Como (não) implementar a tecnologia no futebol

Breno França
8 min readSep 22, 2017

--

Durante quatro dos meus quase cinco anos de faculdade, estive diretamente envolvido com a organização do esporte universitário. No Brasil, como nós sabemos, jovens precisam escolher entre se tornarem atletas ou prestarem vestibular e nesse caso o esporte universitário é um refugo para pessoas que, como eu, não tinham talento suficiente para se arriscar numa carreira curta, cheia de sacrifícios e que, via de regra, paga mal.

Mas se não havia mais a mesma dedicação de antes para frequentar os treinos nos horários obscenos em que eles acontecem — os únicos possíveis para quem trabalha, estuda e ainda quer bater uma bolinha — passei a me envolver com aquilo que mais me interessava no esporte: os bastidores. Nesse percurso, fui diretor de modalidade, diretor de esportes, até me tornar presidente do JUCA, os Jogos Universitários de Comunicações e Artes.

Um dia em que tive o prazer de entregar materiais esportivos novos pros meus times.

Em todas essas fases, uma coisa sempre me acompanhou. A imagem que meus amigos tinham de mim era de alguém que sempre estava ao lado da quadra, com o colete da organização, cara de cansado e um regulamento de baixo do braço. A hora de tirar uma dúvida ou de checar a classificação, era a hora certa de me procurar.

Ao longo desses felizes e sacrificantes anos em que o ‘cadernão’ me acompanhou, aprendi a respeitá-lo e defendê-lo. Aprendi que um bom regulamento só se faz quando são observadas uma série de regras dentre elas, a principal: isonomia.

Essa palavra estranha para tanta gente é, por definição, nada mais do que aquilo que garante igualdade de condições a todos os participantes. É sobre esse pressuposto que as regras de uma competição se estabelecem e se aplicam. O que vale pra um, vale pra todos. Um regulamento que não prevê isonomia é inválido, injusto, inútil. Um regulamento desses merece ser rasgado e é exatamente o caso do Regulamento Geral de Competições (RGC) da CBF.

Que lambança!

Quando a Confederação Brasileira de Futebol me aparece com a ideia de implementar a arbitragem eletrônica no meio do Campeonato Brasileiro e da Copa do Brasil, a ideia parece tão absurda que você exclama:

— Ah, isso não é possível.

Mas os exemplos nacionais e internacionais dos últimos tempos tem nos mostrado que quanto mais absurda for a ideia, maior a chance dela realmente acontecer. E mais uma vez, esse parece ser o caso.

Depois do gol que Jô, o atacante do Corinthians, marcou com o braço no último final de semana, dando a vitória para o líder, dentro de casa, contra o Vasco da Gama, a polêmica se estabeleceu. Como foi protagonista de um outro episódio, ainda no começo do ano, em que o adversário alertou para um erro de arbitragem que prejudicaria o próprio Jô, muito se falou sobre honestidade e ética no futebol. Mas enquanto a imprensa esportiva brasileira discutia o sexo dos anjos, a CBF aprontava das suas.

Famoso por ser um personagem controverso no ambiente do futebol, o presidente vascaíno Eurico Miranda foi até a entidade e cobrou do presidente da CBF, Marco Polo Del Nero, uma solução para que erros de arbitragem como o que prejudicou sua equipe na última partida não voltassem a acontecer. Eis que, diante da pressão, o nobre dirigente ordenou à Comissão de Arbitragem da entidade que o auxílio de câmeras fosse imediatamente implementado no Campeonato Brasileiro.

A mesma entidade que argumentou que essa tecnologia era cara demais (mesmo ostentando lucros recordes ano após ano) até uma semana atrás, agora defende que a mesma seja utilizada o mais rápido possível.

Me parece óbvio que utilizar a tecnologia para auxiliar a arbitragem a tomar decisões mais acertadas é um avanço. Atualmente, jornalistas, torcedores, treinadores e até mesmo os jogadores em campo ficam sabendo através dos recursos tecnológicos se, por exemplo, um lance foi pênalti ou não, mas o árbitro, único que precisa decidir sobre a questão, é também o único que não tem tal auxílio. É um contrassenso com o qual convivemos durante os últimos anos e agora que temos a chance de extirpá-lo, devemos fazê-lo. Mas implementar algo com tamanho impacto no jogo sem a devida preparação já seria algo absurdo. Fazê-lo no meio de uma competição, apenas porque a organização do torneio foi pressionada por um dos participantes, nem se fala.

Não para não

Acontece que a confusão não para por aí. Se jogar 24 rodadas com uma regra e 14 com outra ainda não lhe parece uma afronta à isonomia da competição, o que dizer então quando temos a notícia de que é possível que a tal tecnologia seja utilizada apenas em alguns jogos. Segundo reportagem que o ex-árbitro e atual comentarista dos canais ESPN Sálvio Spinola publicou, dos estádios que receberão partidas da 25ª rodada do Campeonato Brasileiro, apenas dois (Maracanã e Morumbi) estão aptos para a utilização da arbitragem eletrônica.

Mas ainda que todos os 10 campos de jogo que serão utilizados estivessem prontos, existem apenas quatro árbitros (Anderson Daronco, Wilton Pereira Sampaio, Péricles Bassols e Sandro Meira Ricci) e dois bandeirinhas (Marcelo Van Gasse e Emerson de Carvalho) treinados para utilizar tal tecnologia. Isso porque — veja só vocês — a Conmebol, outro grande exemplo de organização esportiva, está treinando esses profissionais para que eles possam utilizar o recurso tecnológico a partir da próxima fase da Copa Libertadores da América.

Equipe de auxiliares numa cabine isolada checando as imagens do jogo.

A gota d’água, porém, vem agora. O já citado Regulamento Geral de Competições (RGC) da CBF, assinado pelos 20 clubes que disputam a série A do Campeonato Brasileiro, prevê em seu artigo 77 que:

Art. 77- O uso de ‘AV’ deve ocorrer, a partir do momento em que a Comissão de Arbitragem da CBF apresente condições técnicas e materiais — o que poderá se dar no curso de qualquer das competições que coordena, independentemente de fase.

A história continua no parágrafo 1º:

§ 1º- A CBF não está obrigada a utilizar a tecnologia da arbitragem em todos os jogos da mesma competição ou da mesma rodada, na medida que depende de condições técnicas e materiais para fazê-lo.

Em outras palavras: a CBF pode fazer o que ela quiser, quando ela quiser e sem direito à reclamações ou demais esclarecimentos.

Os clubes, por sua vez, não parecem estar muito preocupados com a lisura de tudo isso. Depois de várias tentativas desastrosas de peitar à CBF em causas que eles estavam unidos, não há esperança de que tal situação seja revertida por parte deles, sobretudo quando vemos reportagens como essa do Globoesporte.com em que 14 equipes se mostraram favoráveis a implementação da tecnologia, seis não se manifestaram e apenas o Atlético/GO (atual último colocado) se posicionou contra. Todos eles fazendo quase nenhuma referência à implementação disso tudo com o campeonato já em andamento.

Soma-se a isso o fato de que, nos programas esportivas das diversas emissoras, a opinião popular também se mostrou, na maioria das vezes, favorável à implementação imediata da tecnologia no campeonato. Restou apenas à imprensa, enquanto setor envolvido com o futebol, levantar a bandeira das consequências negativas que uma mudança apressada pode causar.

À luz disso tudo ou percebendo que implementar a tecnologia pode ser mais complexo do que parece, a CBF finalmente parece ter recuado um pouco e anunciou que não vai usar o árbitro de vídeo já na próxima rodada como havia dito antes e prometido ao presidente Eurico Miranda. Mas tampouco garantiu que vai esperar até o ano que vem (quando um novo campeonato se inicia) ou que vai aplicar a tecnologia em todos os jogos da rodada. Permanece em aberto, portanto, o respeito ao princípio fundamental da isonomia.

Até quando a CBF acerta, ela erra.

Dúvidas sobre o Árbitro de Vídeo

VAR (Video Assistant Referee, do inglês)

Em junho de 2016, a International Football Association Board (IFAB), órgão da FIFA responsável por definir as regras do futebol, autorizou que se utilizasse a tecnologia para o auxílio dos árbitros, em caráter de teste.

O Brasil foi um dos primeiros países no mundo a pedir tal autorização e era inclusive um pioneiro ao defender e elaborar possíveis maneiras de utilizar a tecnologia no jogo.

A partir da autorização, porém, a CBF recuou e realizou pouquíssimos testes com o uso do VAR (Video Assistant Referee, do inglês), entre eles na final do Campeonato Pernambucano de 2017, quando o árbitro Wilton Pereira Sampaio demorou quase seis minutos até consultar o auxiliar de vídeo e decidir manter a decisão de anular o gol do Salgueiro contra o Sport.

Vale lembrar que a FIFA determina que o vídeo só seja consultado em quatro ocasiões específicas do jogo:

  • Gol (ou não gol);
  • Pênalti (ou não pênalti);
  • Expulsão (ou não expulsão);
  • Identificação equivocada de um jogador punido;

Nesses casos, tanto o árbitro pode pedir o auxílio do vídeo, quanto o auxiliar de vídeo pode sugerir uma revisão por parte do árbitro principal. Eu, particularmente, sou favorável ao pedido de desafio por parte dos técnicos ou dos capitães da equipe em caso de lances duvidosos, a exemplo do que é feito no vôlei e no tênis, pioneiros no uso de tecnologia no esporte, sendo os pedidos limitados a dois por tempo. Ressalto, porém, que não existe nenhum modelo deste tipo em funcionamento no mundo e a própria FIFA não permitiu essa forma de operar.

Nas ligas europeias, o árbitro apenas confia na palavra do auxiliar de vídeo, mas na Copa das Confederações, o árbitro podia consultar um monitor na margem do campo.

O que também fica em aberto é a possibilidade do árbitro de campo apenas confiar na palavra do auxiliar de vídeo ou pedir para consultar um monitor na margem do campo para então tomar a decisão definitiva. Nesse segundo caso, é preciso providenciar tal aparelho no nível do gramado, mas na maioria dos exemplos pelo mundo que já estão em vigor como na Bundesliga (Campeonato Alemão), na Série A (Campeonato Italiano) e na 1ª Liga (Campeonato Português), a checagem é feita remotamente e o árbitro dentro de campo apenas toma a decisão com base na informação que recebeu no ponto eletrônico.

O custo, proibitivo até semana passada, para que toda essa tecnologia seja implementada, segundo a própria CBF, é de R$ 30 mil/partida.

--

--

Breno França

Jornalista esportivo formado pela ECA-USP. Autor do podcast @bolanagulha e autor da newsletter Holofote