), como também sobre esses grupos faz incidir a mais perversa das políticas de extermínio coletivo que, talvez tenha incidido sobre todxs, uma espécie de “solução final” à brasileira: “matemos, matemos todos aquelxs que tenhamos que matar, mas façamos de tal modo que pareça que elxs, não nós, desejem suas próprias mortes”.

A manifestação foi articulada por integrantes do coletivo Favela na Luta e também por ativistas de comunidades diversas. Foto: Katja Schilirò.

A singularidade política deste 7 de Junho (do ano 2020) é, justamente, produzir além de resistência à política genocida em curso pelo Estado brasileiro, práticas que configurem um “novo” horizonte de possibilidades políticas minoritárias, produzindo planos e ações de ataque ao poder estabelecido, não pelas armas de fogo, mas, por instituir armas de outra natureza… armas essas que podem ser propostas como novas sensibilidades e modos de vida e de participação política a um mundo que, quem sabe, possamos inventar. Inventando-o de modo Coletivo, Comunitário e Colaborativo. Mundo esse que inventa um lugar no qual as coordenadas espaço-tempo do capitalismo cognitivo da sociedade de controle necropolítico sejam deslocadas para espaços-quaisquer e tempos aberrantes, regidos por desejos revolucionários, antifascistas, antirracistas, antipatriarcais. Chamemos esta configuração de fabulações políticas.

Mas do que se trata “fabulações políticas?”. O ponto central é que a fabulação não se confunde com imaginação, pois, a fabulação é necessariamente coletiva, enquanto por sua vez, a imaginação é da instância do sujeito. Assim, não se trata de convocar uma imaginação política que nos falte. Trata-se antes de tudo de perceber e afirmar as forças fabulatórias que já estão em jogo. A fabulação é, justamente, uma singular invenção coletiva de um povo que enuncia e pratica formas outras de invadir e ocupar o mundo, mais que resistir aos ataques do Estado Necropolítico.

7 de Junho de 2020, no Rio de Janeiro — em seu Ato/Passeta/Ação Coletiva Vidas Negras Importam, foi uma prática política fabulatória que instituiu, na manifestação, um povo preto povir!

Em frente a Igreja da Candelária-RJ, ocorreu um belíssima performance, na qual os manifestantes lembraram as vidas perdidas pelo massacre contínuo promovido pelo Estado contra as comunidades. Foto André Mantelli.

Povo porvir que não se confunde com um projeto utópico futuro. Mas, um povo porvir se faz com a constituição de um campo de forças políticas em nosso próprio presente, que se faz por intermédio de suas lutas ordinárias. Neste ensejo, a juventude que gritava por Vidas Negras Importam, instituía ali na Manifestação, seu próprio povo porvir, isto é, um povo preto que já estava posto em sua presença radicalmente presente em nossa Atualidade.

As práticas políticas instituídas por um povo preto provir se fazem, quero crer, não por um projeto revolucionário de tomada do Estado branco, mas por um devir revolucionário que aqui chamaremos de devir-quilombista da política. Trata-se menos de processos identitários, mas de práticas coletivas de aliança antirracistas e antifascistas. Atualização alvissareira, no presente, dos lugares-Quilombolas criados por negrxs escravizadxs, atravessados, como d’antes, por políticas de acolhimento, resistência e contra-ataque.

O dia 7 de Junho de 2020, um domingo, foi é será memorável…

Rio em Quarentena, 14 de Junho, domingo, de 2020.

Jorge Vasconcellos.

Jorge Vasconcellos. Negro-Índio, isto é, sua ascendência é afrodiaspórica-ameríndia/é descendente de negrxs escravizadxs e seu bisavô foi indígena Xavante aldeado. Doutor em Filosofia (UFRJ: 2002). Fez recentemente um Pós-doutorado em Artes no Instituto de Artes da UERJ (2018–2019). Professor Associado da Universidade Federal Fluminense/UFF. Professor do Departamento de Artes e Estudos Culturais/RAE. Coordenador do Programa de Pós-graduação em Estudos Contemporâneos das Artes/PPGCA, ambos da UFF. Líder do Grupo de Pesquisas CNPq: práticas estético-políticas na arte contemporânea. Escreveu e publicou vários livros sobre filosofia francesa contemporânea, mas está interessado no que está por agora escrevendo acerca das práticas estético-políticas na arte contemporânea brasileira. E o mais importante: É Pai de Valentina, Joaquim e Zoé; além de ser casado com Mariana Pimentel/Profª IART-UERJ; e, procura sempre estar o mais próximo possível dxs amigxs, pois, os afetos fraternos lhe são muito caros.

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