Capítulo 3

BRIO
20 min readSep 23, 2015

NO EQUADOR, US$ 20 MILHÕES PARA ENTERRAR PROCESSOS

por BRIO Watchdog

O financiamento do BNDES para a construção da hidrelétrica San Francisco, no Equador, foi o primeiro aprovado na política de internacionalização das empresas, em 2003. São bem conhecidos o episódio de como a Odebrecht foi expulsa do Equador e a disputa com o banco na Corte Internacional de Arbitragem, em Paris. O que não se sabia até hoje é como foi costurado um acordo que resultou em um pagamento de US$ 20 milhões pela Odebrecht ao governo de Rafael Correa para acalmar os ânimos e enterrar as investigações que poderiam comprometer criminalmente representantes da construtora. “Queremos pleitear ao governo equatoriano uma trégua ou suspensão total de processos judiciais”, diz uma carta obtida por BRIO. Milagros Aguirre, colunista do jornal El Comercio, mostra que o pagamento significava “resolver amigavelmente e definitivamente a demanda de arbitragem” contra o BNDES. Quem ainda hoje sofre as consequências é a comunidade local, que viu o rio que fornecia sua subsistência sumir da noite para o dia.

“Se você servir a natureza, ela irá servi-lo” — lê-se em uma placa de madeira produzida por um artesão em uma das paradas turísticas de Baños de Agua Santa, uma cidade localizada 130 km ao sul de Quito, capital do Equador. O local é conhecido como a porta de entrada da Amazônia equatoriana, nas cercanias do vulcão Tungurahua, o gigante que ocasionalmente acorda e lança fumaça e cinzas, pedras incandescentes e lavas furiosas. É ali que os rios Chambo e Patate se encontram para formar um outro rio, o Pastaza. São os maiores rios do sul do país.Baños é privilegiada pela sua paisagem, repleta de cachoeiras, rios e nascentes de águas quentes, mas a maior parte das águas do ponto turístico secou, um dos resultados de uma rede de duas usinas hidrelétricas financiada pelo BNDES para promover a internacionalização das construtoras brasileiras.“Esta paisagem, estes rios e cachoeiras, são o que o Criador nos deu e devem ser respeitados”, diz Washington Freire, um líder comunitário local, magro e de aparência frágil, mas que se tornou um dos mais ativos críticos dos gigantescos projetos hidrelétricos em Baños. Sua filosofia assevera que a cidade é turística, não elétrica. Ele diz que o que acontece na terra onde nasceu é simples de entender: massas de concreto desfiguraram a paisagem. Para Freire, a culpa é de duas obras de engenharia integrantes de uma rede nacional de produção e distribuição de energia.A principal delas, que se tornou a maior hidrelétrica do Equador, é a usina de San Francisco, encravada na bacia do rio Pastaza. Ela usa o fluxo de água de uma outra hidrelétrica, localizada 11 quilômetros atrás, a Agoyan. Para que a energia possa ser gerada pela San Francisco, 90% do trabalho de construção consistiu na criação de uma série de cavernas subterrâneas e túneis que retiram a água que passa pela Agoyan e leva-a para a casa de força de San Francisco. Os 230 MW gerados pela San Francisco atendem 12% da demanda de energia do Equador.

Washington Freire: Após entendimentos com Lula, Odebrecht voltou ao Equador. Imagens: Olé Produções.

Significativos também foram os problemas causados pela obra no país. Comandado pelas companhias brasileiras Odebrecht S.A., Alstom Brasil Ltda. e Va Techt Hydro Brasil Ltda., o empreendimento apresentou falhas como rachaduras em um dos túneis e defeitos em uma turbina.

O caso abriu uma crise diplomática entre Brasil e Equador, em 2007. O governo equatoriano Rafael Correa, recém-eleito, afirmou que a usina tinha problemas estruturais e exigiu uma indenização de US$ 43 milhões, enfrentando o BNDES na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional, em Paris. No embalo, rescindiu o contrato com a Odebrecht, a então líder do consórcio (as outras apenas forneciam equipamentos), e determinou a expulsão da empresa e de seus executivos do país.

Esse episódio é bem conhecido. O que não se sabia até hoje é como foi costurado um acordo político que, depois de muitas idas e vindas diplomáticas, resultou em um pagamento de US$ 20 milhões feito pela Odebrecht ao governo de Rafael Correa para acalmar os ânimos e enterrar as investigações de autoridades do Equador sobre a obra, que poderiam comprometer criminalmente representantes da construtora. Também fazia parte do acordo encerrar a disputa com o BNDES.

As tensões foram tamanhas que o presidente da empreiteira, Marcelo Odebrecht, teve de recorrer diretamente ao Palácio do Planalto. Era uma tarde quente em Brasília, em setembro de 2008, quando o empresário entrou no gabinete do assessor especial para assuntos internacionais do governo brasileiro, Marco Aurélio Garcia. Sua sala fica no terceiro andar do Palácio do Planalto, a poucos metros do gabinete presidencial. Odebrecht argumentava que sua empresa tinha dado apoio para a eleição de Correa, que agora expulsava a construtora do país. “É ingratidão”, repetiu o empresário.

Aquele foi o primeiro passo de conversas entre os governos dos dois países e a empresa, até que, após a derrota do pleito equatoriano na arbitragem em Paris, a crise fosse resolvida em 2010. O impasse durou cerca de dois anos. O aparelho diplomático foi ativado e Lula e Correa tiveram reuniões fechadas até que tudo fosse resolvido. Publicamente, Correa chegou a dizer que seu país não pagaria o empréstimo do BNDES, enquanto Lula, então chefe de Estado brasileiro, rebatia dizendo que a Odebrecht era uma empresa respeitada e respeitável. A então ministra-chefe da Casa Civil do Brasil, Dilma Rousseff, garantiu que o BNDES não tinha qualquer ligação com o Equador, na medida em que ele pagava diretamente para o consórcio responsável pela obra. Ocorre que o financiamento foi assinado com a Hidropastaza, empresa estatal criada para tocar o projeto, que tem mais de 80% de suas ações controladas pelo Estado equatoriano e os outros 20% pela Odebrecht.

Em nota enviada ao BRIO, o banco afirmou: “O BNDES e a Hidropastaza (uma empresa pública equatoriana) submeteram-se à arbitragem internacional, de acordo com regras da Câmara de Comércio Internacional. Ao final do devido processo legal, o tribunal arbitral deu ganho de causa ao Banco.”

Naquele mesmo momento, os agricultores e habitantes de Baños não faziam a mais vaga ideia do que se sucedia nos bastidores políticos e no ambiente de tensões diplomáticas, arbitragens comerciais e investigações de órgãos anticorrupção e da Controladoria do governo equatoriano. Para eles, o que importava, e ainda importa, é que desde que o sistema hidrelétrico começou a ser construído — primeiro a usina de Agoyán, sob os cuidados de uma empresa sueca, e posteriormente com a obra da Odebrecht na de San Francisco — o volume de água para a população diminuiu drasticamente.

Washington Freire resume o sentimento. Para ele, a história de San Francisco foi decepcionante: “Nós pensamos que finalmente alguém havia ouvido a voz dos moradores quando a empresa foi expulsa pelo presidente. No entanto, não aconteceu nada. Nós também recorremos às leis por conta da água que nos foi retirada, sem que nós fossemos consultados ou compensados”.

Não houve nenhuma indenização aos moradores locais por conta da obra, de acordo com Freire. Ele plantou sua própria floresta no alto de uma colina. Sua casa está lá, no meio do mato e, de dentro dela, escuta-se apenas o barulho dos pássaros e, ocasionalmente, a respiração pesada do vulcão. Ele relata que os moradores perderam a água que, diz a lenda, cura os males dos doentes, já que por ali banhou-se a adorada Virgem de Água Santa. “Ela deixou esse tesouro para a gente”.

Primeiro, desapareceu a cachoeira de Agoyán, uma das maiores atrações turísticas do lugar. Ainda há uma cachoeira chamada “O véu da noiva”, onde os turistas podem ver a força da água, uma gota que parece espuma branca, eterna. Agoyán era maior, mais imponente. Agora, a sua água é apenas o potencial para girar as turbinas e gerar energia, da usina de mesmo nome, inaugurada em 1987. Depois, com a hidrelétrica San Francisco, inaugurada em 2007, também desapareceu o rio São Jorge. Como resultado, diversas comunidades ficaram sem água na área entre as duas hidrelétricas.

O São Jorge desapareceu da noite para o dia. Literalmente. O túnel aberto para levar a água do rio até as turbinas da San Francisco foi aberto à noite e secou o rio em apenas algumas horas, como um ralo. Quando os moradores acordaram, não havia mais nada. “Quando o São Jorge desapareceu, eles [as empresas] disseram que não era por conta da obra da hidrelétrica, mas por causa do aquecimento global”, diz Freire.

No fim das contas, os que ficaram na seca foram justamente os moradores que acreditavam ser abençoados pela Virgem de Água Santa. Mais do que isso, a água desapareceu exatamente no lugar onde os turistas costumavam ir em busca da cura nos banhos quentes. Também sumiram dali os estrangeiros que eram atraídos pela paisagem, formada por montanhas e cachoeiras, e pelos esportes radicais aquáticos.

O rio Pastaza, o maior da região, também secou em vários pontos. “Olha, olha”, diz Rodrigo Albán, que trabalhou na obra como pedreiro e testemunhou o desaparecimento da água. Ele aponta, com o olhar baixo, para o leito vazio do rio Pastaza, onde agora repousam apenas pedras. “Sem água, tudo seco. Exceto quando chove. Mesmo hoje em 2015, quase dez anos depois, não temos água”, completa Albán, enquanto faz alguns consertos na estância turística para atender aos que chegariam por causa do feriado de Semana Santa. Entre uma e outra negociação, ele continua: “Os camponeses e agricultores da região foram forçados a vender suas terras e foram embora. Eles venderam o seu gado, animais, terras”.

“Mesmo hoje em 2015, quase 10 anos depois, não temos água”, diz Rodrigo Albán, à beira do rio Pastaza. Imagem: Pocho Álvarez.

Não é que os moradores sejam contra o progresso trazido pelas grandes hidrelétricas, mas as comunidades locais esperam que um projeto apresentado ao Conselho Provincial (uma espécie de Câmara dos Vereadores) seja aprovado, obrigando que água potável seja enviada para os locais. Ao todo, mil pessoas, aproximadamente, foram diretamente afetadas pelo desaparecimento das águas do rio São Jorge e do Pastaza.

Washington Freire, que lidera as reivindicações e as ações judiciais dos moradores contra as empresas, reconhece a importância da energia para o Equador, mas acredita que a região já contribuiu o suficiente com o resto do país. Na sua visão, uma água abençoada foi trocada pela água suja que agora sai de Agoyán e de San Francisco. “Nenhum turista vem visitar essa coisa horrorosa”, diz ele, calculando que a perda com a queda do turismo passe dos 50% desde a inauguração da usina.

Freire reclama que as empresas brasileiras atuam sem qualquer consideração. “Eles dizem que existem aspectos sociais nos projetos, mas nunca reconhecem as consequências imediatas para as comunidades. Falam dos benefícios, mas não reparam nas vidas daqueles que estão nas imediações de grandes projetos. Fazem negócios milionários, mas as compensações para os moradores são apenas ‘migalhas’”.

Os problemas gerados pela construção sobre a água disponível para a população local são admitidos pelo próprio governo equatoriano. Em um documento produzido pela Controladoria Geral equatoriana, obtido pela reportagem, o governo identifica o acúmulo de lixo e “a contaminação, água abaixo, da enganação (EMBALSE) de Agoyán” e a concentração de partícula na água “maior que a especificada”.

Acordo de reparação.

O empréstimo do BNDES para a hidrelétrica San Francisco pode ser considerado um marco na nova política de internacionalização das empresas brasileiras. Aprovado em outubro de 2003 pelos ministros do então recém-empossado governo Lula, essa foi a primeira das mais de 20 obras apresentadas naquele ano como prioritárias pelo governo federal para a América Latina.

O financiamento estava congelado havia mais de três anos, quando foi tirado da gaveta em reunião da Câmara de Comércio Exterior, no dia 20 de outubro, com a presença dos então ministros do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Luiz Fernando Furlan, da Casa Civil, José Dirceu, entre outros.

Diz a ata do encontro: “Os ministros examinaram todos os antecedentes dessa operação e, à luz dos compromissos recíprocos assumidos pelos governos brasileiro e equatoriano, decidiram pela imediata implementação do contrato de financiamento do BNDES para o projeto da Hidrelétrica de San Francisco, assinado em abril de 2000”.

A liberação ocorreu baseada no fato de que, 20 dias antes, o presidente do Equador havia enviado um ofício para o governo brasileiro, comprometendo-se com as garantias de pagamento do empréstimo do BNDES. Além disso, para “cumprir as condicionantes apresentadas pelo governo brasileiro”, a Odebrecht prometera desistir de ir à Justiça contra o governo brasileiro para garantir o pagamento do BNDES. O acordo entre a empresa e os governos abriu espaço para o primeiro grande financiamento para as construtoras brasileiras na gestão de Lula.

“O Comitê de Crédito à Exportação e o Conselho Diretor do Fundo de Garantia à Exportação, no reenquadramento dessa operação, aprovam a equalização e o seguro de crédito correspondente para operações, de forma a permitir a manutenção das condições financeiras estabelecidas no contrato de financiamento do BNDES, evitando o desgaste de qualquer nova renegociação com o governo equatoriano”.

Com o dinheiro finalmente liberado, a pedra fundamental da hidrelétrica San Francisco foi colocada alguns meses depois, em 27 de fevereiro de 2004. Foi o primeiro movimento concreto desde que a obra tinha sido contratada, quatro anos antes, em 29 de março de 2000, sob os presidentes Gustavo Noboa, do Equador, e Fernando Henrique Cardoso, do Brasil. O contrato de financiamento com o BNDES foi assinado menos de um mês depois.

Acordo com a Odebrecht previu pagamento de US$ 20 milhões. Em troca, Equador prometeu enterrar investigações e ação internacional contra o BNDES. Imagem: Diário La Hora.

O valor do contrato original era de US$ 286,8 milhões, dos quais 68% seriam financiados pelo BNDES. O projeto inicial foi assinado com um consórcio formado pela Odebrecht e pela empresa brasileira Ansaldo, mas em 21 de novembro de 2003, depois da aceitação das garantias do governo equatoriano e da liberação do dinheiro pelo governo brasileiro, o contrato foi repassado para um novo consórcio, formado pela própria Odebrecht, a Alstom Brasil e a VA Tech Hydro Brasil.

A usina de São Francisco foi inaugurada em 25 de junho de 2007. O próprio Rafael Correa subiu em uma das turbinas para declarar o início da produção de energia. As atividades, no entanto, duraram pouco — apenas três meses. De acordo com um relatório da Controladoria Geral do Equador, a planta ficou paralisada durante um ano, entre 26 de setembro de 2007 e 30 de setembro de 2008. Havia problemas nas rodas de água das turbinas e parte do túnel de 11 quilômetros desabou.

Na época, a Odebrecht argumentou que “durante seu primeiro ano de operação, a Central (hidrelétrica) trabalhou continuamente, inclusive acima da capacidade projetada, e agora a responsabilidade de empresa era do governo equatoriano”. Além disso, alegou que as falhas se deviam a um “aumento significativo de sedimentos” nas águas do rio Pastaza devido ao vulcão Tungurahua, a 20 quilômetros da usina.

Algumas das investigações feitas pelo governo equatoriano tinham um fundo político. Em julho de 2007, ano de estreia do governo de Rafael Correa, foi criada uma Comissão para a Auditoria Integral da Dívida no Equador. Essa havia sido uma promessa da campanha eleitoral e a Comissão ficou sob os cuidados do Ministério da Economia e Finanças. O relatório final foi apresentado seis meses mais tarde e concluiu que a dívida do país era ilegítima e ilegal.

Antes disso, a relação entre o Equador e o Brasil nem sempre fora conflituosa. Quando as obras ainda estavam em andamento, a Odebrecht chegou a ganhar um prêmio em dinheiro por estar à frente dos prazos. Na época o ministro de Energia e Recursos Não Renováveis era o economista Alberto Acosta. Segundo ele recorda, era o ano de 2006 e o país enfrentava um problema sério de falta de energia, pois havia uma crise na hidrelétrica de Paute, a maior do Equador até então. Assessores diziam a Acosta que a San Francisco estava pronta e que poderia ser ligada caso fosse necessário.

Foi quando um telefonema anônimo alertou o ministro: “Revise as pendências da obra”. Acosta não recebeu a obra por sorte. Ele deixou o ministério uma semana antes da data de entrega para se candidatar a um cargo da Assembleia de Montecristi, cidade escolhida para sediar a Assembleia Constituinte Equatoriana na qual foi redigida a nova Constituição do país.

Depois de um telefonema, o ex-ministro Acosta não aceitou a entrega da obra. Imagem: Olé Produções.

Quando a San Francisco parou de funcionar, o governo concluiu que o trabalho não estava apenas inacabado. Ela escondia muitos problemas técnicos: no túnel, nas turbinas, por conta de falhas geológicas que haviam sido solucionadas, além de problemas com o sistema de arrefecimento e impulsores de turbina.

Em outubro de 2007, em meio à paralisação da usina, o governo Correa não apenas rescindiu o contrato com a Odebrecht, mas expulsou do país os executivos da empresa. Além disso, o governo equatoriano militarizou as instalações. “Nós não vamos aceitar que qualquer uma dessas empresas internacionais venham para zombar do país. Acabou a festa”, disse o presidente.

As acusações ganharam um tom cada vez mais elevado. O secretário nacional anticorrupção do governo equatoriano, Alfredo Vera, disse ter encontrado um superfaturamento de US$ 70 milhões na obra da hidrelétrica. Segundo ele, era o resultado de aditivos e de pagamentos superiores ao praticado no mercado.

Em meio à crise política gerada pela obra, a Odebrecht publicou um anúncio defendendo o seu trabalho, mostrando a sua presença em 60 países e lembrando que, naquele momento, já atuava no Equador havia 23 anos. Vera foi irônico: “Suponho que em outros países não encontraram o paraíso da corrupção que há no Equador”.

As declarações do czar anticorrupção seguiam a linha dada por Correa desde sua campanha, em 2006. Ao concorrer à presidência, ele acusava os membros da elite política e econômica de seu país de serem “mafiosos” e “lobos”. Sua plataforma estava baseada em duas mensagens essenciais: a degeneração das instituições do Estado e a debacle moral da classe política. Vera seguiu o script. Para ele, a Odebrecht tinha assinado um “contrato elástico”, que abarcava decisões questionáveis e abria espaço para pagamentos de propina a funcionários públicos.

As suspeitas relacionadas ao projeto não surgiram apenas no discurso do governo equatoriano. Em um telegrama sigiloso enviado em 21 de outubro de 2008, a embaixada dos Estados Unidos em Quito disse que a reação de Correa contra a Odebrecht era fruto de indícios de “corrupção e construção defeituosa”.

Os americanos reportaram “não ter informações sobre San Francisco”, mas disseram ter recebido alegações “críveis” de corrupção contra a Odebrecht no país, segundo informações de um “ex-ministro de Finanças que se recusou a assinar documentos de um projeto [da construtora] por causa das suas preocupações sobre corrupção”. Os adidos americanos também relatam a preocupação de um funcionário do Banco Central local com os “termos desfavoráveis dos empréstimos do BNDES” para o governo equatoriano.

A obra da hidrelétrica também foi alvo de investigações criminais: a empresa estatal Hidropastaza apresentou, entre agosto de 2009 e abril de 2010, três acusações contra ex-diretores e ex-funcionários do consórcio responsável pela construção da hidrelétrica, por suposto peculato (desvio de dinheiro público).

Mas a sanha investigatória do Estado equatoriano não durou muito. Todos os procedimentos foram suspensos depois de um acordo entre o Equador e a Odebrecht para a retomada do projeto, assinado em 8 de julho de 2010. Um total de 29 pessoas suspeitas de crimes livrou-se das investigações.

A negociação para acabar com os processos começou com uma carta enviada pelo diretor superintendente da Odebrecht (o nome do diretor não aparece na carta), em 4 de fevereiro de 2010. “Queremos pleitear ao governo equatoriano uma trégua ou suspensão total de processos judiciais. (…) Fica claro que sinceramente aspiramos chegar a esse final satisfatório, para o qual, obviamente, teriam que intervir outras instâncias do Estado equatoriano, como o Ministério Público, a Controladoria Geral e a Procuradoria Geral”.

Em 9 de março, o ministro de Energia respondeu, expressando “de igual maneira sua real intenção de dar início a um processo de diálogo”. Em 8 de julho um acordo foi assinado. O consórcio se comprometeu a pagar ao governo US$ 20 milhões por conta dos dias de paralisação.

Uma cláusula garantia os panos quentes: “Uma vez feito o pagamento em questão, as partes darão por definitivamente encerradas todas as controvérsias sobre o contrato de construção e as ações administrativas, arbitrais e/ou judiciais que tiverem sido iniciadas”.

Por fim, as partes se comprometeram a realizar os melhores esforços para “resolver amigavelmente e definitivamente a demanda de arbitragem” contra o BNDES, uma disputa na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional, localizada em Paris. Essa disputa foi aberta porque o Equador ameaçava não pagar os empréstimos, sob o argumento de que eles tinham cláusulas ilegais e prejudiciais ao país. Em 2011, o BNDES saiu vitorioso na Corte de Arbitragem.

Além dos US$ 20 milhões prometidos, o “acordo de reparação” incluiu consertos no túnel, em chaminés, válvulas de desvio, e a entrega de dois impulsores reservas. A hidrelétrica havia voltado a funcionar em 2008 com reparos provisórios feitos pelo governo equatoriano, que havia assumido todos os projetos da Odebrecht e militarizado as instalações.

Após o acordo de 2010, a Odebrecht voltou a trabalhar para fazer todos os consertos necessários. Os reparos foram concluídos, mas as autoridades nunca informaram sobre o custo das novas obras e se a indenização foi efetivamente paga. Depois de o BNDES vencer a causa na corte internacional, o Equador teve de pagar a totalidade do empréstimo e os juros, além dos aumentos do valor do contrato. O valor total foi de US$ 461,3 milhões pelo crédito inicial de US$ 243 milhões, de acordo com informe de Carlos Cortés para a Secretaria Nacional Anticorrupção.

Apesar dos processos judiciais terem sido abandonados, pelo menos três investigações feitas pela Controladoria Geral do Estado entre 2008 e 2011 indicam a repetição de problemas presentes em outros países: a falta de projetos claros do ponto de vista ambiental e social e a falta de transparência na aplicação das verbas do BNDES. Essas investigações foram comandadas por técnicos, entre engenheiros e auditores. BRIO teve acesso às mais de 400 páginas, nas quais os auditores apontam, por exemplo:

  • As investigações foram prejudicadas por conta de informações dispersas e incompletas.- Na época da auditoria, não se obtiveram todas as Notas Promissórias que foram implementadas, em especial aqueles que correspondem ao valor de US$ 34.623.000 e US$ 29.750.000, para contratos com o BNDES.
  • Não foi possível avaliar a viabilidade econômica, financeira, social e ambiental dos contratos, porque o projeto original e as alterações posteriores, decorrentes de aditivos contratuais, não foram disponibilizados.- Os integrantes da equipe de investigação tiveram de analisar o caso com base somente em informações secundárias, sem acesso à informação primária sobre todo o processo.
  • Não foram disponibilizados os relatórios de entrega da obra, tanto os preliminares como o final, para que os técnicos pudessem avaliar as diferenças entre as condições de recebimento e os termos acordados no contrato, assim como eles não tiveram acesso aos dez aditivos que promoveram alterações contratuais, incluindo obras e custos adicionais.
“As alterações do projeto representam um aumento de cerca de 25% em relação ao valor registrado no contrato original”, diz auditoria do Equador. Imagem: Diario La Hora.

Essa foi uma das grandes críticas feitas pelos auditores: o fato do contrato de San Francisco ter tido dez aditivos, dos quais cinco estavam relacionados com a mitigação de falhas geológicas e com o pagamento de bônus para a aceleração dos trabalhos. No total, os aditivos aumentavam o custo da obra em US$ 30 milhões. Diz o documento: “As alterações do projeto representam um aumento de cerca de 25% em relação ao valor registrado no contrato original”. Esse percentual é exatamente o máximo permitido pela lei brasileira para o aumento de custos por meio de aditivos.

A conclusão da Controladoria foi de que havia indícios de “más práticas”. “O fato de que tenha se exigido dez contratos aditivos para completar o trabalho, dos quais cinco foram relacionados com a mitigação de falhas geológicas e para a aceleração das obras, prova um planejamento inadequado que foi percebido desde o início da construção”.

Em resposta à Controladoria, o consórcio construtor da hidrelétrica argumentou que a obra foi entregue com nove meses de antecedência — o que, de fato, aconteceu — e que o pagamento de um bônus de US$ 13 milhões por essa antecipação foi aprovado pela estatal contratante. Argumentava ainda que o contrato era entre a construtora e a estatal energética. A Controladoria rebateu, apontando a má qualidade da obra executada pela Odebrecht: “Durante a execução da aceleração do projeto, não se realizou um trabalho adequado, o que causou interrupções no funcionamento da planta”.

Rota viva.

Graças aos esforços diplomáticos e com o acordo assinado em julho de 2010, foram encerrados os processos criminal e de arbitragem, esquecidos os relatórios e glosas da Controladoría e os supostos crimes cometidos nas mudanças das condições do contrato, e eliminados, a favor da Odebrecht, o prejuízo do Estado e as glosas impostas pela Controladoria.

Com a assinatura do acordo entre Hidropastaza e o consórcio Odebrecht-Alston-Va Tech, colocou-se um ponto final na história, ainda que tenha sido discutido no Equador se o acordo violava ou não o artigo 422 da Constituição, no afã de solucionar os problemas que levaram à paralisação da hidrelétrica de San Francisco. De acordo com esse artigo, “não se pode celebrar tratados ou instrumentos internacionais nos quais o governo equatoriano ceda jurisdição soberana a instâncias de arbitragem internacional, em controvérsias contratuais ou de natureza comercial, entre o Estado e pessoas naturais ou jurídicas privadas”.

O acordo enterrou a maior crise já registrada envolvendo os empréstimos do BNDES ao exterior. O fato é que a disputa diplomática entre Equador e Brasil beirou uma ruptura. Ambos os governos chamaram seus embaixadores para consultas. No Brasil, houve reações. As associações patronais exigiram que o governo defendesse a Odebrecht. O presidente do Comitê de Relações Exteriores do Senado expressou preocupação com a situação dos executivos da empresa, que tiveram que se alojar na embaixada brasileira em Quito.

Quando o governo do Equador decidiu levar o caso à Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional, o Brasil colocou no congelador todos os projetos de cooperação bilateral.

A Odebrecht voltou ao Equador logo após a assinatura do acordo que acabou com a disputa de San Francisco. E mais uma vez com megaprojetos. Um deles é a Rota Viva, uma estrada que liga Quito com o novo aeroporto de Tababela. A empresa faz parte do Consórcio Rota Viva.

O BNDES também voltou ao país e, em novembro de 2012, concedeu um empréstimo para a primeira fase de Manduriacu, projeto hidrelétrico no norte do país, no valor de US$ 192 milhões, que usará as águas do rio Guayllabamba. A obra também está a cargo da Odebrecht. No dia 19 de março deste ano, cerca de 100 trabalhadores da empresa brasileira, vestidos com macacões amarelos, formou uma fila de honra aos dois lados da planta de Manduriacu. Os trabalhadores cobriram uma longitude de 360 metros — a medida da coroa da hidrelétrica, que corta a nascente do rio. Uma ponte de dez metros permite que veículos trafeguem nos dois sentidos.

Em agosto de 2013, o Ministério das Finanças assinou um novo contrato de financiamento de US$ 136 milhões com o banco brasileiro para o projeto de irrigação Daule-Vinces. Para este ano, o governo equatoriano já avisou que buscará mais US$ 650 milhões do BNDES.

Hoje, pouco se fala sobre os problemas estruturais de San Francisco, dos problemas legais como o processo judicial por peculato contra diretores da Odebrecht, ou das consequências para os habitantes de Rio Verde, La Merced e El Placer, em Tungurahua. O aperto de mão entre Lula e Correa foi mais forte. Já em 2009, o então ministro das Relações Exteriores equatoriano, Fander Falconi, declarava: “No caso específico com a Odebrecht e o BNDES, nunca houve uma denúncia contra o governo brasileiro, e as relações entre Brasil e Equador estão em bom estado de saúde”.

Em Baños ainda recordam-se que a máquina perfuradora emperrou quando abria o túnel. Comunidades inteiras ficaram sem água. Mas as grandes cidades têm luz e ninguém parece levar o assunto mais em conta. O rio Pastaza está completamente seco, apenas com pedras e areia como um traço de sua presença ao longo de 11 quilômetros. Washington Freire é um dos poucos que ainda se lembra daqueles dias em que os vizinhos tiveram que vender o gado e ir embora porque a água sumiu. Ele tem uma teoria. Quando chove forte e o rio Pastaza enche, parece dar um recado: “A natureza lhe serve se você servir, mas não se você acabar com ela”.

Leia a seguir o capítulo 4: O progresso não chegou, mas a estrada ficou US$ 1 bilhão mais cara no Peru. Obras foram entregues para empresas brasileiras depois de presentes a políticos peruanos. Documentos da Polícia Federal apontam indícios de pagamento de propina a autoridades locais.

Publicado originalmente em 9 de junho de 2015, em http://brio.media

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